O
GRANDE ESCRITOR VISTO DE COSTAS
(Robert
Musil)
É
quase evidente demais para ser comentado: desde que se haviam
convencido de que a seriedade do empreendimento não pedia maiores
esforços, seus ilustres convidados comportavam-se como seres
humanos, e Diotima, vendo sua casa repleta de agitação e espírito,
ficou decepcionada. Como alma nobre, não conhecia a lei da cautela,
segundo a qual na vida particular nos portamos ao contrário da vida
profissional. Não sabia que os políticos tomam seu lanche lado a
lado amigavelmente depois de terem-se chamado de ladrões e
vigaristas na Câmara. Sabia que juízes que, como juristas,
condenaram um infeliz a pesadas penas, depois da sessão do tribunal
lhe apertam a mão com simpatia como seres humanos, mas não tivera
nenhuma objeção a isso. Ouvira contar por vezes que fora de sua
duvidosa profissão freqüentemente bailarinas são exemplares mães
de família, e até achava isso comovente. Também lhe parecia um
belo símbolo os príncipes tirarem às vezes a coroa para serem
unicamente gente. Mas ao perceber que também príncipes do espírito
dão suas voltas incógnitos, achou aquela dupla postura muito
estranha. Que paixão é essa, que lei fundamenta essa tendência
geral, e faz com que homens fora da profissão não queiram ser os
homens que são dentro dela? Depois de encerrado o expediente,
quando estão de bom humor, parecem exatamente como um escritório
arrumado, com o material de trabalho nas gavetas e as poltronas
sobre as mesas. Cada homem é feito de dois homens e não se sabe se
é de manhã ou à noite que voltam a si mesmos.
Embora
a lisonjeasse o amado de sua alma ser apreciado por todos os homens
que ela reunira e conviver especialmente com os mais jovens, como
seu líder, por vezes ficava desanimada ao vê-lo enredado naquela
agitação, achando que um príncipe do espírito não deveria se
permitir tanto convívio com os espíritos mais vulgares, nem
deveria ser tão acessível ao mercado instável das idéias.
O
motivo residia no fato de Arnheim não ser um príncipe do espírito
mas um grande escritor.
O
grande escritor é o sucessor do príncipe do espírito, e, no mundo
intelectual, corresponde à sucessão dos príncipes pelo homem
rico, realizada no mundo político. Assim como o príncipe do espírito
faz parte do tempo dos príncipes, o grande escritor pertence ao
tempo das grandes batalhas e grandes casas comerciais. É uma forma
especial de ligação do espírito com as grandes coisas. O mínimo
que se pede de um grande escritor é que tenha um automóvel.
Precisa viajar muito, ser recebido por ministros, dar conferências;
dar aos líderes da opinião pública a impressão de representar
uma força da consciência que não se deve menosprezar; é o
encarregado-de-negócios do espírito da nação, quando se trata de
provar no exterior que somos humanitários; em casa, recebe
convidados notáveis, e além disso ainda precisa cuidar de seus negócios,
que tem de tratar com a agilidade de um artista de circo em quem não
se deve perceber o esforço despendido. Pois o grande escritor de
modo algum é o mesmo que um escritor que ganha muito dinheiro. Ele
não precisa ter escrito o "livro , mais vendido" do ano
ou do mês, basta que não tenha objeções contra esse tipo de
avaliação. Está em todas as comissões julgadoras de premiações,
assina todos os manifestos, escreve todos os prefácios, faz todos
os discursos de aniversário, manifesta-se sobre todos os fatos
importantes, e é chamado por toda parte onde se precisa mostrar
serviço. Em todas as suas atividades o grande escritor jamais
representa a nação inteira, apenas sua parte progressista, a
camada selecionada que é grande, é quase a maioria, e isso o
envolve numa constante tensão espiritual. Naturalmente é a vida
atual que leva à grande indústria do espírito, assim como
inversamente a indústria preme em direção ao intelecto, à política.,
ao domínio da consciência pública; os dois fenômenos se tocam no
centro. Por isso, o papel do grande escritor não se liga a uma
pessoa determinada, mas coloca sua figura no tabuleIro de xadrez
.social, com a regra do jogo e as obrigações de seu tempo. As
pessoas bem-intencionadas desse tempo dizem que pouco lhes adianta
alguém ter espírito (existe tanto dele que um pouco mais, ou um
pouco menos, não importa, e todos pensamos ter o suficiente), mas
que se precisa combater a barbárie, e por isso se deve mostrar,
ver, fazer agir, o espírito; e como, para isso, o grande escritor
é ainda melhor do que um escritor maior, o que talvez poucas
pessoas consigam entender, todos se esforçam para que a grandeza
apareça em tamanho grande.
