A
LEMBRANÇA DA PERDA NA POESIA DE OLNEY SÃO PAULO JUNIOR
(Miguel Carneiro)
[...] Às cidades cheguei em tempo de
desordem,
com a fome imperando.
Junto aos homens cheguei em tempo de
tumulto,
e me rebelei com eles.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
[...]
Vós, que vireis na crista da maré
em que nos afogamos,
pensai,
quando falardes em nossas fraquezas,
também no tempo sombrio
a que escapastes.
Vínhamos nós então mudando de país mais
do que de sapatos,
em meio às lutas de classes,
desesperados,
enquanto apenas injustiça havia e
revolta nenhuma.
[...]
Mas vós, quando chegar a ocasião
de ser o homem um parceiro para o homem,
pensai em nós
com simpatia.
(Bertolt Brecht, in Aos Que Vão
Nascer, tradução do grande poeta brasileiro Geir Campos)
Quando o cineasta americano Orson Welles
(1915-1985), autor do lendário/antológico Cidadão Kane
(1941), esteve pela primeira e última vez no Rio de Janeiro,
procurou a Cosme Alves Neto, da Cinemateca, notícias do cineasta
baiano Olney São Paulo, (1936, Riachão do Jacuípe – 1978, Rio de
Janeiro), pois o considerava um dos melhores da safra brasileira dos
anos 60 e queria vê-lo e parabenizá-lo pela grande obra que tinha
realizado.
Glauber Rocha, ícone do cinema novo
baiano, em seu livro Revolução do Cinema Novo, (Alambra/Embrafilme,
Rio, 1981), nas páginas 364 a 367, assim escreve sobre Olney São
Paulo: “Olney é a Metáfora de uma Alegorya. Retirante dos sertões
para o litoral – o cineasta foi perseguido, preso e torturado. A
Embrafilme não o ajudou, transformando-o no símbolo do censurado e
reprimido. Manhã Cinzenta é o grande filmexplosão de 1968 e
supera incontestavelmente os delírios pequeno-burgueses dos
histéricos udigrudistas. Montagem caleidoscópia desintrega signos da
luta contra o Systema – plafleto bárbaro e sofisticado,
revolucionário a ponto de provocar prisão, tortura e iniciativa
mortal no corpo do Artysta. O Cinema Nordestino, Cinema Popular
metaforizado em Olney e Miguel Torres, vítimas dos invasores –
Heroys do Brazyl!”
Olney, meu primo, morreu cedo, deixando
filmes significativos para a filmografia mundial. A sua obra
emblemática/clássica Manhã Cinzenta (1968/69) arrebatou em
1972, no Festival de Oberhausen, na Alemanha, o Prêmio Lênin da
Paz. Preso pelo regime militar, o cineasta Olney São Paulo foi
obrigado a entregar os negativos e as cópias de seu Manhã
Cinzenta. Mas uma delas ficou escondida na Cinemateca do MAM por
vinte cinco anos. Cosme Alves Neto, então diretor da Cinemateca do
Museu de Arte Moderna do Rio, havia escondido essa cópia boa, em 35
milímetros, com título diferente na tampa da lata para driblar a
censura dos famigerados militares.
Seu enredo mistura ficção e realidade, e
gira em torno das passeatas contra a ditadura militar ocorridas em
1968, às vésperas do Ato Institucional n.º 5, mas a história de sua
produção tem lances mais fantásticos que um romance histórico.
No relato do tomo “Brasil Nunca Mais”,
com prefácio de Dom Evaristo Arns (Petrópolis, Vozes, 1985), na
página 161, diz: “Por ordem do próprio ministro da Aeronáutica
foi instaurado inquérito contra o cineasta Olney Alberto São Paulo,
no dia 19 de novembro de 1969, acusado de atentar contra a Segurança
Nacional através de seu filme “Manhã Cinzenta”. O filme fora
interditado pela Censura Federal e, assim mesmo, exibido em festival
internacional de Viña del Mar, no Chile. Os autos apontam como
propaganda subversiva, nesse filme, a inclusão de cenas gravando
choques de rua entre policiais e estudantes, durante o ano de 1968.”
