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Jackson Pollock

 

FRAYME EM 22 SEGUNDOS DAQUELA TARDE FRIA

 

(Miguel Carneiro)

 

Tua al (gema negra) cova assim soletrada em câmara

lenta, levantas a fronte e propalas:

Há uma estátua afogada... (Em câmara lenta!- disse)

Existe uma estátua

afogada e um poeta feliz (ardo

em louros!). Como os lamento e

como os desconheço!

Choremos por ambos.

 

(trecho de O jogral e a prostituta negra. Pignatari, Décio. 1949).

 

 

Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.

Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.

Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.

Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.

 

(In “A uma mulher amada”, Safo, Trad. Décio Pignatari)

 

 

Carrego no fundo d’olho a estampa daquela Folinha, em que assinalava o mês dezembro do distante 1988. Entre tantos pneus galvanizados e a fuligem escura manchando o vão da minúscula borracharia, naquela parede ensebada soltando aos meus olhos, daquela paisagem barroca, em fotografias reveladoras de pornografias, de uma diva brega e fria na manhã cinzenta de algaravia. Closes e frames busco enquadrar como películas de Nélson Pereira dos Santos em cujo som inaudível da voz trêmula dessa atriz do cinema novo baiano soava como breves sussurros de sedução A anca macia e pelada da égua eu os observo e reveste a geografia zeferiniana desse modelo feminino parecido que ela tenha saltada de uma canção de Waldick Soriano onde a garrafa de Bacardi resta esquecida no canto do bar, ao lado de rodelas de limão azedo. Carrego, carrego sim, no fundo d’olho a estampa dessa Folinha do ano de 1988, que sinalizava dezembro, mês do nascimento do Senhor, e pelas caatingas mermada havia os pés de umbuzeiros arriados, de tão carregados que estavam com os frutos espalhados pelo chão, apodrecendo. Tenho a vaga lembrança que Van, de Mariá e Jovino, voltava nesse tempo de aió recheado de caças de cabeças rubras ensangüentadas na matiz cinza de chumbo nas asas demarcando a selvageria gastronômica sertaneja. Zanzava, ele, doido pelos pastos de Tote da Quixabeira, lá para os confins da Chapada, ouvindo caiporas assoviarem, derrubando seriemas, nambus e mocós sem piedade. Eu via tal musa na parede da borracharia como o pêlo da bunda suado entre coxas de simetria tesas e sem estrias onde se vislumbrava o cheiro no ar do desodorante barato da Avon. Debruçado na solidão de mundos vivia feito vagabundo dormindo em casa alheia, sem paragem, sem cobertor, sem abrigo, embriagado pelos passeios, quebrando a cara aflito, vendo o perigo, sem freio de arrumação, sonhando acordado. Minha mãe rezando trezenas por mim e eu endiabrado procurando consolo no colo da puta num quarto pequeno de um posto de gasolina. Vivi aquela quadra dezembrina feito passarinho em viveiro, cantando estressado, num diapasão desafinado, tentando ser herói do pedaço numa época em que todos eles já estavam mortos e não havia nenhum poeta vivo em que eu pudesse me mirar. Dormia com a estampa da folinha povoando meus sonhos e uma horda de demônios me embalava para dormir e eu mirava o rabo grande da atriz para me consolar, enquanto do outro lado, num rádio de pilha tocavam canções fuleiras, caipiras de duplas porre, num solfejo de ressaca e sem Sonrisal. A miragem da folinha se incrustava na janela do meu pensamento. Eu me parecia feito gado de aluguel tangido a ferrão, os pés sempre frio de tanta solidão, vaquejava como voyeur. Eu me revirava na cama tentando descobrir apenas a ponta do pentelho saindo pelo lado da tanga e ali dentro como que travando o pau estava placidamente aquele bocetão. E o mise en scène, daquela atriz me deixava sem fôlego, em suspensão entre o céu e os infernos. Nesse cômodo estrangeiro onde aranhas tecem palácios aracnídeos o cheiro do suor dessa dama impregna os lençóis com o seu almíscar de beira de balcão de bar. Essa dama que se deita ao meu lado traz em seu semblante a marca da expressão de um filme de bas-fond que assisto nas madrugadas pela televisão. A semelhança dessa dama é deveras conhecida. O morder dos lábios quando ela goza, os olhos arregalados quando geme de prazer, o toque de sua mão áspera como se estivesse trabalhado numa pedreira de duro granito manuseando picola e marreta, produzindo brita para a construção civil. As suas grandes unhas pintadas de vermelho, a calcinha da Du Loren manchada de corrimento, os seus grandes lábios vermelhos em forma de livro. Em seu olhar ela me indaga por quantas horas o cacete ficará teso nessa noite de vigília entre o desejo e a fascínio. Eu vou aceitando os seus