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A
BURRA SURRA
(Nuno
Rebocho)
Se
a queixada do suíno por “queixada” se conhece, não é princípio
geral que por toda a parte a coisa tenha este nome. Nalguns lugares
chamam-lhe “burra”. E em Monsaraz, lá no alto, nos mirantes do
Alqueva, vila roqueira que o Sem Pavor arrancou aos mouros e o
Condestável defendeu dos castelhanos, “surraburra” é a crisma
– um petisco. E, dentando o manjar, imaginamos Sansão, ainda
hirsuto de cabeleira, fazendo-se aos filisteus de queixada em punho
com a mesma veemência de São Jorge aos dragões: apenas que a
queixada, agitada pelo herói que Dalila traiu, era de burro: os
hebreus, como os seus irmãos agarenos, tanto desprezavam o javardo
que nem para arma lhes serviam. Os fundamentalismos têm destas
coisas.
Ora,
o que achamos em Monsaraz, em especial no “Alcaide”, é queixada
de porco, surraburra e tem honrarias. Comprova o dito que do porco
tudo se aproveita, até as mandíbulas. Despojado dos pelos e das
pelancas, forram estas partes com uma pasta: é alho esmagado e
pimentão nele amassado, com sal, louro, pimenta e cravinho, umas
horas a bem apaladar. Depois, prosseguem os martírios dos restos do
suíno: em marinada, com vinho, queixada e pasta. Por fim, a burra
segue para o forno, com um pouco deste vinho, que volta não volta
se apura com mais borrifadela desta marinada.
São
estas coisas, pequenas e grandes, refasteladoras, capazes de
ressuscitar defuntos sem gritos de “milagre, milagre”, que fazem
do Alentejo a pátria, a inquestionável pátria, da gastronomia do
porco. Diga-se que o vinho alentejano, todo ele, vai a contento e
rega, bem regadinho, o repasto. Quem duvide, que se experimente: faço
apostas.
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