Nunca mais se falou de Olney São Paulo.
Veio, há seis anos atrás, a jornalista Ângela José se debruçar sobre
a sua obra, o que resultou em dissertação de mestrado na
Universidade de São Paulo (USP), e virou o livro Olney São Paulo
e a peleja do cinema sertanejo (Editora Quartet, São Pulo, 1999,
208 páginas), e se calaram. Ninguém aborda a contribuição que ele
também deixou para a literatura baiana com seu belo livro de contos
e novelas A Antevéspera e o Canto do Sol, publicado em 1969,
pelo José Álvaro, Editor, com prefácio de Alex Viany, renomado
crítico da sétima arte. E vive o povo a pensar que Olney é filho de
Feira de Santana. Nessa obra, a nossa avó Judith Carneiro de
Figueiredo, “Vovó Judith”, também chamada de “pêlo de onça”,
é revisitada. A velha Judith, anárquica, destemida e terna deixou
muitas raízes na alma de Olney e de seus inúmeros netos... A nona
descendia da linhagem dos “Carneiros”, que era “de origem muito
antiga, procedente da Espanha ainda no século XII, vivia junto à
Serra do Carneiro, Dom Pedro Anes, Senhor das terras de Valderez,
que tomou para si o sobrenome de Carneiro. Rico-homem, importante
por sua presença junto ao Conde Dom Henrique, iniciante da Casa
portuguesa, foi feito, por este nobre da corte, Conselheiro Militar.
O Brasão de Armas Lhe foi concedido somente em 1.141, por Dom Afonso
Henriques.” (In Armorial Lusitano, Porto, 1948).
Na região do Vale dos Tocós (Serrinha,
Ichu, Candeal e Riachão do Jacuípe) os “Carneiros” se estabeleceram
por volta de 1741 (segundo o Dr. Antônio Jose de Araújo, in
A Família de Serrinha, Serrinha, Tipografia O Serrinhense,
1926, pág. 80), erguendo pequenos núcleos que mais tarde se
transformaram em arraial e viraram cidades no ermo daquelas
caatingas de pau de rato e velame. O bisavô paterno de D. Judith foi
um dos fundadores da cidade de Riachão do Jacuípe e o primeiro
professor público daquela urbe. Era dono de meia banda de terras da
fazenda “Riachão”, comprada aos herdeiros do Conde da Ponte.
Descendia dos antigos “Carneiros” do Bomsucesso, uma das primeiras
fazendas daquela região, ao lado de Mumbuca, Baixa da Areia e
Tambuatá. Um sobrinho ilustre da velha Judith, filho de José
Presídio, que morava em Baixa Grande, fora Joel Presídio, deputado
estadual e grande tribuno na época do governador José Joaquim
Seabra. Também eram seus primos carnais o General Canoa, irmão do
saudoso senador Nelson Carneiro, autor da Lei do Divórcio, e também
o Dr. Manuel Carneiro de Souza Bandeira, pai do poeta modernista
Manuel Bandeira, que morava em Recife. Mas nesse país sem memória de
cineastas, produtores e intelectuais frouxos, falar de Olney São
Paulo, parece que causa transtorno a essa elite podre que domina o
país e o nosso estado, a Bahia.
A chuva castigava o falso teto que me
abrigava.
Afora isto, silêncio e frio.
Tão bom era aquele cobertor puído,
gasto.
Se tivesse sabido o quão importante
seria,
Já na época teria chorado de saudades e
melancolia.
Tais tardes de chuva, com seus cheiros
de terra,
Sonhos de aconchego me davam.
Minha alma embalada no sussurrar da
chuva.
Meu corpo aquecido deste calor.
Temperatura vigiada pelos olhos cegos da
minha mãe.
Hoje, ainda cega, vigia e controla o
calor que me cuida.
