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Nelson Magalhães

 

NO GALOPE DA PESTE

 

Miguel Carneiro

 

O povoado  mantinha-se deserto na fantamasgoria de arrepiar os pelos, causando medo a quem adentrasse aquela mancha geográfica no mapa. As casas fechadas e os moradores teriam tomado seu rumo. O vento soprava uma melodia funesta. As portas e janelas despencando com o tempo, e as goteiras fazendo morada em cada cômodo. Ninguém de sã consciência tinha a noção daquele pesadelo. O tempo a cada dia deixava a sua marca. O tempo tornava-se a cada dia implacável. Seus moradores teriam abandonado aquele povoado pela peste que assolou aquelas plagas. A única povoação que se mantinha com suas portas abertas tratava-se do velho mosteiro onde seus monges ao cair da tarde entoavam seus cânticos gregorianos. A nave central do mosteiro com seu imenso vitraux espargia uma luz que cobria os monges em recolhimento.

 

Havia no mosteiro um monge anão que os superiores o tratavam de Joseph, dócil, silencioso, humilde, que fazia questão de dormir em sua cela no chão, mesmo naqueles invernos rigorosos, ele era o responsável pela cozinha daquele monastério, com uma dedicação invulgar. A sua arte de confeccionar gateaux franceses era de causar fama entre a congregação. Teria vindo de Paris, num navio mercante, aprendido a arte numa antiga pâtisserie de um monastério de Le Havre, na foz do Rio Sena, perto da Normandia. De poucas palavras e grandes orações, não se inquietava com o fantasma da peste, para ele a epidemia teria seu tempo e logo os moradores voltariam para reconstruírem suas casas.

 

Joseph tinha o sotaque carregado da Provence, mas falava um português polido de causar inveja a quem tinha o prazer de escutá-lo. Recitava de maneira brilhante sonetos de Camões, porém a sua aparência física não causava nenhum transtorno ou graça. Todos ali estavam imersos em silencio, orações e cânticos. Enquanto lá fora o flagelo batia nas casas, o mosteiro se mostrava incólume, estabelecido no alto da colina, na cordilheira do Espinhaço do Cavalo e embaixo o casario do povoado em solidão.

 

Houve, porém, um dia em que Joseph foi aos arredores do convento em busca de lenha para o fogão e se deparou na bruma que assolava aquelas terras um velho andarilho de chapéu e um cajado a mão, junto a ele um cão e atrás de si uma multidão de ratos que o acompanhavam. Joseph se assustou, e o velho fez o sinal da cruz e passou em sua caminhada descendo as colinas. Desde aquele dia, da passagem do andarilho, que os ratos desapareceram do povoado.

 

A notícia de que a peste tinha cessado, chegou aos povoados vizinhos e logo os seus moradores voltaram para suas casas. A alegria estava estampada nos rostos de cada morador. Logo uma procissão foi realizada e a imagem de São Roque foi colocada num andor, o que se ouvia pelas ruas do povoado eram cânticos fervorosos como este: "Trazendo sempre nos lábios, teu doce nome São Roque, eu te chamo dia e noite, como filho a ter no pai". Assim se passou, assim eu conto.

 

Salvador, Bahia, 25 de dezembro de 2011.

 

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