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GASTRONOMIA
ALENTEJANA
(Nuno
Rebocho)
I
– Sua
excelência o caracol
O
nobre caracol: nobre porquanto tem história velha, desde tempos
romanos, quando as legiões transportavam as caracularia, grandes
caixas de rede onde os gastrópodes se criavam e reproduziam –
serviam de gratificante alimento aos soldados do Império.
Hermafroditas, com posturas várias ao ano, os caracóis estimam áreas
calcárias que contribuam para as casas às costas. Mas serão uma
praga para a horticultura se não debastados. Estupidamente, há
quem atire para a lavoura pesticidas que, se os destroem, sempre
contaminam o humano – preferível é que se comam os caracóis,
cujo valor nutritivo é elevado: uma destas pratadas terá mais
proteínas que um bife.
Os
alentejanos fizeram-se devoradores destes bichos e espalharam o vício
por outros pontos do País. Por isso, quando a Primavera vai entrada
e até que o Outono o desaconselhe, é ver pelas bermas de estradas
e caminhos do Alentejo a gente que por lá vai, catando ervagens e
postes e matos. Estão na colecta. Sacos cheios, a abarrotar. Só
por mandriice se compreende que, nos nossos dias, até os caracóis
se importem – do norte de África, calculem! Ao que chegamos.
Habituamo-nos a desprezar o trabalho, falta-nos o engenho para a
criação em caracolário, sobra a preguiça e toca de recorrer a
importações, com prejuízo da economia (a tal balança comercial)
e de portugueses – então não seria mais conveniente trazer
desempregados a vasculhar os campos e a vender o produto aos centros
comerciais? Que se importem nos anos de má abundância, como foi
este. Mas nos restantes?
Saiba-se
que o caracol português é mais saboroso que o importado, talvez em
consequência dos pastos e do clima. Talvez. E não só o riscado
(erradamente chamado “algarvio”); mesmo o branquinho. Convém é
que o habitáculo tenha já três voltas, indicativo de que o bicho
já tem idade para a panela.
MIL
E UMA RECEITAS DE CARACOLADA
Porque
se habituaram os alentejanos ao petisco? Fomes ancestrais, meus
senhores, fomes ancestrais de quando não havia carne para repasto e
se buscava no campo o que por lá houvesse que acalmasse estômagos.
O caracol calhava. O trastagano aprendeu a cozinhá-lo – com bom
sabor e pouco custo: pitadas de orégãos, mailo alho, às vezes
cebola, folhazita de louro e sal. Bastava. Com tamanha simplicidade
se granjeou um pitéu que, hoje, é árvore das patacas em muita
cervejaria que por aí se planta.
Há
variantes: na Vidigueira, por exemplo, trinquei-os eu com pitada de
poejo. Maravilha. Noutro acolhedor recanto da terra do Gama,
deliciei-me com eles temperados a hortelã da ribeira! Mas simples,
simples, cozidos em água. (Convém aqui despedir melindreiras:
porque são “ranhosos”, há quem exija que se lavem em muitas águas
– disparate! Há que lavá-los bem para lhes retirar lixos e
poeiras; quanto à baba, deixá-la, que até é saudável e ajuda a
apaladar. Não falta quem justifique o exagero da lavagem como forma
de lhe retirar a “terra” – ora. Ora, o que lhe limpa a baba e
a terra é colocá-los em jejum, por uns dias, na rede. Porque a
“terra”, se ainda for ou já for época de reprodução, essa
sempre fica lá dentro. Os “grãos” são os ovos dos bicharocos.
E com os ovos também eles ganham sabor mais amargoso).
Este
modo de cozinhar caracóis nada tem a ver com usanças francesas –
à bourgognone, ou como os
gregos fazem, uma espécie de caldeirada. Claro que há mil maneiras
de os levar à mesa: em tomatada, cozido em vinho ou em cerveja, com
nacos de chouriço, com cenoura e outros vegetais, há o caracol
salgado, há o caracol amargo, a caracoleta assada na chapa, eu sei
lá. Depende de gostos e inventivas. Cá por mim, os mais saborosos
são os cozinhados da maneira mais simples, à alentejana ou, se
assim se quiser, à moda da tasca (taberna).
No
entanto: importa que vos diga que foi no Alentejo que se inventou a
feijoada de caracóis – qual Minde, qual Samora Correia, qual
carapuça. O berço é o Alentejo, receita tão velha como a memória
dos homens e dos antepassados. Quantas vezes não foi esta feijoada
a forma de as bocas provarem carne. Abençoada invenção essa! Não
apenas porque desenrascou muito lar; também porque assim se
fabricou um manjar de se lhe tirar o chapéu. Provem, provem e
digam-me se não concordam.
O
caracol, sua excelência. Um símbolo da gastronomia alentejana,
fiquem a saber.
II
–
A memória dos cachafritos
Nos
tempos relhos, frigoríficos não havia. Nem gelo. Faltavam ao
Alentejo cumes altos onde se condensassem águas. E só pelos meados
do anterior século é que as casas abastadas começaram de receber
uns monstros a que o vulgo chamava de frigidére, como referência
à marca que se fez mais comum: a linguagem tem destas coisas, como
pelo Porto ainda hoje se designa o café de máquina a partir da
referência do instrumento – o famoso cimbalino.