Se
compreendermos o caso sob esse prisma não se pode censurar
seriamente Arnheim por ele ser uma das corporificações primeiras,
experimentais, embora bastante perfeitas, dessa condição, já que
ele era talentoso para isso. Pois a maioria dos escritores gostariam
de ser grandes escritores, se pudessem. Porém, isso é como com as
montanhas: entre Graz e Sankt Pölten há muitas que gostariam de
parecer o Monte Rosa, só que são baixas demais. A condição
indispensável para ser grande escritor é escrever livros ou peças
teatrais que sirvam para todos os níveis de leitor. E preciso fazer
efeito, para poder então fazer boas realizações; esse princípio
fundamenta a existência do grande escritor. É um princípio
maravilhoso, que defende contra as tentações de solidão, é o próprio
princípio goethiano do sucesso: basta nos mexermos neste mundo amável
e o resto virá por si.
Quando
um escritor começa a fazer efeito, sua vida se modifica. Seu editor
pára de dizer que um comerciante que resolve ser editor parece um
idealista trágico, porque ganharia muito mais vendendo tecidos ou
papel branco do que vendendo livros. A crítica descobre nele objeto
digno de seu trabalho, pois críticos nem sempre são gente ruim, são
apenas, por força dos tempos adversos, ex-poetas líricos que
precisam encostar o coração em alguma coisa, para desabafar; são
poetas líricos do amor, ou da guerra, conforme o capital interior
que precisem aplicar favoravelmente, e é compreensível que
prefIram aplicá-lo no grande escritor e não no escritor comum.
Naturalmente, cada pessoa tem uma capacidade limitada de trabalho, e
seus melhores esforços aplicam-se às novidades brotadas anualmente
das canetas dos grandes escritores. Assim, estes tornam-se as
cadernetas de poupança intelectual da nação, na .medida em que
cada um provoca interpretações críticas que não são apenas
explicações, mas aplicações, e para o restante pouco sobra. Mas
isso só assume grandes proporções com os ensaístas, biógrafos e
historiadores instantâneos que fazem suas necessidades em cima do
grande homem. Com todo o respeito, se os cães preferem uma esquina
movimentada a um rochedo solitário para suas necessidades, por que
as pessoas dotadas do nobre impulso de perpetuar seu nome deverão
preferir um rochedo notoriamente solitário?! Quando se dá conta, o
grande escritor não existe mais por si, mas antes numa simbiose,
resultado de uma comunidade de trabalho nacional, no sentido mais
refinado, experimentando a mais sublime certeza que a vida nos
poderia dar: a de que seu êxito se liga intimamente ao de inúmeras
pessoas.
Provavelmente
é por isso que muitas vezes encontramos como traço geral do grande
escritor o seu bom comportamento. O grande escritor só usa uma
escrita combativa quando sente ameaçado seu prestígio; no
restante, seu comportamento é marcado pelo equilíbrio e benevolência.
É tolerante à perfeição com as ninharias que dizem em seu
louvor. Não se digna facilmente a comentar outros autores; mas,
quando o faz, raramente lisonjeia homens de alto nível, preferindo
estimular um desses talentos inofensivos, feitos quarenta e nove por
cento de capacidade, e cinqüenta e um por cento de incompetência,
e que, devido a essa dosagem, são tão úteis sempre que se precisa
de uma força, mas um homem forte poderia prejudicar , que cedo ou
tarde terão algum posto influente na literatura.
Mas,
assim, já não teremos mais do que caracteriza unicamente o grande
escritor? Um bom provérbio diz que, onde há pombas, aparecerão
outras pombas; é difícil imaginar a agitação da vida de um
escritor comum bem antes de ele se tornar um grande escritor, quando
ainda é mero resenhista de livros, redator da página literária,
produtor de rádio, roteirista de fume ou editor de um jornalzinho
literário; muitos deles parecem burrinhos ou porquinhos de borracha
com um furo atrás por onde os enchemos de ar. Quando vemos grandes
escritores analisando laboriosamente essas circunstâncias, esforçando-se
por construir com elas a imagem de um povo trabalhador que honra os
seus grandes, não lhes devemos agradecer? Seu interesse enobrece a
nossa vida.
Tentemos
imaginar o contrário: um homem que escreve mas não faz nada disso.
Teria de recusar convites cordiais, rejeitar pessoas, avaliar o
elogio, não como elogiado mas como juiz, criticar fatos naturais,
considerar suspeitas as grandes possibilidades de sucesso só por
serem grandes, e nada teria a oferecer como compensação senão
acontecimentos indizíveis e imponderáveis dentro de sua cabeça, e
a sua obra de escritor, que uma era onde já existem tantos grandes
escritores não precisa mesmo valorizar muito! Um homem desses não
ficaria à margem da comunidade, tendo de afastar-se da realidade
com todas as conseqüências desse ato?!
Essa
era pelo menos a opinião de Arnheim.
(O
homem sem qualidades. Tradução de Lya Luft. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1989)
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