afagos, suas mãos grossas tocando meu corpo sedento, eu vou me iludindo com as fodas, enquanto lá fora o tempo caminhava sem grandes novidades ou atropelação. Foi naquela estampa de folinha de dezembro de 1988, que busquei todas as mulheres de minha vida, sem me importar que “coração é terra que ninguém jamais andou”. Pensava somente na estampa e por diversas ocasiões eu quebrei a cara quando a paixão tomou conta de mim. Fui vivendo com essa miragem de dezembro de 1988, povoando meus caminhos pelo mundo, como romance barato de beira de posto de combustível, onde CDs piratas faziam a trilha sonora desses fortuitos encontros amorosos de churrascos, bebidas, sacanagem com a falha dos dentes povoados de fiapos de carne apodrecendo na boca. Minha alma parecia jegue de aluguel, carregando no âmago, no arcabouço vazio, sentimentos bizarros, pesados como o mundo. Necessitava de amores de putas para sobreviver na selva. Minha boca tinha sede de estranhas bocas, saliva gasta com gosto de batom Payor onde a marca do beijo, deixada no lenço, dava a senha do próximo reencontro. Fui trocando de casca, feito serpente guardando o veneno para a temporada de caça. E esse amor viajeiro de beira de pista que ao se levantar de minha cama decerto deitará com outros sem pecado foi tomando corpo e crescendo numa espiral sem fim. Inzonado feito feitiço feito, buscava nessa dama o que nunca encontrei em outras mulheres. Fui me iludindo dando linha lhe enchendo de presentes e a dama sorrateira a me tratar como seu verdadeiro macho. Eu tinha a dama em meus domínios até onde o meu olhar podia alcançar o seu vulto, daí em diante, entregava a Deus. Fidelidade de puta é semelhante como à bala xibiu, se abre o invólucro saboreia e ela se perde na boca, deixando saudades, só resta a cena da foda povoando a lembrança. Tentar deparar nessa moça um amor perene é dar murro em ponta de faca. Mas acredito que nem tudo está perdido e nem tudo é em vão. Vou acordando tendo as manhãs como pesadelo, a dama me cercando como se estivesse a me colocar num corredor estreito ou num curral, e eu atado sem querer me desvencilhar. Vi, a tal dama, pela primeira vez numa festa de vaquejada onde ela estava montada num cavalo pampa, cuja anca assentada na sela do animal me despertou desejo. Na arquibancada enquanto um touro caía na pista, puxado pelo cavaleiro, eu ficava bebendo cerveja, observando também de canto de olho a dama de shortinho, pernas roliças a mostra, jaleco vermelho comemorando o feito do vaqueiro. No calor da vaquejada com touros caindo pelo rabo eu notava que ela estava num flerte de apelação. Não tive escolha. E me deitei com essa dama naquele dezembro de 1988. Era final da década de 80 e o Brasil caminhava para o brega e eu perdido sem ter uma referência, algo que acalentasse, e me povoasse naquela quadra demi-mondaine. “Jade”, “Lua”, “Nininha”, “Montaria de Doidos” não sei, não me lembro qual nome tratava a dama de azul na tarde encalorenta, num quarto pequeno de motel de beira de pista, cuja estrada ligava o Brasil de Norte a Sul com seus caminhões trucados, de descargas barulhentas, de homens de outros estados sem pudor levando riquezas e pesteando as mulheres com gonorréias, sífilis, cancro e Aids. Ali me encontrei arriado me achando o homem mais feliz do mundo. A puta batia asas, sumia, passava semanas sem me ligar. E, para me deixar com mais saudade quando ela surgia de boceta raspada, trazia o corpo encharcado de perfume da Natura. Eu ficava zonzo durante um dia inteiro com a sua lembrança rondando o pensamento. E, quando de novo retornava trazia a conta de telefone, luz e de cartões de créditos, os famigerados boletos bancários que eu tinha que pagar sem chiar, sem dar um pio. Dizia ela que era uma troca justa. E eu, carente por uma fêmea, bancava a puta na cidade. Estava verdadeiramente envolvido naquela trama e pela cidade a minha reputação foi posta à prova em mesa de bar e canto de esquina. O meu relacionamento com essa dama de azul foi escancarando portas, chegando ao conhecimento da sociedade. Na Loja Maçônica que freqüento os irmãos chegaram a me censurar pelo tipo exemplo que eu estava dando para a comunidade em que eu vivia. Fiquei feito bosta n’água, boiando, com a cara lerda, pasmo comigo mesmo, sem achar uma solução. A cada noite eu mandava entregar no bordel uma braçada de flores vermelhas, rosas rubras, para que a dama se lembrasse de mim. Naquele mundo inóspito receber flores não fazia parte daquele contexto. Agora, me veio na lembrança aquele formato de boca de peixe pronunciando para mim, pela primeira vez, o seu nome, naquela noite de trovoadas.

