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João Garção, Sinfonia (técnica mista)

 

BREVE APONTAMENTO SOBRE PERCEPÇÃO EM ARTE

 

(Nuno de Matos Duarte)

 

Que estranho processo mental nos faz, perante um objecto, afirmar: “Isto é uma obra de arte!”? Por um lado, há certamente algo naquele objecto que nos induz ao reconhecimento, porque lhe identificamos determinados aspectos através da memória de aspectos semelhantes percepcionados em outros objectos. Só deste modo nos é possível dizer: “aquele objecto é (alguma coisa)”. Por outro lado, o objecto que identificamos como obra de arte incute-nos a impressão de estarmos perante algo que desconhecemos, coloca-nos perante um mistério que nos interpela e causa desconforto. Assim, há elementos que o caracterizam e que não compreendemos, ou que não conseguimos verbalizar (o objecto artístico envolve-nos numa poética). Deverá ser neste estranho jogo de confrontar reconhecimento e mistério que reside o prazer do usufruto da obra artística.

 

Na percepção da obra de arte, o reconhecimento pode corresponder a um conjunto de sinais ou convenções que nos habituámos a experimentar, os quais entendemos como sendo o seu suporte: a tela, o livro, o espaço museológico ou de exposição, a presença do instrumento que solta sons, etc. Este tipo de reconhecimento processa-se a um nível que se pode classificar de primário, tal como quando percebemos que estamos perante um rosto: «possui olhos, nariz e boca, portanto é um rosto». Neste nível primário de percepção (dura uma fracção de segundo?) não se diz «esta pessoa está triste» porque essa afirmação corresponde a um nível posterior (na fracção de segundo seguinte?). Por comparação, parece óbvio que o facto de estarmos perante uma tela coberta de tinta não significa necessariamente a vivência de uma experiência artística, ou a presença de uma obra de arte. É como se no acto de reconhecer estes sinais primários se operasse uma instantânea alteração da atitude mental do observador e este ficasse mais atento: «isto é um quadro e pode, portanto, tratar-se de arte». A função do reconhecimento a este nível é simplesmente a de “porta”, uma espécie de convite à percepção de outra realidade.

 

Pode-se falar também de reconhecimento em níveis mais complexos. Voltando à comparação com a observação de um rosto, pode nele ler-se tristeza ou qualquer outra emoção, quando olhos, nariz, boca e músculos faciais apresentam determinadas formas que, combinadas, induzem o observador a ler um “tipo” de emoção. Trata-se de “reviver”, isto é, comparar a leitura do instante presente com a memória de percepções anteriores e semelhantes, nas quais foi dado a perceber ao observador que àquela combinação correspondia uma emoção específica. Acontece o mesmo quando se olha, por exemplo, para uma tela – ultrapassado o reconhecimento do suporte, isto é, a consciência da sua materialidade como possibilidade para a presença da obra artística, reconhecem-se combinações no modo como a tinta se organiza. Essas combinações podem sugerir não só outras combinações de tinta em quadros observados anteriormente, mas também quaisquer outras coisas e factos que tenhamos presenciado nas nossas vidas. Mesmo assim, não é ainda na evidência de um reconhecimento primário e de um outro, ou outros, mais complexos que podemos afirmar que estamos perante uma obra de arte: «vejo algo a que chamo tela, emoldurada, na qual estão sugeridas, através da modelação de tintas, coisas que experimentei visualmente no passado e, como tal, recordo-me delas» (o facto de as tintas estarem ou não “bem modeladas” não é uma questão de pormenor, mas não pertence também a esta fase da explanação deste problema).