Ora,
não havendo como conservar os produtos, o que fazer? Os antigos
tinham recursos: a salga, o fumado. Mas não só. No Alto Alentejo,
inventaram o cachafrito, parente do beirão refrito e do nortenho
rojão. O excelente cachafrito de coelho, que ainda se descobre por
Marvão, tem a ver com o segredo doméstico de conservar carne para
a largura do ano: coelho morto, esfolado, cozido com cebola,
conservado no pote da banha que se escondia na arrecadação da
cozinha. Cozedura simples e levemente temperada, para ficar
escondida para as necessidades de carne, sobretudo em tempo de
festas ou de abrir portas da casa a convidados de alguma consideração:
que exigiam os modos que, por então, se apresentasse do melhor que
a pobreza consentia.
Em
tais circunstâncias, a dona da casa sacava na tulha: retirava o
coelho aconchegado na gordura, trazia-o à fritadeira de barro;
enquanto a banha derretia, o coelho voltava a fritar, apaladava-se
de alho e de louro. Na Beira Baixa, o cabrito tinha fritura antes do
gordurento repouso – daí o nome, refrito.
Agora,
é raro encontrar-se este pitéu que deixa a carne quase a
desfazer-se na boca. Convirá trazê-lo à lembrança das papilas,
recolhendo-o da sabedoria dos mais velhos. É que se merece a memória,
merece a homenagem, como lhe fiz aqui há uns anos na pousada de
Marvão, nos tempos em que por lá parava mestre Fernandes. Fiquei
cliente: que bem sabia repimpar-me com o cachafrito, embalado pelo
calor do sobro a crepitar enquanto os olhos vadeavam a serra,
algumas vezes assombrado pelas trovoadas espanholas. Bons tempos.
Atentai, amigos: que se acompanhe o progresso, mas que se perdurem
as coisas que sempre embelezam a vida e projectam no tempo nosso a
antiga sabedoria.
III
–
A sopa de tomate com lembranças de Cabo Verde
Tanto
se cruzam os caminhos como os paladares. Chegando eu, da primeira
vez, aos brancos de Cuba (Alentejo) para mesendar no Lucas, deparo com a sopa de tomate, a
melhor que já devorei nas voltas do Alentejo e dei comigo a
lembrar-me do caldo de peixe da Cidade Velha, a antiga Ribeira
Grande da ilha de Santiago, em Cabo Verde: num tasco sobre a arriba,
ao ar livre, com o mar a desinquietar os olhos. Interessa saber que
esta Cidade Velha foi a primeira urbe que os portugueses construíram
quando desafiaram o mar temeroso para a rota das índias: levaram as
gentes ao arquipélago deserto e levaram sabores, que o caldo de
peixe que por lá se faz descende de certeza deste modo que achamos
pelos alentejos, como a cachupa descende do nosso cozido só que
enfarpelado com os produtos que a terra dá por aquelas bandas, tão
diferentes dos que por cá colhemos.
Faz-se
em Cabo Verde o caldo com a mandioca e o inhame. O bom do Lucas com
batata a acrescentar à couve e à cenoura. Já deparei com pimento
e nabo também. Mas a base é o caldo de peixe tomatado e ervado,
como cabe na maneira própria, alentejana, de cozinhar. De norte a
sul, do alto ao baixo Alentejo, podemos dizer que, mais coisa menos
coisa, a sopa de tomate é assim: uma sopa de peixe, especialmente
corvina. Ainda que também se faça, a norte, com bacalhau ou á
falta da corvina se opte pelo cherne, pela garoupa, pela pescada, o
que der no jeito. O melhor, sem dúvida, é um peixe de qualidade: a
corvina.
Não
tem muito que saber: a melhor cozinha do Alentejo é aquela mais
simples, sempre com recurso às ervagens do campo, o poejo, o
coentro, o oregão. Claro que o requinte exige truques e a sopa de
tomate não foge a esta regra, tal como aprendi pelos lados da
Orada. Um truque com lógica. Ora, tente-se – comece-se a cozedura
pelos vegetais: batata, cenoura, alho, cebola, nabo, pimento. A água
absorve-lhes a alma. Depois que se retiram do caldo estes
ingredientes é que nele se coze o pescado por forma que lhe passe
à carne os sabores da terra. Por fim, cozido e sonegado o peixe à
panela, fabrica-se a tomatada que segue à parte para a mesa. No
prato de sopa, com pão casqueiro, depositam-se os vegetais e o
peixe, bem regados com o espantoso caldo.
Mandam
as regras o tempero comedido: sal, logo na primeira fervura. Para
quem goste, um fio de azeite abafado na tomatada. Por mim, dispenso.
Mesmo que a receita fosse, nos tempos idos, repasto de lavrador,
esta sopa de tomate quer-se sem muitos arrebiques. Singela.
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