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Nicolau Saião, Postal de namorados (técnica mista sobre papel)

 

GASTRONOMIA ALENTEJANA

 

(Nuno Rebocho)

 

I Sua excelência o caracol

 

O nobre caracol: nobre porquanto tem história velha, desde tempos romanos, quando as legiões transportavam as caracularia, grandes caixas de rede onde os gastrópodes se criavam e reproduziam – serviam de gratificante alimento aos soldados do Império. Hermafroditas, com posturas várias ao ano, os caracóis estimam áreas calcárias que contribuam para as casas às costas. Mas serão uma praga para a horticultura se não debastados. Estupidamente, há quem atire para a lavoura pesticidas que, se os destroem, sempre contaminam o humano – preferível é que se comam os caracóis, cujo valor nutritivo é elevado: uma destas pratadas terá mais proteínas que um bife.

 

Os alentejanos fizeram-se devoradores destes bichos e espalharam o vício por outros pontos do País. Por isso, quando a Primavera vai entrada e até que o Outono o desaconselhe, é ver pelas bermas de estradas e caminhos do Alentejo a gente que por lá vai, catando ervagens e postes e matos. Estão na colecta. Sacos cheios, a abarrotar. Só por mandriice se compreende que, nos nossos dias, até os caracóis se importem – do norte de África, calculem! Ao que chegamos. Habituamo-nos a desprezar o trabalho, falta-nos o engenho para a criação em caracolário, sobra a preguiça e toca de recorrer a importações, com prejuízo da economia (a tal balança comercial) e de portugueses – então não seria mais conveniente trazer desempregados a vasculhar os campos e a vender o produto aos centros comerciais? Que se importem nos anos de má abundância, como foi este. Mas nos restantes?

 

Saiba-se que o caracol português é mais saboroso que o importado, talvez em consequência dos pastos e do clima. Talvez. E não só o riscado (erradamente chamado “algarvio”); mesmo o branquinho. Convém é que o habitáculo tenha já três voltas, indicativo de que o bicho já tem idade para a panela.

 

 

MIL E UMA RECEITAS DE CARACOLADA

 

Porque se habituaram os alentejanos ao petisco? Fomes ancestrais, meus senhores, fomes ancestrais de quando não havia carne para repasto e se buscava no campo o que por lá houvesse que acalmasse estômagos. O caracol calhava. O trastagano aprendeu a cozinhá-lo – com bom sabor e pouco custo: pitadas de orégãos, mailo alho, às vezes cebola, folhazita de louro e sal. Bastava. Com tamanha simplicidade se granjeou um pitéu que, hoje, é árvore das patacas em muita cervejaria que por aí se planta.

 

Há variantes: na Vidigueira, por exemplo, trinquei-os eu com pitada de poejo. Maravilha. Noutro acolhedor recanto da terra do Gama, deliciei-me com eles temperados a hortelã da ribeira! Mas simples, simples, cozidos em água. (Convém aqui despedir melindreiras: porque são “ranhosos”, há quem exija que se lavem em muitas águas – disparate! Há que lavá-los bem para lhes retirar lixos e poeiras; quanto à baba, deixá-la, que até é saudável e ajuda a apaladar. Não falta quem justifique o exagero da lavagem como forma de lhe retirar a “terra” – ora. Ora, o que lhe limpa a baba e a terra é colocá-los em jejum, por uns dias, na rede. Porque a “terra”, se ainda for ou já for época de reprodução, essa sempre fica lá dentro. Os “grãos” são os ovos dos bicharocos. E com os ovos também eles ganham sabor mais amargoso).

 

Este modo de cozinhar caracóis nada tem a ver com usanças francesas – à bourgognone, ou como os gregos fazem, uma espécie de caldeirada. Claro que há mil maneiras de os levar à mesa: em tomatada, cozido em vinho ou em cerveja, com nacos de chouriço, com cenoura e outros vegetais, há o caracol salgado, há o caracol amargo, a caracoleta assada na chapa, eu sei lá. Depende de gostos e inventivas. Cá por mim, os mais saborosos são os cozinhados da maneira mais simples, à alentejana ou, se assim se quiser, à moda da tasca (taberna).

 

No entanto: importa que vos diga que foi no Alentejo que se inventou a feijoada de caracóis – qual Minde, qual Samora Correia, qual carapuça. O berço é o Alentejo, receita tão velha como a memória dos homens e dos antepassados. Quantas vezes não foi esta feijoada a forma de as bocas provarem carne. Abençoada invenção essa! Não apenas porque desenrascou muito lar; também porque assim se fabricou um manjar de se lhe tirar o chapéu. Provem, provem e digam-me se não concordam.

 

O caracol, sua excelência. Um símbolo da gastronomia alentejana, fiquem a saber.