 

Conseguir reconhecer numa tela a representação a óleo de três cavalos a correr num prado, pouco ou nada diz sobre o facto de estarmos ou não na presença de uma obra de arte. Imaginemos – primeiro: uma pintura de Picasso com este tema; segundo: uma fotografia a cores feita por um amador também representando os mesmos três cavalos a correr no mesmo prado; comparemo-las. Imaginemos outra coisa – uma folha com frases soltas separadas por uma linha em branco, lemos as palavras e é uma receita de culinária; uma folha com frases soltas separadas por uma linha em branco, lemos as palavras e é um poema. A tradução verbal do que percepcionámos ao usufruir de uma obra de arte (o conjunto de palavras que escolhemos para ilustrar a percepção), embora possa descrever com maior ou menor precisão a sua configuração, pouco nos diz sobre ela, mal ultrapassando o que aqui se constatou acerca do reconhecimento. Wittgenstein em “O Livro Azul” afirmou que «(…) se quiséssemos uma representação da realidade, a própria frase seria essa representação (embora não fosse uma imagem por semelhança) (…)». Uma obra de arte é um objecto real que se percepciona e embora a verbalização de uma experiência sensorial seja uma representação da mesma será, contudo, um outro objecto também ele real. A tentativa de verbalizar a obra de arte é pouco relevante para a mesma. De pouco nos vale dizer ou escrever que «após um longo Si b4 agudo a trompete executou um harpejo no modo dórico, rápido, partindo do Dó3, etc.». A validade artística da obra assim descrita não se consegue aferir da frase que a descreve. Se disser o seguinte: «na galeria de arte estavam três ventoinhas a funcionar em cima de três cadeiras invertidas dependuradas do tecto», o resultado é o mesmo. Só levianamente se afirmaria que a primeira frase se refere a uma obra de arte e a segunda, não. Em rigor, o uso de uma linguagem especializada (ou não) na descrição da obra diz mais sobre a pessoa que a descreve do que sobre a obra de arte em si.

 

A dificuldade para o público de alguma arte moderna e contemporânea reside precisamente no facto de os artistas, na sua proposta de arte, terem dispensado a presença dos suportes tradicionais, isto é, o reconhecimento no nível classificado neste texto de “primário”, pois era (e ainda é?) através deles que o público entendia que estava perante uma obra de arte, ao ponto de confundir a arte com o seu suporte. O público confrontou-se com a dificuldade de verbalizar a obra de arte, porque quando falava de arte não era àquele tipo de objecto que costumava referir-se. Para o senso comum, arte será talvez a representação “bem feita” de um tema “familiar” num suporte “adequado”. Esta máxima compõe-se apenas de reconhecimento e será, para o senso comum, aplicável a qualquer disciplina artística. Nela reside um dos maiores equívocos em torno da arte – a obrigatoriedade de ser, à partida, classificável como fenómeno de gosto. Sobre o “gosto” em arte disse acertadamente Wittgenstein as seguintes frases: «(…)O gosto torna as coisas ACEITÁVEIS. (Por esta razão creio que o grande criador não tem qualquer necessidade de gosto; o seu filho vem ao mundo completamente formado)(…)»; «(…)Até mesmo o gosto mais refinado nada tem a ver com o poder criativo(…)»; «(…)O gosto pode ser encantador, mas não arrebatar(…)». Entender estas frases é arrumar este assunto.

 

Voltando à questão do reconhecimento em alguma arte moderna e contemporânea, pode afirmar-se que, para além da supressão do que aqui se chamou de reconhecimento primário, também houve períodos nas Histórias das Artes nos quais os artistas “baralharam” o reconhecimento nos níveis mais complexos. Consideremos as quebras radicais, às suas épocas, propostas por exemplo, por Shoenberg, Cage, Loos, Malevitch e Duchamp, não caindo no erro de julgar que estes artistas maiores só o são porque jogaram com o que descrevemos aqui como “reconhecimento”. Ao confrontarmo-nos com as suas obras há outros aspectos, para além daquele, que nos fazem afirmar: «Isto é uma obra de arte!». O conceito de ready-made introduzido por Duchamp joga com a supressão do que seria o reconhecimento primário de uma obra de arte à sua época. Em princípio, os contemporâneos de Duchamp nunca, ao olharem para o seu urinol, o relacionariam com arte por não se tratar de uma pedra trabalhada manualmente, nem de uma tela ou folha emoldurada contendo inscrições desenhadas ou pintadas. Não seria, no entanto, na casualidade de terem observado um urinol standard abandonado na rua, na posição exacta do da obra “Fontaine” (de 1917), que afirmariam que aquele objecto se tratava de uma obra de arte. Ao “jogar” com o reconhecimento primário Duchamp não o eliminou (embora aparentemente o tenha feito), apenas alargou as suas possibilidades. Continuou a ser necessária a “porta” para a arte, o convite à percepção de outra realidade. A obra “Fontaine” foi pensada para ser vista num espaço de exposição de arte e, para além disso, o título não poderia ser suprimido sem afectar a conformação da obra. Ainda hoje discutimos Duchamp através de livros de História de Arte, familiarizados com a observação de reproduções das suas obras. Apenas referenciada à arte se torna evidente que o urinol de Duchamp se trata, efectivamente, de arte, mas não há mal algum nisso porque toda a obra de arte se referencia, de uma maneira ou de outra, à arte.

