SONETOS SHAKESPERIANOS
(Maria da
Conceição Paranhos)
A VOZ QUE
OUVES
A voz que ouves
agora cai no incerto
momento de amanhã
e de segredo,
um dia estará
morta em seu deserto,
num mundo cego,
relegada ao ermo.
Apenas canto. É
assim, assim que sou.
Canto porque não
sei se fico ou vou.
Nada predigo:
nossa história muda
como mudam as
formas de Proteu.
Nos meus dias
apenas este canto.
lembra de mim,
pois nada mais sou eu.
Quando me renderá
na minha sorte
a experiência
extrema dela, a morte?
Quero afundar no
seu olvido límpido
pois só cantei,
sem sequer ser ouvido.
ONDE ESTÁS,
ONDE ESTÁS
Onde estás, onde
estás que te esqueceste
de aparecer na
casa que te cabe,
afastada de ti
que te aqueceste
num corpo de
mulher que sempre arde
por tua voz
infiel? Dita essa memória
agora, que te
quero. Quando abria
o dia de meu
fado, eu auscultava,
como o sol, novo
e velho a cada dia,
tua magia no
peito que pulsava.
Ergue, musa de
fogo, a face antiga
onde o tempo
esculpiu amor e intriga
— e se também o
fez em minha vida
doou-me o meu
sustento, este meu verbo
para conter a
foice quando chegue.
O DESEJO DO
BELO HABITA
O desejo do belo
habita a alma,
mas o temor é que
se apague e passe,
quando o tropel
das horas se abater
sobre a figura
prima da beleza.
A memória não
traia a realidade,
todavia, fixada
na centelha
do rápido fulgor
de uma lembrança —
alimenta esta
flama em teu caminho,
apesar de cruel o
esto dos dias.
Sopra frescor no
mundo envelhecido,
arauto da doçura
em primavera.
E nós com nosso
verso suplicamos
piedade aos
errantes dessa estrada
— seu
roteiro é ceifar-nos para o nada.
AS HORAS COM
MÃOS ENGENHOSAS
As horas com mãos
engenhosas
teceram no olhar
dos humanos
a face fugaz da
beleza.
Tateamos no
escuro denso,
buscando a visão
soberana.
Sopra o vento no
descampado
e destrança a
breve urdidura.
Nossos olhos não
mais divisam
a miragem da
formosura —
cela volátil do
sublime.
É a mão do tempo
que nos priva
do que pensávamos
perene.
A lembrança
absorve fiel
o instante
tornado indelével.
QUANDO O
PASSAR DOS ANOS
Quando o passar
dos anos se arrastar
frente à janela
onde esperaste o amado,
não te aflijas em
vão, pois ao findar
o passageiro bem
da mocidade
persiste o teu
desejo e a tua chama —
o ardor do teu
amar não tem idade.
Porém, se mesmo
assim te atormentares
ao lembrar os
olhares deslumbrados
com o frescor de
tua boca e de tua pele
sedenta de
carícias e de beijos,
reflete só um
pouco: os anos idos
podem ter sido
duros e amargados,
e não padeces
mais da longa espera
de um desprezado
amor, louca quimera.
(In Poemas da
luz inesperada - Leia o texto completo dos
Sonetos Shakesperianos)
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