 

 

II A memória dos cachafritos

 

Nos tempos relhos, frigoríficos não havia. Nem gelo. Faltavam ao Alentejo cumes altos onde se condensassem águas. E só pelos meados do anterior século é que as casas abastadas começaram de receber uns monstros a que o vulgo chamava de frigidére, como referência à marca que se fez mais comum: a linguagem tem destas coisas, como pelo Porto ainda hoje se designa o café de máquina a partir da referência do instrumento – o famoso cimbalino.

 

Ora, não havendo como conservar os produtos, o que fazer? Os antigos tinham recursos: a salga, o fumado. Mas não só. No Alto Alentejo, inventaram o cachafrito, parente do beirão refrito e do nortenho rojão. O excelente cachafrito de coelho, que ainda se descobre por Marvão, tem a ver com o segredo doméstico de conservar carne para a largura do ano: coelho morto, esfolado, cozido com cebola, conservado no pote da banha que se escondia na arrecadação da cozinha. Cozedura simples e levemente temperada, para ficar escondida para as necessidades de carne, sobretudo em tempo de festas ou de abrir portas da casa a convidados de alguma consideração: que exigiam os modos que, por então, se apresentasse do melhor que a pobreza consentia.

 

Em tais circunstâncias, a dona da casa sacava na tulha: retirava o coelho aconchegado na gordura, trazia-o à fritadeira de barro; enquanto a banha derretia, o coelho voltava a fritar, apaladava-se de alho e de louro. Na Beira Baixa, o cabrito tinha fritura antes do gordurento repouso – daí o nome, refrito.

 

Agora, é raro encontrar-se este pitéu que deixa a carne quase a desfazer-se na boca. Convirá trazê-lo à lembrança das papilas, recolhendo-o da sabedoria dos mais velhos. É que se merece a memória, merece a homenagem, como lhe fiz aqui há uns anos na pousada de Marvão, nos tempos em que por lá parava mestre Fernandes. Fiquei cliente: que bem sabia repimpar-me com o cachafrito, embalado pelo calor do sobro a crepitar enquanto os olhos vadeavam a serra, algumas vezes assombrado pelas trovoadas espanholas. Bons tempos. Atentai, amigos: que se acompanhe o progresso, mas que se perdurem as coisas que sempre embelezam a vida e projectam no tempo nosso a antiga sabedoria.

 

 

 

III A sopa de tomate com lembranças de Cabo Verde

 

Tanto se cruzam os caminhos como os paladares. Chegando eu, da primeira vez, aos brancos de Cuba (Alentejo) para mesendar no Lucas, deparo com a sopa de tomate, a melhor que já devorei nas voltas do Alentejo e dei comigo a lembrar-me do caldo de peixe da Cidade Velha, a antiga Ribeira Grande da ilha de Santiago, em Cabo Verde: num tasco sobre a arriba, ao ar livre, com o mar a desinquietar os olhos. Interessa saber que esta Cidade Velha foi a primeira urbe que os portugueses construíram quando desafiaram o mar temeroso para a rota das índias: levaram as gentes ao arquipélago deserto e levaram sabores, que o caldo de peixe que por lá se faz descende de certeza deste modo que achamos pelos alentejos, como a cachupa descende do nosso cozido só que enfarpelado com os produtos que a terra dá por aquelas bandas, tão diferentes dos que por cá colhemos.

 

Faz-se em Cabo Verde o caldo com a mandioca e o inhame. O bom do Lucas com batata a acrescentar à couve e à cenoura. Já deparei com pimento e nabo também. Mas a base é o caldo de peixe tomatado e ervado, como cabe na maneira própria, alentejana, de cozinhar. De norte a sul, do alto ao baixo Alentejo, podemos dizer que, mais coisa menos coisa, a sopa de tomate é assim: uma sopa de peixe, especialmente corvina. Ainda que também se faça, a norte, com bacalhau ou á falta da corvina se opte pelo cherne, pela garoupa, pela pescada, o que der no jeito. O melhor, sem dúvida, é um peixe de qualidade: a corvina.

 

Não tem muito que saber: a melhor cozinha do Alentejo é aquela mais simples, sempre com recurso às ervagens do campo, o poejo, o coentro, o oregão. Claro que o requinte exige truques e a sopa de tomate não foge a esta regra, tal como aprendi pelos lados da Orada. Um truque com lógica. Ora, tente-se – comece-se a cozedura pelos vegetais: batata, cenoura, alho, cebola, nabo, pimento. A água absorve-lhes a alma. Depois que se retiram do caldo estes ingredientes é que nele se coze o pescado por forma que lhe passe à carne os sabores da terra. Por fim, cozido e sonegado o peixe à panela, fabrica-se a tomatada que segue à parte para a mesa. No prato de sopa, com pão casqueiro, depositam-se os vegetais e o peixe, bem regados com o espantoso caldo.

 

Mandam as regras o tempero comedido: sal, logo na primeira fervura. Para quem goste, um fio de azeite abafado na tomatada. Por mim, dispenso. Mesmo que a receita fosse, nos tempos idos, repasto de lavrador, esta sopa de tomate quer-se sem muitos arrebiques. Singela.

 

 

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