 

– Me chame de Lidiane. Não, eu gosto que você me chame de Lide, por favor!

 

E foi assim que em seguidas vezes pela tardezinha eu mandava um portador da floricultura descer ao bordel da cidade para entregar àquela jovem um bouquet de rosas rubras. O quarto de Lidiane, onde ela atendia os clientes parecia, uma cela de um monge beneditino de tanta simplicidade naquele cômodo. Existia apenas uma cama de solteiro forrada de chitão de feira, uma bacia de alumínio ao chão que ela utilizava para asseio, um espelho vagabundo preso a um prego na parede áspera e sem reboco. E, em cima de uma caixa de papelão, os seus pertences pessoais. Via-se um barbeador enferrujado, um vidro de xampu, a saboneteira lilás como sabonete Lux e no outro lado do quarto uma outra caixa de papelão com seus vestidos, sutiãs e calcinhas embolados parecendo o xale da doida ou um ninho de ratos. Eu fui me compadecendo daquela miséria, com o passar do tempo fui aos poucos povoando aquele reduto de rendez-vous num quarto decente de uma puta. Dei-lhe de presente um aparelho de televisão de 29 polegadas e uns mais equipamentos de dvd e CD, Lidiane bem que me merecia muito mais que isso. E eu sabia que Lidiane continuaria ali no brega a viver seus amores fortuitos. Passei então a lhe sustentar. No sábado me dirigia ao grande Mercado Municipal e me acercava do balcão escuro de marmorito do açougue, onde jazia em cima duas cabeças degoladas de boi, de olhos esbugalhados sangrando naquela banca. Mantas, xá, dianteiros, vísceras, culhões, aquele burburinho de gente transitando em meio ao sangue dos animais e eu contente em comprar para saciar a fome de minha Lide a viande boa que eu encontrava. Dias que eu acordava gritando, a plenos pulmões, na cama estrangeira de Lidiane, bodejando: “Não coloquem mais lenha nas fornalhas!” Olhava em volta e só havia meu amor dormindo inocentemente naquelas madrugadas e não havia galos que pudessem me acordar. Despertava, pela manhãzinha, de fígado encharcado de ressaca, naquele fim de rua, trôpego, naquele quarto de bordel. Levantava com raiva, ligava do celular para que o meu motorista viesse me conduzisse de volta para casa e não me expor mais para a cidade e seus buchichos. Eu ia-me embora dali morto de remorsos. Passava o dia na empresa entre uma fatura ou outra, entre um pepino para resolver e outro, de olho no pensamento, no corpo escultural venusiano daquela mocinha paulista.

 

Até que um dia resolvi dar um basta em tudo isso, e gritei para mim mesmo: “Pra mim chega!” Levantei da cadeira do escritório fui até o brega e chegando lá lhe disse:

 

– Não se sinta mais pertencente a mim. Você está livre. Procure outro homem para a sua vida.

 

E voltei para o escritório, de cabeça baixa, tinha enfim me libertado daquela paixão.

 

 

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