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PORTUGAL
- HÁ UMA NOVA LITERATURA NA FORJA
(Nuno
Rebocho)
Os
silêncios e as luzes que querem matar e os desafios dos novos
autores. Rafael Dionísio e Daniel Abrunheiro, dois casos a ter em
atenção. Felizmente, a crónica resiste. Não faz mal escrever, não
faz mal publicar.
1.
À
margem da “literatura oficial”, a regulamentada por árbitros de
elegâncias com sinecura estabelecida, aparecem textos e livros que
merecem ser chamados ao plano primeiro dos escaparates. Mas num país
onde a crítica literária inexiste e pesa o silêncio sobre quem não
vai às cortesias, pesa sobre quem arrisca vir a público a ameaça
do destino de muito cão e gato nascente: morrer afogado nos baldes
dos donos da casa. Há quem escape à ditadura dos senhores do poder
cultural (esta será questão sempre a aflorar estas prosas) para
eventualmente tropeçar no outro sufoco das excelências – o de,
como borboleta, ser atraído às luzes que podem matar. Neste perigo
incorre, entre os novos, José Luís Peixoto, que tem caminho
desbravado por um exercício de escrita a prometer-lhe prémios que
terão justificado valimento se souber escapar ao plasma das amibas
que tentam envolvê-lo. Como Peixoto há mais, que a literatura nova
está aí desatendida mas vigorosa: Rafael Dionísio, com
interessantíssima “A Sagrada Família” (edição da Associação
Chili com Carne), cheia de novidades onde o abjeccionismo roça o
sarcasmo para desvendar o mundo desse casamento entre famílias
“bem” de antanho com os novos “tios” e “tias” desta
lusitana sociedade que nos apodrece; e Daniel Abrunheiro, com um três
livros em um (“Cronicão - Gente de Outro Mundo – Noite dos
Homens Cantores”, produção Publicenso).
“A
Sagrada Família”, um texto de irreverências, de crítica mesmo
violenta, arrasadora, nihilista, desapiedada, a beber num materno
leite surrealista muita da sua construção, quase um não-romance.
Com ele, Rafael Dionísio assume a continuidade de alguma literatura
“negra” que vai aparecendo, por vezes execrável e não perdoável
por um ou outro passo que nela encontremos. E curioso é como, neste
enredo dionisiano, as aparentes “facilidades” e “concessões”
mais não são que outras faces de um salutar sarcasmo, a
aliviar-nos de crises de fígado que esta sociedade (de yuppies
amancebados com velhas nobrezas sem eira) suscita no corpo de noveis
gerações que se rebelam contra os poderes. Não se identifica esta
construção com a dos “angry young men” de sessenta, mas é-lhe,
de certo modo, e por outras vias, assumida herdeira. E anuncia-se um
estilo que, a não capitular, nos reserva surpresas.
Outro
é o caminho de Abrunheiro: prosa acutilante, feita de subtilezas
(que se perdem quando repetidas, essa uma das ciladas no modo da crónica),
de ironias à maneira de Candide, isto é, onde o bom-senso é
subversivo no pântano do senso comum. O bom livro de Daniel
Abrunheiro, recolhendo textos que vieram a público na dita imprensa
regional (jornais de Pombal), mostra-nos ainda que a crónica é
modelo redivivo, que está aí, apesar da distração dos poderes
culturais, com Abrunheiro e com outros (por exemplo, na Guarda, com
Américo Rodrigues, como ajuizadamente anotou mestre Baptista
Bastos, que vai fazendo o que pode e como pode na piolheira
nacional, honra lhe seja).
Com
estes dois casos, o de Dionísio e o de Abrunheiro, constatamos a
existência de uma literatura ainda subterrânea, a qual nos alenta:
os coisardos (ah, Anatole France) estão na crítica das armas para
o assalto à burra enfatuada de quantos, como cortiças, vão
boiando, vão derivando, de poder para poder conjuntural desde que
lhes conservem a tença e explicando, a olhos que queiram ver, que
isso de esquerda e de direita, nestes tempos de aparente democracia,
apenas está a ser chavão de conveniência e sem substância.
2.
A
par destes dois livros que destacamos, os últimos meses
trouxeram-nos à banca outras páginas que fomos lendo em busca mais
de perguntas do que de respostas. Com uma média de sessenta
livros/mês a chegar a um mercado que foge à leitura, caberá
perguntar (tese de Ana Hatherly) se não se escreve e publica em
excesso num país sem leitores. Eis questão pertinente, a merecer,
noutro tempo, mais atenção do que referência. Para já, escrever
é acto meritório: de aplaudir, mesmo que o produto deixe muito a
desejar - quem se intromete pelos caminhos da escrita, pelo menos
vai descobrindo as dificuldades e auto-educando-se para leituras.
Cresce como pessoa e cresce como público – entendendo que fazer a
mão é mister espinhoso, melhor compreenderá o sofrimento do
escritor. Por outro lado, a quantidade não angustia: pelo contrário,
é a base de onde pode resultar a qualidade. Por fim, como a grande
maioria dos livros que são fruto da circunstância de ainda se
pensar que, para ser Homem, há que fazer um filho, plantar uma árvore
e escrever um livro, tal como devemos lamentar o desflorestação do
país e a queda da natalidade, que lamuriemos a pouca escritura. Que
o mundo do abortismo e da devastação florestal não se estenda às
letras. Pelo menos isso.
E
à mão chegaram: “Chiquitita”, de Sousa Pinto, um romance
editado pela Laudamus, que sem especial mérito descobre um positivo
sentido do novelesco, a exigir mais treino de escrevinhação e
melhor atenção para a resolução dos problemas que o exercício
de escrever levanta; “A Paixão de Claude”, de José Pereira da
Costa, edição Prefácio, um romance que se confunde entre o relatório,
a crónica, a novela, mas onde se denota uma vontade de descobrir
caminhos, a reclamar do autor melhor ponderação sobre o que um
romance é, mas a não desistir; “Estórias d’Aquém e d’Além
Mar”, de A. P. Saraiva Coutinho, edição de autor, contos e crónicas
despretensiosas, onde o humor investe pelas vivências e nos
transporta para momentos de escrita quase conseguidos. Destes três
livros, “Chiquitita” exige que se diga: há um espaço, em
Portugal, para este tipo novelesco que tem sido desprezado,
injustamente. É de saudar o ensaio e de esperar mais: o mercado
existe, tanto que consome o que de bastante mau chega do estrangeiro
e é editado. Se entre nós surgirem autores que melhor respondam às
carências do público, belo! E quem isto menospreze que se recorde
que o primeiro romance de Camilo foi o “Maria não me mates porque
eu sou tua mãe”.
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