PEQUENO
INTERMÉDIO TEATRAL
(Nicolau
Saião)
1
(Um
entreposto comercial. Nas estantes e pendurados pelas paredes,
objectos à venda: winchesters, flores de papel, cantis de água,
imagens de Nossa Senhora de Fátima, rifas da bola, espelhos,
escalpos de índios, postais do Algarve, garrafas de sumo e tabletes
de chocolate, lenços de cabeça minhotos, posters de cantores em
voga, etc.)
F.
– (entrando e olhando em volta) Muito boa tarde. Tem sabão
de barba?
Lojista
– (com maus modos) O que tenho está à vista.
F.
– Mas podia ter no armazém...
Lojista
– Não tenho armazém. Onde julga você que está?
F.
– (algo interdito) Eu pensava que estava no Porto... mesmo
aqui...
Lojista
– (escarninho) Pensava mas... enganou-se. Está num lugar
onde os tipos como você têm de andar pianinho... sem muito
barulho. Entendeu?
F.
– (interrogativo) Mas porquê? Afinal...
Lojista
– (cortando cerce) Afinal nada! E se fosse em Bragança era
a mesma coisa. Ou em Famalicão... ou no Barreiro, em Vila Nova de
Poiares ou mesmo na Ericeira... Percebeu?
F.
– (com dignidade sem alardes) Não, não percebi. E como o
senhor parece ser o chefe desta guerra, podia explicar-me? Já
agora...
Lojista
– (com uma voz sacudida) Não explico nada. Mas sempre lhe
digo que pessoas como você nem deviam existir. Chegam cá abaixo e
andam uma vida inteira a aborrecer toda a gente. Umas vezes é um
rio que está fora do lugar, outras um carrinho de bombeiros que se
perdeu numa mudança de residência, outras ainda um pedaço de pão
com manteiga que sabia tão bem que se recordou para sempre...
Coisas assim, sem pés nem cabeça, que não servem para nada e que
só chateiam o pessoal!
F.
– (com amargura) Já agora podia falar também nas cerejas.
Que havia naquela cerejeira de quando eu era pequeno e brilhavam na
manhã de sol e o pai de vez em quando colhia para me dar... Sempre
gostei tanto de cerejas. É um dos meus...
Lojista
– (com uma risada seca, interrompendo) Cale lá a caixa,
cavalheiro. Coma cenouras, que fazem bem ao fígado. E vamos a ver,
que tenho mais que fazer: não deseja mais nada?
F.
– (com uma voz clara) Um pacote de batatas fritas. E uma
noite de S. João.
Lojista
– (franzindo o sobrolho) Levas o pacote de batatas fritas e
já tens muita sorte. Queres deste... ou daquele de fabrico à moda
antiga? Aproveita que o preço é o mesmo.
F.
– (com uma voz clara e decidida) Mas também quero uma
noite de S. João. Tanta gente na rua... um ambiente de festa,
talvez ou de certeza alguma alegria verdadeira. Em certos recantos a
música ouve-se como se fosse tocada por anjos, ou como pessoas
interessadas nisso. Os balões de papel...
Lojista
– (tirando qualquer coisa de sob o balcão) Bom, a conversa
já durou demasiado tempo. É a velha história, não penses aliás
que estava à espera doutra coisa. A tua folha já nós a
conhecemos... de ginjeira! (leva uma corneta de lata aos lábios
e toca com decisão)
(Entram
dois homens altos e fortes vestidos com fatos azuis iguais aos da
segurança dos aeroportos, com óculos escuros e muito escanhoados.
Cada um de seu lado pegam no braço de F. e vão-o levando com certo
esforço. Têm mesmo de se esforçar, porque F. exerce resistência,
sem contudo se desalinhar. Levam-no, enquanto ele encara agudamente
o lojista, de cabeça alta e um olhar triste e sereno. O lojista
fecha a porta e, com um sopro, apaga o candeeiro de petróleo)
2
(Entreposto
comercial mergulhado na escuridão. Ouvem-se pancadas decididas na
porta de entrada. Aumentam de intensidade. Uma porta de quarto mal
oleada abre-se no primeiro andar, com um típico rangido. Um
arrastar de chinelas, alguém que desce o pequeno lance de
escadas…)
Lojista
– (tirando o pigarro, com um castiçal na mão e enfiando com
dificuldade as mangas dum roupão de seda escarlate) Lá vai!
