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Nicolau Saião, Postal de namorados (técnica mista sobre papel)

 

"Insônia" e outros poemas de Maria da Conceição Paranhos

 

Insônia

Fábula

Soneto de coita de amor

O novo torso de Apolo

Soneto da premonição

Soneto do projeto da semana

4. Quinta-feira

Três poemas colhidos do agora

Poemas de amor não são sempre ridículos

 

 

INSÔNIA

 

A Lolita Walter

 

Assovio de boêmio errante

rasga o ventre de noite insone,

assovio de metal selvagem

passeia em horas de cinzas

pelos postes vigilantes –

guardiões de toda vida

condenada a morrer

nas madrugadas.

 

Assovio de boêmio, em vagas,

ondas na vigília dos que oram,

esperam, desesperam-se.

Assovio como um trem

no sonho já puído

de vidas a cumprirem-se

em manso percorrer de idades.

 

Assovio como um tambor –

percutindo na história

de um perdido amor,

uma perdida glória,

vidas melancólicas.

Assovio como guindaste

recolhendo as sobras

de um dia já perdido.

 

Gargalhada, agora, nesta noite,

soluçando no assovio

do boêmio errante,

irmão das ruas curvas,

das figuras de sombra,

das visões, adeuses.

 

Ó subúrbio encantado da memória,

trazei-me, de volta, o meu amor.

 

 

 

FÁBULA

 

Eu sou a boca,

e o mundo passa,

sem pressa,

entre meus dentes.

 

Lobo cresci,

e de voracidade

excedi o mundo

(perdi o mundo).

 

Lobo cresci nos montes,

e como esquecer

o silêncio,

a tocaia?

 

                                                De lobo, a solidão,

o repúdio,

o noturno gemido.

 

De lobo, a ânsia

das águas virgens,

essa gula.

 

De lobo, a fome

no estômago medroso

das horas.

 

De lobo, a maldade

suicida

(morte do lobo,

a saciedade).

 

A fauce guarda

a forma do lábio.

O beijo

não murchará para sempre.

 

 

 

Inéditos de COITA DE AMOR (2003-2004).

 

 

SONETO DE COITA DE AMOR

(Ditado por um cavaleiro à sua amada distraída em despetalar uma rosa)

 

A rosa, palpitando em meus dentes, ornasse

a cortina mais densa de brasa em meus beijos!

Mas, escrínio e mudez, tu te envolves em seda,

enquanto, com a cravelha, procuro o cadeado.

 

Imagino em minha boca o sabor mais desperto,

engrossando minha febre, num alcance de enlevo

– melhor é deslembrar esse enlace gozoso,

e bebê-lo no dia, a pascer horizontes.

 

Te imagino no leito, sonho ou devaneio,

eu, besta grave e lenta, libando teu peito,

para te oferecer cascatas de deleite.

 

Mas que importa! Rasguei, em incalculáveis horas,

com o desejo em fervor de adentrar a tua cona,

a concha de tua mão, roçando a língua morna.

 

 

 

O NOVO TORSO DE APOLO

 

Eu só vi tua cabeça e a percebi inteira.

Quando as pupilas amadureciam, eu vi

teu torso a brilhar mais do que uma tocha acesa,

na qual o teu olhar, de si mesmo saído

 

detém-se e reverbera. Ou então não poderia

teu mamilo cegar-me, e nem a doce curva

dos rins teria mãos de abrir o meu sorriso

até este teu centro, donde o sexo uiva.

 

Diversa vejo a carne densa e inaugurada

sob a curva de seda – nos ombros, a imagem.

Meu ser não fremiria, na pele selvagem,

 

e nem te deixarias além de suas raias

qual astro que se mira – nele não há quina

que não me toque, lenta, e diga: dá-me a vida!

 

 

 

SONETO DA PREMONIÇÃO

 

A ciência de saber que a vida segue

não diminui a dor de te perder.

Foste tu que bateste à minha porta,

abri-a par a par, e sem temer.

 

Entraste deslumbrado, eu, generosa -

vivera mais que tu, sempre a me ter,

doesse a corda louca e uivasse a rosa,

eu me esmerava em ser como mais ser.

