ANÍBAL
E AS MOSCAS FILÓSOFAS
(Nicolau Saião)
Estava
há sete semanas naquele quarto de hospital e principiava a
chatear-se.
Todos
o tratavam muito bem – alguém lhe emprestara mesmo uma telefonia
– mas o certo é que começava a sentir-se ligeiramente
aborrecido.
Não
era que a enfermeira não lhe trouxesse a comida quentinha a horas
certas, nem que o dr.Varela lhe faltasse com a sabedoria médica. Não.
Toda a gente era realmente muito simpática, mas ele principiava a
ficar um bocado… frio.
A
partir da terceira semana começara a segredar para si próprio
ideias que apanhava ao calhar. E, caso estranho, pensava, pensava
muito, pensava como nunca havia pensado: pensamentos gordos, mesmo
suculentos, que lhe deixavam na boca um sabor esquisito e galopante,
como se fossem comboios molengões andando sobre carris podres. Não
estava a gostar nada daquilo.
Além
do mais, de noite o quarto enchia-se de vagas correrias, vagas
risadas…
Virou-se
para o outro lado.
O
pára-choques apanhara-o exactamente em cheio no sítio onde as
costelas dizem adeus ao estômago. Acordara depois, de súbito, numa
cama descompassada com formigas e abelhas a passearem para baixo e
para cima a toda a altura do esqueleto, suaves, venenosas. A cabeça
muito bem entrapada repousava virtuosamente sobre uma almofada
branca. Em volta, tanto quanto se lembrava, uns fantasmas abusadores
deambulavam num leva-traz peculiar zurzindo o ar ambiente com uma
lengalenga que nem por ser em voz sumida era menos estarrecedora.
Depois
foi-se habituando.
O
dr. Varela chegava ao crepúsculo, ou ao nascer do sol, com os óculos
muito calmos e mudos a apontar na sua direcção: pegava-lhe no
pulso, rosnava sabiamente, abanava a cabeça e, antes de sair,
escrevia qualquer coisa num papel. Ele por momentos pensava que o
dr. Varela tinha um pacto secreto com o seu aborrecimento, mas está-se
a ver que era só impressão.
A
enfermeira, como é natural, vinha mais vezes. Tinha um nome
impronunciável, olhava aos ziguezagues e era magra e penugenta.
Cheirava a relógios bem lubrificados e nunca se ria. Também não
devia ter de quê, pensava ele, mas tudo aquilo lhe fazia nervos.
A
enfermeira era ferozmente cumpridora. Uma boa profissional:
puxava-lhe a roupa para o pescoço se o topava destapado, metia-lhe
pastilhas entre os beiços, a horas correctas ajudava-o a assoar-se
e a fazer mais coisas. Enquanto ele teve os braços em gesso,
deu-lhe a papa com um clarão de bondade nos sobrolhos perfeitamente
assustador.
O
termómetro que sempre transportava no bolsinho da bata constituía
uma realidade imprópria.
Saía
depois de o olhar com satânico interesse enfermeiral. Antes de
fechar a porta a sua mão traçava no ar um círculo cinzento e
agressivo.
A
esposa visitava-o três vezes por semana, mas isso já não o
arreliava por aí além. Ficara imunizado por dezassete anos de
matrimónio. Já estava mais que familiarizado com o seu narizinho
de coruja egoísta e com a sua voz que a passagem do tempo tornara
rascalhante. Limitava-se a ficar calado, com os olhos bem fixos no
meio do tecto. Às quatro da tarde a esposa abandonava a partida e
ia-se com o seu passo de flamingo de noventa e oito quilos. Ele
fingia que não era nada com ele.
Foi
no dia em que lhe tiraram as últimas ligaduras que ele viu as
moscas.
Eram
duas, esvoaçando solenemente na meia sombra com um ar tranquilo e
respeitável. Tinham o aspecto de moscas de sociedade, talvez já
grisalhas dos anos e ele por uns segundos raciocinou que até nem se
espantaria se lhes visse bengala e gravata.
Durante
vários dias as moscas não lhe largaram o quarto.
Eram
moscas filósofas. As suas conversas, num tom muito fino e discreto,
eram do mais alto interesse e centravam-se sobre os grandes temas do
universo: o Homem, o Tempo, a Infância, todas as coisas – enfim
– que horrorizam ou causam prazer, o Mundo, o Amor e a Morte. Um
nunca mais acabar de problemas maravilhosos e inextrincáveis.
A
ele o que mais o danava era o seu arzinho superior, como fingindo
que nem por ele davam: como se ele fosse um retrato decrépito que
para ali estivesse. E, no entanto, elas bem sabiam que ele não
perdia pitada das conversas, com os punhos o mais possível
cerrados.
Começou
a detestá-las. Precisamente no dia em que lhe tiraram o gesso da
perna direita.
No
entanto, por orgulho, nunca tentou imiscuir-se nas suas conversas.
Ainda não descera tão baixo.
Na
tarde seguinte, tarde de visita conjugal, as moscas falaram do Ser e
das metafísicas. Falaram também das estrelas e seus prestígios,
dos barcos à deriva nos mares antigos, dos astrónomos e dos reis
dos países afastados. Ele sofria tanto que foi com renovado alívio
que viu a cara-metade abandonar a cena da sua tortura.
Com
pasmo e raiva estendeu o braço e abriu a telefonia. Adormeceu ao
som dum fadinho picado em surdina.
E
sonhou sonhos esquisitos de defuntos e bosques imensos, de catedrais
e aranhas.
Acordou
ao crepúsculo. Em cima da mesa estava uma bandeja com vitualhas.
Nada se ouvia. Nem… o voar de uma mosca.
As
moscas tinham partido. Durante o seu sono pela tarde fora, tinham
decerto voado através da janela entreaberta buscando diverso poiso,
concerteza sempre debatendo entre si as coisas belas e incríveis. E
ele sentiu de súbito vontade de partir tudo, pois já lhes havia
jurado p’la pele: quando estivesse de posse de todos os seus meios
físicos, ele lhes diria. Haveria de as ensinar com decisão:
ficariam, até, sem vontade de tasquinhar o mais apetitoso bocadinho
de excremento!
Mas
o certo era que haviam partido. Inexoravelmente. E nada, pensou,
poderia fazer!
O
crepúsculo, cinematográfico e devorador, entrava aos gargarejos
para dentro do quarto. Do outro lado da porta uns passos conhecidos
crepitaram com energia.
O
dr. Varela entrou, com os óculos muito serenos.
Com
uma branda emoção a palpitar progressivamente na garganta ele deu
por si a notar, cheio de deliciosas comichões, que a cara do dr.
Varela era mesmo, mesmo parecida com a da mosca mais faladora.
(in “O pincel
honesto, contarelos para mortos vivos”)
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