Aguente, quem for!
(Abre
a porta com uma chave enorme. Recua estupefacto, de boca aberta.
Quem está no umbral é F., que entra serenamente)
F.
– (com alguma ironia) Parece que viste o diabo… Ora então
boa noite. Tens estado a dormir bem? O sono do justo? (Vai-se
sentar em cima do balcão e fica muito lampeiro a balançar as
pernas como as crianças costumam fazer) Senta-te além naquela
cadeira… que temos de conversar.
Lojista –
(fazendo um esforço para se recompor) Mas não percebo…
Então o Alfa… e o Ómega…?
F.
– (parando com os balanços) Os teus excelentes ajudantes!
Podes crer que estão bem – tanto quanto se pode estar naquelas
circunstâncias. Todavia um ficou todo torcido, de olho à
belenenses… e o outro não vai poder apreciar os perfumes
celestiais aí durante… um mês. Ficou com o nariz um bocadinho de
lado… e deixou cair os óculos de sol…
Lojista
– (tentando recuperar a autoridade) Mas oiça lá,
cavalheiro… quem é que lhe dá o direito de entrar assim… fora
de horas…
F.
– (descendo do balcão e aproximando-se do Lojista,
apanhando-lhe mansamente o nariz entre dois dedos e abanando-o um
pouco sem violência) Ouve tu e abre bem essas orelhas, meu
pardal: fica sabendo que não é só aqui no teu estanco que há
noites de S. João para vender. Também nos podem ser dadas… e são
essas as melhores! E agora vais trazer um pacote de batatas fritas,
ao estilo antigo… antes que eu me chateie. Entendeste?
(O
Lojista vai buscar o pacote a uma estante e entrega-o a F., que o
abre num gesto seco e começa a tratar da saúde às batatas)
Lojista
– (com alguma inquietação) Mas se começamos a apanhar
noites de S. João por aqui e por ali… é o fim da ordem natural
das coisas! O mundo vai ficar de pés para o ar!
F.
– E eu ralado… Ouve, pá: há séculos que andas a tentar pôr
tudo à tua maneira, desde as montanhas às couves-flor, desde os
burricos cinzentos ao perfume das violetas. Já é tempo de alguém
te dar uma lição. Apesar de tu se calhar não teres bestunto para
isso, vê lá se percebes, meu cascalhudo: é que há os beijinhos são
joaninos!
Lojista
– (sem entender, de trombil franzido) Os… os bei… os quê?
F.
– Não vou repetir, deixa-te de lérias. Mas fica sabendo que são
algo com um enorme poder, que transfigura o mundo onde te tens esforçado
por ser o manda-chuva. Os com sabor a cereja fazem levitar e até
temos de ter cuidado para não bater com a cabeça na parede no
primeiro voo circulatório. Os outros, que só sabem à boca que os
dá, são os mais poderosos: tiram-nos os pesos do coração e nem
é preciso ficarmos de olhos coruscantes. Olha-se serenamente,
fica-se sem nostalgia. Que podiam, diz-me cá, os teus esforçados
ajudantes fazer contra isso? Comeram um bocadinho da canja, para se
habituarem a não abusar dos mortais.
Lojista
– (com um ar manhoso) E isso arranja-se aonde? Há alguma
mina? Onde é que eu…
F.
– (acabando de comer as batatas, amarfanhando o invólucro e
deitando-o decididamente para o chão) O Alfa e o Ómega já estão
aviados… Agora vou tratar de ti.
(O
Lojista, com um esgar de susto, precipita-se para as escadas,
sobe-as atabalhoadamente e trancafia-se no quarto com um enorme ruído
de ferrolhos. F. pega no castiçal e ilumina as prateleiras. Com um
sorriso irónico tira duma delas um spray de sabão para a barba,
rapa da algibeira umas moedas e põe-nas sobre o balcão. Vai até
à porta, pousa o castiçal e apaga a vela. Antes de fechar a porta
com estrondo, diz para a escuridão)
Então boa noite, ó Ancião
dos Tempos! Tem por cá muita saudinha!!!
(FIM)
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