 

Para considerar que um ou mais artefactos constituem uma obra de arte, costuma dizer-se que deve descobrir-se nele(s) a “intenção artística” de um ou mais indivíduos, que se manifestou na elaboração de algo que nos é revelado através dos sentidos. Mas faz sentido falar-se de “intenção artística”? Como a descobrimos ou identificamos se a intenção, a existir, existiria forçosamente apoiada na novidade e na originalidade, conduzindo os artistas para uma inevitável e insana obsessão com a consciência da cronologia da história de arte? Possuiria existência alheia à existência de espectadores? Existiria sempre no mundo composto somente pela obra e pelo seu criador?

 

Suponhamos que, passados dez anos, revejo alguém que não via desde então e que, ao revê-lo, profiro «Há quanto tempo não te via?! Estás diferente!». Possuo, como todas as pessoas mentalmente sãs, a capacidade de reconhecer alguém através do seu rosto, apesar de este se ter modificado. «Nunca tinha visto esta pessoa com esta conformação exacta de rosto, mas é através dela que a reconheço». Isto significa apenas que há particularidades e relações entre os elementos que o compõem que se mantiveram, de algum modo, para o poder reconhecer. Na percepção da arte as coisas processam-se muitas vezes de maneira semelhante. Exclamo «Ah! Isto é Beethoven!» ao ouvir uma peça musical que nunca tinha ouvido antes. É certo que quando o afecto pela obra de um artista é muito, a sensação do reencontro inesperado e nestas circunstâncias me deixa tão feliz como se do reencontro inesperado com um amigo se tratasse. Deste exemplo podem retirar-se algumas pistas sobre aquilo a que costuma chamar-se “intenção artística” (expressão tão do agrado dos defensores acérrimos da chamada “arte conceptual”). A meu ver esta expressão é absurda. Quem a usa diz, por vezes, que a “intenção artística” se reflecte em algo relativamente forte que permite, usufruindo da obra, reconhecer o seu autor, sem que ninguém diga antes «esta obra é de fulano tal». A questão que aqui se coloca é: aquilo que me faz reconhecer Beethoven num conjunto de sons tem alguma coisa a ver com um “programa artístico” pré-estabelecido pelo autor? Seguramente não. Refere Gualter Cunha na sua introdução ao poema The Waste Land de T. S. Eliot (A Terra Devastada, T. S. Eliot, Relógio d’Água, Agosto de 1999) que quando “(…) o interrogaram, numa entrevista, sobre as suas intenções em The Waste Land, Eliot, que para além de tudo foi um dos mais rigorosos e influentes críticos literários do seu tempo, respondeu: «Eu sei lá o que é que intenção quer dizer! Uma pessoa quer é ver-se livre de alguma coisa que lhe pesa no peito. Não sabemos que coisa nos pesa no peito antes de a conseguirmos tirar de lá.» (…)” Picasso afirmou o mesmo mas de outra forma: «(…) Se sabemos exactamente o que vamos fazer, para quê fazê-lo? Se sabemos, deixa de ter interesse. Mais vale fazer outra coisa! (…)”

 

A obra de arte é uma entidade autónoma da ideia de obra que o artista tinha e que lhe serviu de base para a formar. É também diferente da ideia de obra que se forma na mente do espectador. O artista, ao começar a obra, parte de algo que é dela diferente, porque a existência de uma ou mais ideias daquela obra se processa apenas a nível mental, tratando-se de um acto evanescente que se vai avolumando e esvaziando através da aceitação e rejeição de hipóteses (processo próprio da emergência da obra de arte). A “intenção artística”, a existir, seria uma impressão, conjunto de pensamentos vagos que povoam o cérebro do artista e que, apenas quando terminada a obra, se poderia revelar na plenitude do seu sentido. Ao revelar-se deixaria de ser, dando lugar a outra coisa que é, dela, diferente: a obra de arte.

