OXENTE,
E MINHA PONTA?
(Miguel
Carneiro)
A
rua denominava-se Siqueira Campos e ficava bem perto do Largo dos
Quinze Mistérios, onde havia um ponto de ônibus que vinha do subúrbio
soteropolitano em direção à Baixa dos Sapateiros e Barroquinha.
Num batente alto ficava a barraca de Agapito, que não tinha um braço,
e o bar de quinquilharias de Terto, onde se vendiam desde disco
vinil por um real, fitas velhas de vídeos, cachaça e móveis
usados à freguesia que por acaso enxergasse aquele mercado persa
naquela geografia.
Era
acolá, naquele batente alto, entre os dois estabelecimentos
comerciais, que se abancava Mutuca, sujeito forte, sarará, quase
dois metros, bíceps de boxeador, vindo de Nazaré das Farinhas, no
Recôncavo, para ganhar a vida na capital baiana. De pia, chamava-se
Gilvandro, era assim mesmo que constava em sua carteira de
identidade, mas, poucos, poucos naquele bairro do Santo Antônio Além
do Carmo tinham conhecimento de seu verdadeiro nome. “Pau pra toda
obra, fazemos qualquer serviço, não importando a qualidade”,
diziam os moradores daquele trecho.
Quem
necessitasse de um biscateiro, ali estava Mutuca, para solucionar o
problema, fosse de hidráulica, energia elétrica ou construção. O
preço de cada serviço seria cobrado pela cara do cliente. Para
colocar uma grade de ferro e chumbá-la com cimento na parede
desavisado, não saía por menos de cento e cinqüenta reais. Ele
fazia parte de uma quadrilha que se abancava naquele batente ao
sabor da sorte de algum necessitado por uma emergência doméstica,
mas que agiam individualmente: Birro Doido que morava em Paripe, que
ninguém sabia onde se escondia, e Zozôla, um velho de mais de
setenta e sete anos que terceirizava rapazes do subúrbio sem
trabalho para fazer seus bicos no bairro.
Qualquer
hora que se passasse, encontrava-se aquela catrupilha de homens,
alguns de bermudas, outros de calção de praia comprado nos balaios
das lojas da Baixa de Sapateiros por um real e noventa e nove
centavos, fabricados na China. Era aquele batalhão de malandros,
naquele bairro do centro histórico da primeira capital do país,
em prontidão. O
papo era sempre sobre ponta, mulheres, molequeira ou alguma
esculhambação.
O
mais esperto deles, porém, chamava-se mesmo Mutuca, e este dava nó
em pingo d’água. Meio dia, o sol a pino, naquelas paragens,
tornava-se lei, na própria bodega de Terto, Mutuca tomava sua
talagada da branquinha que vinha de Abaíra, na Bahia, em tonéis de
plástico. E se algum otário encostasse para puxar prosa, caía no
laço, e ele chamava para beber cerveja, tendo a conta paga pelo
inocente parceiro de bar. Terto não admitia fiado, nem se a mãe
aparecesse e lhe fizesse aquele esdrúxulo pedido. Havia uma
tabuleta escrita num papelão com caneta esferográfica: “Ficha no
caixa, não vendemos fiado, não insista.” E assim Mutuca vivia
naquela maciota, empurrando a faca em um, passando a perna em outro,
ou até em algum da própria quadrilha que se sentasse a seu lado.
A
dele era se dar bem, fosse lá como fosse. Primeiro ele, depois ele,
para depois a Nega que ele morria de medo de chegar a seu quixodó
de mão abanando e bêbado. Tapa ele tomava da Nega quase todo dia.
A Nega deixava na face de Mutuca as marcas das unhas, o beiço
inchado de porrada que ela, retada por alguma coisa, tinha lhe
metido algum sarrafo na boca.
No
outro dia, ele aparecia manso, a cara arranhada, dizendo aos colegas
de trecho que tinha largado Dona Nega. “Aquele cão não quero
mais ver nem pelas costas!” Não demorava muito para as cicatrizes
desaparecerem e Mutuca de novo voltar a se amasiar com sua Nega. Ela
tinha nome, mas os colegas não sabiam como ela se chamava. Mutuca
exigia respeito, ela tinha de ser tratada como “Dona Nega”, Nega
mesmo, só ele para chamar, pois tinha intimidade. A Nega tinha um
visgo parecendo jaca, seu papo laçava Mutuca, de uma forma que ele
custava para se desencilhar. Aquele branquelão gostava mesmo era de
apanhar da mulher.