 

Sei que um dia essa febre vai passar,

e vou lavar meu corpo com cuidado,

apagando o roteiro do desejo.

 

Espera e agora escuta: há um alarme no ar.

Em nossa porta, foi estilhaçado

o cadeado azul de nosso beijo.

 

 

 

SONETO DO PROJETO DA SEMANA

 

Não te perturbe a dor, pois o destino

impõe seu bem em tudo ao que convida

o nosso amor. Quero-te mais que a vida

e se assim não sentira, fora indigna

 

de percorrer os dias da semana

amando-te sem trégua, eu, menina,

no teu peito estelar, sou diamantina,

comungando teu corpo em nossa cama.

 

O meu amor por ti é um breviário,

se toma-nos o tempo em sua frágua

nós esquecemos sempre, mas sem mágoa.

 

O teu contentamento é o meu fadário:

de meu amor tu és milionário.

Se tu és minha sede, sou tua água.

 

 

 

4. QUINTA-FEIRA

 

Corpo meu tão gentil, minha alma ardia,

viajando em teu mastro – n’ alma o vejo,

e mantenho minha flama: é meu desejo,

conservar a tua luz lume em meus dias.

 

Ao mirar o teu sono, se esbraseiam,

o meu corpo e a minh’ alma, e é tão sobeja

a impaciência a singrar por teu beijo

em naves de paixão – que se encandeia,

 

presa, minha vida – em uma só cadeia!

Ditosa aquela sina, que se atreve

a apagar ardentias e tormentos

 

em momentos que a tinta não transcreve!

Possuem-me, Senhor, teus elementos,

enquanto gelo em fogo e fuljo em neve.

 

 

 

TRÊS POEMAS COLHIDOS DO AGORA

 

 

1. A INQUIETANTE TRANSILVÂNIA

 

Há caminhos de perder,

caminhos a se perderem.

Ser, no inquietante ser,

o meio.

 

Há paisagens por se abrirem,

paisagens por descobrirem

do gesto fugaz, temível,

o nexo.

 

Há felinos na retina,

e asma esgarçando o peito,

agoniza em turvo ar,

um vulto.

 

Há dançarinos e tangos,

vampiros sorvendo o sumo

de uma artéria adormecida,

sem pulso.

 

Há fileiras de canções,

vozes crescendo em rumor,

mas não se avista de quem,

o grito.

 

 

2. PÁSSARO NO ESCURO

 

Passavam multidões

no olho entrecerrado,

e um punhal se abatia

e uma estrela transida.

 

Desdobravam-se filas

de aboio inumerável,

e os rebanhos pastavam

o segredo mais doce.

 

Houvera uma cancela,

uma cantiga nela,

e o córrego corria

aos pés de vento acesos.

 

Havia um mastro, e vela,

singrando mares élates,

e a âncora caía

na areia agora muda.

 

Disseminavam-se sons

rasgando a hora antiga,

e uma adaga fria cortava

os pulsos do domingo.

 

Caiu uma pedra turva

na limpidez do lago,

e um triste olho do pássaro

minou linfa plangendo.

 

Os olhos só fitaram,

brunidos na vigília,

o peitoral das trevas

e aquela ave suspensa.

 

 

3. CANTIGA

 

As asas de um beija-flor,

no jardim veloz das horas,

descerrou a face estrema

com seu sorriso de apelos,

 

distendido na asa tarda

da ave de brisa endormida,

colhido no hálito fresco

do amor e de seu segredo.

 

Corola de passarinhos,

em nuanças de ouro e seda,

distendia um beijo meigo

e instalava um só convite.

 

O rosto amado se esmera,

por entre a cerração verde,

meio a fila de lanternas

nas luzes de um dia ameno.

 

Quando a ave move suas asas,

já se assentou o mistério,

do coração, da plumagem,

e das mãos, só de sossego.

 

 

 

POEMAS DE AMOR NÃO SÃO SEMPRE RIDÍCULOS

 

...ao revés, céleres e imantados,

persistem, insistindo, na voz

de quem os decifre

do coração da vida

demorado,

tarde da noite,

ou em clara madrugada

de êxtase,

de onde continuam

a ditar mais palavras

de mais um poema,

um poema,

antes que a noite se instale,

e o desolamento.

 

 

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