 

Entende-se neste texto “intenção” por “aquilo que se pretende fazer, propósito, plano”. Quando reconheço Beethoven no conjunto de sons que formam uma sonata para piano é porque me habituei (familiarizei) à forma como Beethoven os organiza, isto é, tem modos próprios de o fazer, modos que definem o carácter original das obras que compôs. Antes de compor o conjunto de notas que forma uma peça acabada, Beethoven tinha seguramente um “propósito”, tinha “algo que pretendia fazer”; mas a este nível não pretenderia ele, tão-somente, compor uma sonata? Não é a este vago desejo de cumprir um requisito ou uma encomenda que se pode chamar “intenção artística”. Lancemos uma hipótese em infinitas: a “intenção artística” de um compositor seria desenvolver a sua obsessão com um curto segmento de melodia que queria ouvir transformado em “monumento sonoro”, porque pressente nesse segmento a capacidade de o gerar. O propósito do artista seria percorrer o caminho que vai inventando e descobrindo à medida que avança, na tentativa de resolver de forma “artisticamente satisfatória” o problema que colocou a si próprio, ou seja, a possibilidade de aquele segmento de melodia, associado a sons que ele ainda desconhece, gerar um “monumento sonoro”. O que se pretende realçar com um exemplo deste tipo é a dificuldade que existe em conciliar as palavras “intenção” e “artístico”, porque a arte está mais próxima do homem que descobre a forma do que do homem que põe em prática a forma. Não é correcto falar-se de “intenção artística”, ou de “projecto artístico” porque a obra de arte é um objecto que, para o ser, possui de algum modo em si um cunho que respira vontade de descoberta (progressiva) da forma. O projecto terminado de obra de arte é já, do ponto de vista do artista, a própria obra de arte. A “intenção artística” só existiria, bem definida, quando o artista concluísse o objecto que constitui a obra de arte mas, nesse mesmo instante, deixaríamos de lhe poder chamar “intenção artística” porque lhe chamaríamos “obra de arte”. A obra de arte é o objecto que prevalece perante todos os pensamentos incertos que ela própria desperta e nunca transparece dela nenhuma “intenção artística” porque a arte não possui “projecto de execução” do seu artistismo.

 

O que a obra de arte tem de possuir para o ser é um “artistismo”, ou seja, um “carácter” (à falta de melhor termo) que é próprio das obras de arte. O termo “artistismo” não é um apriorismo, ao passo que a expressão “intenção artística” é. O desafio para o espectador da obra de arte é a descoberta do “artistismo” do objecto que percepciona e não a descoberta da “intenção” do artista que, em termos artísticos, nunca existe. Esta argumentação não rejeita uma ideia de arte conceptual, embora se demarque claramente de um certo tipo de discurso sobre as artes no qual se usa a expressão “conceptualismo” como correspondência directa entre composição de lógicas verbais e composição dos objectos que formam a obra de arte, tomando a primeira por geradora da segunda (como se uma explicação a priori, simplista e única tornasse a obra mais “forte”). Toda a obra de arte é, por definição, conceptual, tal como quase todas as actividades humanas o são. Só através de conceitos se fazem obras de arte, mas isso não significa que estas necessitem de recorrer ao discurso falado e/ou escrito para serem “conceptuais” ou para serem arte. As palavras traduzem e/ou identificam conceitos; estes são representações mentais que edificam a complexa teia do raciocínio. Há conceitos que não são traduzíveis por palavras. Nesta categoria podemos incluir os conceitos que edificam as “lógicas artísticas”, que constituem uma espécie de repertório de “imagens mentais” que os seres humanos vão criando e coleccionando ao longo das suas vidas, transmitindo algumas e perdendo outras na sucessão das gerações.

 

Ponte de Sor, 2003/2004

 

 

Página de Nuno de Matos Duarte na Web:

http://nunodematosduarte.no.sapo.pt

 

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