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Holney Mendes, Jardim de Infância (detalhe)

 

OS ENIGMAS DO QUARTO FECHADO E DA FOTOGRAFIA ARTÍSTICA

 

(Nicolau Saião)

 

Há na Literatura Policial um tema que é o clássico dos clássicos: o quarto fechado onde algo de inusitado se passou. Dentro, um morto. Aparentemente, sem assassino. Inúmeras variações, mas um só dado exacto: a interrogação. De que maneira se oficiou? Interrogação que pouco a pouco se vai construindo/desconstruindo à medida que a novela se desenvolve e progride. Objecto sem construtor, criatura sem criador? Digamos: como uma fotografia sem máquina ou como máquina sem fotógrafo? Aparentemente, sim. E, no entanto, a nossa razão e o sentido da leitura (do jogo) dizem-nos que não pode ter sido assim. Que tudo é pois simulação – como nos retratos. E há outro corpo e outra máquina: o leitor e o livro. Duas máquinas, dois quartos, dois corpos, etc. Jogo de espelhos que forjamos ao ler e assumimos ao começar a ler (a fotografar). Em suma: no plano estrito do relato, um como de que não se conhece o porquê e naturalmente sem quem.

 

No enigma do quarto fechado a máquina (o quarto) tem algo lá dentro (o morto, a fotografia) sem que tenha havido um dedo a premir o botão. Ou antes, sem que a presença desse dedo se tenha manifestado indubitavelmente – dedo mindinho, polegar, indicador? E teria mesmo havido um dedo (o assassino)? Temos de o admitir. O que se sabe (se intui) fica então pairando sobre o que se não sabe, ou melhor: que se virá a saber lá mais para diante, unindo-se então à outra imagem em negativo.

 

Na máquina fotográfica, uma vez retirado o corpo de delito (o rolo impressionado) dá-se um imenso vazio: o corpo morto (o fotografado) vai entrar noutro mundo de martírio – molhado, quimicamente macerado para que esplenda de vida simulada. Um morto torturado que só depois de trans-figurado (des-figurado?) pode viver então de uma vida equívoca (numa carteira, num dossier, emoldurado ou plasmado numa medalha ornamental, colado num suporte próprio, trans-ferido quiçá para as páginas de um jornal). O morto, no relato, vai ter as circunstâncias da sua vida (da sua morte) analisadas, dissecadas, descriptadas. Vai ganhar exactidão, ou antes: vai ser o sinal palpável de uma exactidão reconhecível, forjadora de luz. A fotografia, por seu turno, verá os sinais da sua realidade transformarem-se paulatinamente, até desaparecerem com o passar do tempo – com o passar da luz. As inflexões, os pormenores – os habilidosos detalhes da encenação do crime – que a tornaram artística ir-se-ão dissolvendo irrevogavelmente, tornar-se-ão pertença e parte dum imenso território onde impera o desconhecido. Mas, dado que tudo é convenção (ficção dentro da ficção que um texto ou uma fotografia não deixam de ser), tudo está (fica) repleto dum sentido muito próprio: há um como absoluto, mas sem aclaramento (o flash) nunca se chegará ao quem e ao porquê (como nos retratos: ao olharmos para uma fotografia de nós mesmos é como se nos olhássemos a um espelho do passado, um espelho onde não nos conseguimos reflectir; o direito é o esquerdo e vice-versa, mas a foto está paralisada, faz parte de um além imutável). Na fotografia artística – vestígio de algo existente, ainda que simulado – o porquê ocupa grande parte da cena e antecede (justifica?) o quem e o como. Ou seja: um morto (criatura, retrato) que já não tem continente (a máquina, o quarto) e que a prazo nem terá (será?) conteúdo. Por outras palavras: a criatura sem criador nomeável, comportável, reconhecível.

 

Ao entrar no quarto (aposento, mas também câmara) o detective (a fonte de luz) começa de imediato a destruir as simulações engendradas pelo oficiante (o criminoso, o fotógrafo), tal como a brusca aparição da luminosidade ao penetrar na câmara escura destrói a película fotográfica. Há pois que saber preservar a dose apropriada de sombra (o mistério do crime, o mistério que é a matéria ela-mesma que conforma a escrita enquanto elemento palpável). Depois de solucionado, o enigma do quarto fechado evidencia os limites da arte que o possibilitou, ou seja, das encenações perpetradas para iludir a verdade dos factos: a realidade, que é o que os autores (os assassinos) tentam transformar em algo reconhecível (como uma foto).

 

A literatura não será pois tanto a criação de fantasmas (de negativos) mas o lançar de fantasmas transfigurados (os negativos transformados, reconvertidos, ou seja retratos) no tráfego quotidiano, nos foros da realidade. Tornando-os vivos dessa vida esquiva, insólita e peculiar – fotografia aproximada de algo que se sabe ilusório mas fortemente ilustrativo. No princípio há o espanto, o arrepio do mistério, à guisa do que sentiam os primitivos fotografados. Depois há a realidade, ou seja: a imobilização da fantasia, em suma – o retorno à Razão que subjaz à descriptação do crime. Na fotografia artística forja-se assim a perfeita imagem invertida do enigma do quarto fechado ou, ainda melhor, a imagem no espelho duma lente: acumulação de simulações para iludir uma realidade ultrapassada por flashes sucessivos (os raciocínios sagazes do investigador). Verdadeira acumulação de realidades presuntivas feitas para propiciar uma Realidade que é, afinal, só aparência, cópia armadilhada de alguma coisa que só o artista, o assassino, deu à objectiva a ver, ou antes – que esta só viu através duma máquina mortal. O assassino apoderou-se desta maneira do corpo do assassinado e expõe os seus vestígios a quem os quiser ver.

 

Por isso é que a fotografia é a arte obsessiva deste tempo, um tempo de homicidas: simulação encenada, não inocente – tal como o autor do relato – reflexo duma exposição à escuridão (a luz que mata, que não é a iluminação mas a destruição do objecto retratado) que qualifica o fotógrafo (o criminoso) e a sociedade que o multiplica, a sociedade de imagens em que vivemos.

 

Uma sociedade que, ironicamente, exibe e protege os sinais dos seus crimes (as fotografias). Como se o quarto fechado assim ficasse através dos anos, com o morto e os seus sinais reproduzindo-se surpreendentemente no exterior por um passe de mágica (uma revelação).

 

Como, digamo-lo assim, algo impresso na matéria existente em quaisquer retratos mortos ou vivos da possível eternidade.

 

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