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Nicolau Saião, Sem título

 

PORTUGAL - HÁ UMA NOVA LITERATURA NA FORJA

 

(Nuno Rebocho)

 

Os silêncios e as luzes que querem matar e os desafios dos novos autores. Rafael Dionísio e Daniel Abrunheiro, dois casos a ter em atenção. Felizmente, a crónica resiste. Não faz mal escrever, não faz mal publicar.

 

1.

 

À margem da “literatura oficial”, a regulamentada por árbitros de elegâncias com sinecura estabelecida, aparecem textos e livros que merecem ser chamados ao plano primeiro dos escaparates. Mas num país onde a crítica literária inexiste e pesa o silêncio sobre quem não vai às cortesias, pesa sobre quem arrisca vir a público a ameaça do destino de muito cão e gato nascente: morrer afogado nos baldes dos donos da casa. Há quem escape à ditadura dos senhores do poder cultural (esta será questão sempre a aflorar estas prosas) para eventualmente tropeçar no outro sufoco das excelências – o de, como borboleta, ser atraído às luzes que podem matar. Neste perigo incorre, entre os novos, José Luís Peixoto, que tem caminho desbravado por um exercício de escrita a prometer-lhe prémios que terão justificado valimento se souber escapar ao plasma das amibas que tentam envolvê-lo. Como Peixoto há mais, que a literatura nova está aí desatendida mas vigorosa: Rafael Dionísio, com interessantíssima “A Sagrada Família” (edição da Associação Chili com Carne), cheia de novidades onde o abjeccionismo roça o sarcasmo para desvendar o mundo desse casamento entre famílias “bem” de antanho com os novos “tios” e “tias” desta lusitana sociedade que nos apodrece; e Daniel Abrunheiro, com um três livros em um (“Cronicão - Gente de Outro Mundo – Noite dos Homens Cantores”, produção Publicenso).

 

“A Sagrada Família”, um texto de irreverências, de crítica mesmo violenta, arrasadora, nihilista, desapiedada, a beber num materno leite surrealista muita da sua construção, quase um não-romance. Com ele, Rafael Dionísio assume a continuidade de alguma literatura “negra” que vai aparecendo, por vezes execrável e não perdoável por um ou outro passo que nela encontremos. E curioso é como, neste enredo dionisiano, as aparentes “facilidades” e “concessões” mais não são que outras faces de um salutar sarcasmo, a aliviar-nos de crises de fígado que esta sociedade (de yuppies amancebados com velhas nobrezas sem eira) suscita no corpo de noveis gerações que se rebelam contra os poderes. Não se identifica esta construção com a dos “angry young men” de sessenta, mas é-lhe, de certo modo, e por outras vias, assumida herdeira. E anuncia-se um estilo que, a não capitular, nos reserva surpresas.

 

Outro é o caminho de Abrunheiro: prosa acutilante, feita de subtilezas (que se perdem quando repetidas, essa uma das ciladas no modo da crónica), de ironias à maneira de Candide, isto é, onde o bom-senso é subversivo no pântano do senso comum. O bom livro de Daniel Abrunheiro, recolhendo textos que vieram a público na dita imprensa regional (jornais de Pombal), mostra-nos ainda que a crónica é modelo redivivo, que está aí, apesar da distração dos poderes culturais, com Abrunheiro e com outros (por exemplo, na Guarda, com Américo Rodrigues, como ajuizadamente anotou mestre Baptista Bastos, que vai fazendo o que pode e como pode na piolheira nacional, honra lhe seja).

 

Com estes dois casos, o de Dionísio e o de Abrunheiro, constatamos a existência de uma literatura ainda subterrânea, a qual nos alenta: os coisardos (ah, Anatole France) estão na crítica das armas para o assalto à burra enfatuada de quantos, como cortiças, vão boiando, vão derivando, de poder para poder conjuntural desde que lhes conservem a tença e explicando, a olhos que queiram ver, que isso de esquerda e de direita, nestes tempos de aparente democracia, apenas está a ser chavão de conveniência e sem substância.

 

2.

 

A par destes dois livros que destacamos, os últimos meses trouxeram-nos à banca outras páginas que fomos lendo em busca mais de perguntas do que de respostas. Com uma média de sessenta livros/mês a chegar a um mercado que foge à leitura, caberá perguntar (tese de Ana Hatherly) se não se escreve e publica em excesso num país sem leitores. Eis questão pertinente, a merecer, noutro tempo, mais atenção do que referência. Para já, escrever é acto meritório: de aplaudir, mesmo que o produto deixe muito a desejar - quem se intromete pelos caminhos da escrita, pelo menos vai descobrindo as dificuldades e auto-educando-se para leituras. Cresce como pessoa e cresce como público – entendendo que fazer a mão é mister espinhoso, melhor compreenderá o sofrimento do escritor. Por outro lado, a quantidade não angustia: pelo contrário, é a base de onde pode resultar a qualidade. Por fim, como a grande maioria dos livros que são fruto da circunstância de ainda se pensar que, para ser Homem, há que fazer um filho, plantar uma árvore e escrever um livro, tal como devemos lamentar o desflorestação do país e a queda da natalidade, que lamuriemos a pouca escritura. Que o mundo do abortismo e da devastação florestal não se estenda às letras. Pelo menos isso.

 

E à mão chegaram: “Chiquitita”, de Sousa Pinto, um romance editado pela Laudamus, que sem especial mérito descobre um positivo sentido do novelesco, a exigir mais treino de escrevinhação e melhor atenção para a resolução dos problemas que o exercício de escrever levanta; “A Paixão de Claude”, de José Pereira da Costa, edição Prefácio, um romance que se confunde entre o relatório, a crónica, a novela, mas onde se denota uma vontade de descobrir caminhos, a reclamar do autor melhor ponderação sobre o que um romance é, mas a não desistir; “Estórias d’Aquém e d’Além Mar”, de A. P. Saraiva Coutinho, edição de autor, contos e crónicas despretensiosas, onde o humor investe pelas vivências e nos transporta para momentos de escrita quase conseguidos. Destes três livros, “Chiquitita” exige que se diga: há um espaço, em Portugal, para este tipo novelesco que tem sido desprezado, injustamente. É de saudar o ensaio e de esperar mais: o mercado existe, tanto que consome o que de bastante mau chega do estrangeiro e é editado. Se entre nós surgirem autores que melhor respondam às carências do público, belo! E quem isto menospreze que se recorde que o primeiro romance de Camilo foi o “Maria não me mates porque eu sou tua mãe”.

 

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