Mas aquele enxarco de vida,
Açude onde minhas cabras bebiam com seus
olhos costurados,
Congela no tempo.
A esponja úmida de amor tingiu-se em
barro.
O cobertor tornou-se mortalha.
Demente, afundo os pés
Na lama infértil de minhas lembranças.
Nunca mais dormi de tal forma.
Nunca mais senti o cheiro da chuva.
Meus olhos nunca mais descansaram
tranqüilos.
Sou como minhas cabras gritando de
sede...
Durmo e acordo eternamente.
Tal qual minhas cabras,
Com meus olhos costurados,
Ferida aberta em pus,
Chorando as pedras que não entendi.
(Olney São Paulo Junior, “Mármore de
Sonho” (inédito), do livro no prelo Cristo de Cinzas)
Nessa esteira surge o seu primogênito
filho Olney São Paulo Junior (1962), poeta, músico, ator e cidadão
francês. “Olneyzinho” ou “Neiinho”, como carinhosamente o tratamos,
aportou há cerca de três anos atrás em Salvador, vindo de Paris,
onde lá tem domicilio e família e aqui com a saudade no talo de sua
“Mãinha” e “Vò Zali” passa essa chuva de manga entre nós. O poeta
Mário Faustino (1930-1962) escreveu certa feita: “Dois
poetas trabalham na oficina que compartilham. Nas horas de trégua,
quando guardam fatigados o silêncio, discutem seu ofício. Não
pretendem dizer-se novidades, nem um ao outro expor-se à
admiração;querem somente esclarecer, fixar e trocar experiências”.
(In Poesia- Experiência, Perspectiva, 1977)
A poesia de Olneyzinho vem afirmar
isso, pois, como o mesmo Mário Faustino disse, “ que poesia?
Aquela que está, ou não está, tanto quanto em outros lugares, no
poema? Ou o próprio poema? Ou um grupo de poemas? Ou o conjunto de
todos os poemas? Ou a arte, o artesanato, a ciência, a técnica, o
labor, a profissão, o rito, a feitiçaria, o sacerdócio, a religião,
a missão, a mistificação, o dom, a benção, a maldição, a tragédia...”
(In obra citada). A poesia de Olneyzinho São Paulo é um
almanaque repleto de vários sentimentos esquadrinhados, nobres, e
entre eles a perda que povoa o imaginário desse Cesário Verde
feirense. A busca por um tempo que já não mais existe, perdura no
universo poético e o mármore eterno como o bronze condensa um tempo
inatingível no qual só em quimeras o poeta transportado por Morfeu
tenta recolher lembranças remotas. A função de um poeta é celebrar
um tempo que não mais existe ou testemunhar o seu próprio tempo? Na
poesia de Olneyzinho o tempo é senhor de si, celebrado como uma
via-sacra com suas estações e sofrimentos. Perpassa no limbo de seu
labor poético uma religiosidade da Idade Média, resquícios do
catolicismo estóico, legado por seu bisavô que ele também teve o
privilégio de conviver, o velho tabelião Augusto Asclepíades de
Oliveira, em terras da Queimada da Boa Vista, Campo Alegre... Onde a
experiência religiosa é percepção do absoluto interpretado como
sagrado. E diria São Tomás de Aquino: “o grau supremo do
conhecimento humano de Deus é saber que não se sabe o que é Deus,
enquanto justamente damo-nos conta que o que Deus é supera tudo o
que compreendermos dele”.
E nesses tempos de crise o poeta tem a
sua mão o destino da linguagem. E, recorrendo novamente a Faustino,
para entender a poesia de Olneyzinho: “O poeta contemporâneo tem
de ser perigoso como Dante foi perigoso: uma força respeitável
frente às demais forças sociais. Do contrário, no entontecedor
movimento rumo-Norte a que assistimos em nossos dias, a poesia seria
qualquer coisa de marginal, menina chorona ou risonha, abandonada à
beira de uma auto-estrada de tráfego intenso” (obra citada, pág.
