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António Garção, Canções do bosque (técnica mista)

 

Nuno Rebocho – Um convivente goliardo moderno

 

(Nicolau Saião)

 

Muitos são os benefícios de viajar: a frescura que nos traz ao espírito, ver e ouvir coisas maravilhosas, a delícia de contemplar novos lugares, o encontro com novos amigos e o aprender finas maneiras” – Muslih-din-Saadi, poeta persa

 

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Dizia Samuel Clemens (Mark Twain), também ele viajante e cronista devido a decisão própria e, durante algum tempo, viajeiro por profissão, que viajar era passear um sonho.

 

E acrescentou que a escrita que daí resulta passa a ser o sonho transfigurado, com o seu território de realidades e de quimeras, de minutos que se abriram para novas visões e novos pensamentos e doravante perduram como relatos que nos ensinam e nos maravilham.

 

Andar pelo mundo e pela vida e escrever sobre isso – pessoas, coisas, sucessos da mais diversa ordem – não é fácil tarefa, é preciso manter simultaneamente a inocência (temperada por alguma malícia), a perspicácia e um enorme sangue-frio, pois sem aviso as recordações apoderam-se de nós e como que nos obrigam a passar para outra realidade, em geral extremamente sedutora mas que nos enfeitiça com inexactidões involuntárias, filhas do nosso mistério pessoal. Por isso Benjamin Disraeli dizia avisadamente que “vi mais coisas do que as que recordo e recordo mais coisas do que as que vi”. Todavia, a grande solução consiste sempre em entrarmos generosamente na viagem, sem temermos a multiplicação de experiências, até mesmo de acasos, pois sabe-se que no final a escrita e seus interiores meandros – se dispomos da adequada dose de sensatez criadora – acabam por depurar, resolver e transfigurar aquilo que se viu, se sentiu e se viveu, como que por uma brusca mutação que vem não se sabe muito bem donde.

 

E depois há a memória que se convoca nos grandes momentos de fecunda solidão, de fulgurante isolamento criativo em que somos simultaneamente objecto e sujeito porque é por nós que passa a organização do que significam realmente as lembranças, do que foram efectivamente os per4fis das gentes que nos rodearam, os tempos reencontrados em que revivemos uma conversa, um ritmo vital, um passeio, em que de repente ressuscitam perplexidades e encantamentos, fragmentos de tempo em que a nostalgia nos visitou sem que nos pudéssemos esquivar e que logo a seguir assumimos peremptoriamente como um dos nossos maiores bens.

 

A isto, creio, chama-se compreender. Porque por detrás de toda a alegria difusa transportada numa evocação, ou em todo o pequeno tremor que nos assalta ao termos a sensação de que qualquer coisa nos abandonou, há sempre um rosto ou a ideia de que por ali paira algo de humanizado e aonde se chegou através de um olhar mais exacto, mais treinado pelos mundos onde se esteve por destino e pelos universos que as deambulações nos propiciaram.

 

 

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Já se sabe que a arte da crónica não é nem nunca foi uma arte menor ou muito menos preâmbulo para qualquer coisa de maior envergadura. Trata-se, com efeito, de um corpo inteiro que se joga ali mesmo, nesse continente de luzes e sombras onde crescem deuses e demónios inteiramente nascidos da realidade que se forja com os factos arrolados e sua representação palpável. Ou seja, uma poesia muito própria e sem sujeições a outras escritas aparentemente de maior porte no arsenal do autor.

 

Cronista e ser convivente, o viajeiro de “Estravagários” – estas crónicas sobre o Alentejo real que os sonhos perduráveis do autor encenaram – tem parentes perfeitamente reconhecíveis, ainda que seja seu e muito próprio o estilo que arrola entre o alinhavo jornalístico e o desalinhavo livresco. São os amantes dos prazeres do espírito – e dos outros que gostosamente passam pelo corpo e a que alguns, com certa dose de leviandade, apelidam de transitórios ou baixamente materiais. Em todas as evocações de NR se sente perpassar uma clara alegria de viver, ainda que cifrada por alguma melancolia, donde o gosto pela boa mesa, por exemplo, não se ausenta nunca – e repare-se que aquela expressão vai no sentido lato. O espírito do lugar, que é o das pessoas que o habitam, é bem palpável com todo o seu manancial de coisas essenciais que vivem intensamente se tivermos olhos para cheirar, ouvidos para ver e alma para saborear. Nas crónicas de Nuno Rebocho, colega evidente de Goldoni, Hazlitt, Cela ou Saroyan, sente-se que as pessoas que recorda e os acontecimentos a que dá relevo não estão ali como pretextos fantasmais para umas tantas laudas literatas, mas para habitarem o quotidiano deste seduzido sedutor. Caldeados pelo pormenor argutamente observado, pelo trecho recortado com ironia, pela frase incisiva e mediada quantas vezes por uma indisfarçável comoção, cobram vida relatos donde pode extrair-se um perfume de passados finalmente refigurados e limpos da escória que o tempo lhes fez adquirir, de coisas e de momentos que se vão esquecendo e de outros que, embora existindo ainda na hora que passa, irão ser pasto para esquecimentos futuros.

 

Com estas crónicas onde freme um tom pessoal e que possuem aquele sabor coloquial que a profissão do autor certifica e esclarece, mediante a maneira peculiar onde se desenha a sua aposta e o nosso privilégio Nuno Rebocho presta inquestionável serviço à nossa convivencialidade humana e cultural, à nossa memória específica de povo e ao nosso aprumo de pessoas que querem lembrar o melhor e o mais alto.

 

Casa do Atalaião de Portalegre

 

 

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