Passavam
dias e dias que não surgia uma ponta, um biscate pra fazer. Mutuca
com os olhos para o alto, fitando a linha viva da rede elétrica com
medo de voltar para casa. Quando surgia um trabalho, ele seguia na
maior pose, desfilando. A mochila à tiracolo, a furadeira Bosch que
a Nega tinha dado de presente na mão. Andava como um general, como
quem iria para uma batalha. Ali naquele bolodório todo ele
certamente ganharia um trocado, passaria alguém pra trás e de
noite levaria o trocado da Nega.
Um
dia desses, uma senhora do bairro que morava pelos lados da Cruz de
Pascoal necessitou de um serviço hidráulico na suíte de sua
filha, e como só encontrou no local o dentuço Birro Doido, que
fazia parte da referida quadrilha, e desavisada pela inexperiência
profissional do chapisqueiro, o contratou para solucionar o problema
na torneira do tal chuveiro. Lá chegando, Birro Doido adentrou o
recinto, pés descalços, bermuda bege surrada, camisa quadriculada
aberta ao vento, cabelos assanhados, rosto de desespero. Só que
Birro Doido não manjava nada daquela empreitada e começou a jogar
o “barro na parede”, como se diz quando o malandro nada sabe e
fica experimentando se seu improviso vai colar. Da cozinha, D.
Lindaura observava o andamento do serviço, mas não suspeitava que
se tratasse de um maladrão atrás de uma ponta. Com muito sacrifício
e sem a chave praio, Birro Doido conseguiu retirar a torneira, mas o
jato de água logo invadiu o banheiro e o quarto, e foi aquela
meleira toda, a água esporrava no rosto do biscateiro e ele
desviando a cabeça para a água não lhe tirar a visão.
Achando
tudo aquilo muito estranho, a mulher sugeriu que ele fechasse o
registro do banheiro, coisa que Birro Doido nem tinha imaginado,
mas, aproveitando-se da trégua da água, sugeriu ir buscar na Casa
Material de Construção de Alcides alguma peça de hidráulica, e
de um pulo deu uma carreira no armazém e de lá trouxe o armengue.
Começou a furar a parede do box de cima a baixo, e quando tentou
engatar um cano no outro não conectou, e logo pediu jornal e fósforos,
tocou fogo nos jornais e com aquela cara de pânico foi fazendo força
para um cano engatilhar no outro. Não chegou a nenhuma solução.
Na
casa logo iniciou um principio de incêndio, devido a tanto jornal
queimado em vão, e ele sem conseguir botar o troço no lugar, sendo
que o buraco já ia quase no teto. A dele era ganhar o dinheiro e se
picar, fosse lá como fosse, e aquele diabo de cano se engatasse no
outro. Quando viu que não dava solução, a senhora notou que uma
tragédia maior podia acontecer, e então bradou furiosa:
–
Olhe, Seu Birro, o senhor devia dizer logo que não sabe pra onde
vai, o senhor fez uma meleira horrível, nunca vi uma coisa dessas,
o senhor tá me dando é prejuízo, quer saber, vá chamar seu
Mutuca, ele vai saber dar um jeito nessa situação.
Com
o rosto em pânico e ainda com esperança de terceirizar Mutuca para
não perder sua ponta, saiu em disparada à caça do colega,
deixando aquele fedor de queimado por toda a casa. Em menos de cinco
minutos aquela empreitada estava pronta. Mutuca, então, todo
garboso, voltou para a velha senhora e sussurrou:
–
Olhe, Dona Lindaura, meu serviço é cinquenta reais. O dele a
senhora paga só dez, mas não diga a ele que me pagou nada.
E
quando o serviço ficou pronto, Birro Doido de cara mexendo, limpou
a área do entulho, passou pano no banheiro, ao modo que os
biscateiros costumam fazer, ou seja, armengando a área, enquanto no
térreo Mutuca se aproxima e sentencia:
–
A senhora pode subir e verificar. Tá tudo no lugar. O serviço já
foi feito!
Aliviada,
D. Lindaura abriu a porta, deixando passar aqueles dois tipos.
Mutuca saiu primeiro, peito estufado, cinquenta reais no bolso para
levar para a Nega e tomar cachaça, todo senhor de si, seu dia foi
salvo. Atrás, Birro Doido, “cara de jegue”, cabeça baixa,
desmoralizado.
E
assim passavam os anos, Gilvandro, de calção de praia, sentado no
batente alto da Siqueira Campos, entre a Barraca de Agapito e o Empório
de Terto, à espera de um otário.
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