38/39). Mas é pelos meandros do verso livre, pela busca de uma
reparação, que São Paulo Junior empreende seu caminhar poético:
Dormíamos no mesmo quarto, na mesma
cama.
Seus pés em minha cabeça,
Meus pés em sua cintura.
Para mim, a vida era acordar.
Seus soldados de chumbo cheiravam a
chocolate.
Não tínhamos chocolate.
De onde vinha tal cheiro?
Um rezava enquanto calçava, com jornal,
seus sapatos.
Rezava e benzia-se do presente,
Pressagiando o sofrimento de seu futuro
imediato.
O outro, tímido, sonhava, filosofava,
Polindo, na pedra bruta, sua alma.
Eu e o outro simplesmente brincávamos.
Caíamos da bacia na hora do banho.
Eu fazia planos para o futuro.
Ele tinha medo do presente.
Acreditávamos no canto.
O grito desesperado de liberdade.
Para nós, a canção cantava.
Solitário, percorria o projeto de
cidade.
As levas de ciganos e pistoleiros,
A feira do rato,
O campo do gado.
Passava horas vagando.
Vagabundeando pela cidade.
As cebolas podres,
O alho macho no bolso.
Ali, terra sem futuro,
Minha solidão tornava sólida e real
A minha existência.
(“Quimeras”, op. cit.)
Feira de Santana,
Penteaste meus cabelos longos,
Com tuas mãos cegas.
O brilho oculto de teus olhos,
Iluminou minha ilusão de vida.
Foste, és e serás,
Eternamente,
Os nós de meus cabelos finos.
Eternamente,
Os acordes no canto do cancão.
Foste em mim o êxodo da alma.
O caminho frente a meu passado.
Origem real e desespero.
Quanto gosto
De tuas mãos em meus cabelos.
Feira de Santana,
Menina dos Olhos D’água.
Banhaste em tua seiva
As dores de minhas costelas.
Estrela em meu Norte perdido.
Jamais encontrei meu Equador.
Desatinado entre dois trópicos,
Espero meu equinócio final.
Mas, de fato,
O que importa é a busca.
E até hoje busco,
Em teus olhos cegos,
O amor fecundo
Que me deste,
E que em mim secou.
(“Luz Cega” (inédito), op.cit.)
“Se o mundo é ‘o Vale do Fazer Alma’,
segundo uma frase de John Keats , a alma tem uma relação eletiva
com a morte, uma invencível necessidade suicida, uma filiação com o
mundo inferior. Por que qual é, se não a morte, o fim consciente ou
recalcado de cada vida? E é então exatamente a perda de um estreito
e consciente relacionamento com a morte, com a incerteza
indispensável à vida, com a onipresença dos ínferos, a sancionar
aquela ‘perda de alma’ na qual Hillman vê o pecado mortal da cultura
ocidental moderna”. (Silvia Ronchey, in A paixão de Hillman
pela alma)
Na poesia de Olneyzinho a morte espreita
atrás da porta, e a perda persegue os porões de sua alma sertaneja,
brasileira e universal, e os seus versos vêm revestidos de doçura,
apesar de todo o sofrimento. E essa candura que chega aos nossos
ouvidos é semelhante a canções, como se fossem cantadas pela doce
voz de um João Donato. Em seus poemas a infância vem embalada por
episódios, sensações e testemunhos. O poeta feirense encontra no
passado leitmotiv para empreender a sua arte poética. E a
lembrança terna daqueles que se foram permanece povoando o seu
imaginário poético. É como se o poeta tentasse reinscrever um tempo
que já não mais existe, mas tempo esse vivido que é a razão/emoção
na sua alma de poeta e que celebra como forma de reencontro consigo
mesmo. A poesia de Olneyzinho se faz paixão, em renúncia na entrega
e na busca de Deus. Leva o poeta feirense a sua cruz nesse triste
“Vale de Lágrimas”.
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