PERFUME DE PICA
(Miguel Carneiro)
“... a marca de amor nos nossos
lençóis.
nossas melhores lembranças ...”
Chico Buarque de Holanda
Deus criou o mundo e não esqueceu das
formigas. Há pessoas nesse mundo que são semelhantes como as
formigas, só gostam dos estragos e vivem devendo pelanca a gato,
perto de se dizer: “Deus queira que morra!”, mas quando a boca do
filho beija, verdadeiramente, a da mãe adoça. Nada nessa vida vã é
à-toa, e os cornos, obra do Avesso, cumprem também o papel sobre a
face da terra. Ninguém é corno porque quer e nenhum corno por mais
cabisbaixo que seja aceita a admirável missão de ostentar cornos. A
missão do chifrudo é titânica: ridicularizado numa porta de venda,
onde ali de tudo se fala, fica o galheiro com a pecha para o resto
da vida.
No anedotário brasileiro há diversos
tipos de galheiro: “corno-manso”, “corno-revoltado”, “corno
passional”, “corno-desleixado”, “corno-valente”,
“corno-consciente-do-galho”, “corno-traído”, “corno-faz-de-conta-que-não-toma”,
“corno-arrependido”, “corno-desiludido”, “corno-filho-da-puta”,
“corno-conformado”, “corno-de-chifre-cheio”, “corno-prepotente”, “corno-de-galho-baixo”,
“corno-meu-futuro-é-Deus” e por aí vai...
Mas não foi assim com Trazíbulo Menezes
Miranda, que fora casado com Ebonina de Araújo Sales, também chamada
dentro da casa de D. Rola, “Rolinha” para os mais íntimos. Os dois
construíram, no passar das horas, na mamparreação dos segundos, no
cair do sol, alicerce, reboco e pintura de uma longa história de
oitenta anos de vida conjugal, transformando-o no romance mais belo
que já se ouviu naquelas terras catingueiras.
Moravam numa fazenda próxima do povoado
de Cachorro Sentado, também chamado de Forró, perto de Coração de
Maria,. a qual tinha o nome de Recanto, e nela havia um grande
criatório de zebuíno. Era uma fazenda modelo na região, Zé Maria do
Couto Sampaio, renomado professor de zootecnia, fazia a chancela
para que o rebanho se tornasse modelo no Brasil. Trazíbulo Miranda
dono de sua caminhoneta, fabrico de requeijão, criação, cavalo bom
no pisar do trote. Casara-se com D. Rola num tempo de privações, na
distante década de 60, quando a seca ameaçava dizimar todo seu
rebanho, a célebre estiagem de sessenta que tanto castigo trouxe
para o homem nordestino, quase que o levou ao roldão. Foi aos poucos
erguendo a fortuna na labuta dos dias, debaixo do sol escaldante que
castiga aquele termo de caatinga povoada por facheiro, palmatória,
unha-de-gato, angico, cabeça-de-frade, gravatá, jurema, quixabeira,
caroá, rabo-de-raposa, calumbi e o escambau.
Um dia, quando percebeu que podia
sustentar uma família, noivou-se de D. Rola. Após um ano de namoro
se casaram na igreja do povoado de Cachorro Sentado em cujo orago se
louvava a “Rose Mystique”; Nossa Senhora Acalentadora de Nossos
Pecados, que em cuja igreja caiada de azul tinha suas portas
talhadas em formosas almofadas no cedro que dominava a paisagem e
pomposo altar dedicado a Santa Efigênia e São Benedito o casal
realizava suas preces. O casamento fora oficiado no mês de maio pelo
velho padre da grei Monsenhor Dario Di Ciesco, tendo como padrinhos
os casais Aurino Ribeiro do Nascimento com Santinha do Amor Divino e
Zuca Sodré com D. Maria Carvalho de Melo.
Na noite do sarrafo, Trazíbulo cavalgou
Ebonina por prados, florestas e matas levando-o no tapete voador, à
maneira das “Mil e Uma Noites”, descortinando vales e
montanhas no galope macio do vergalho. Saciados da promenade,
Trazíbulo adormeceu de tripé murcho, enquanto Ebonina imersa em
sonhos ainda passeava pelos jardjns suspensos da da Babilônia.
Daquela noite foi se formando a história de amor mais deslumbrante
que já se ouviu contar na caatinga. Desde que rei Salomão compôs o “Cântico
dos Cânticos” em louvor a sua amada.
O amor de Trazíbulo não se traduzia em
palavras, elas traem. O amor de Trazíbulo foi se formando com
gestos, delicados e ternos para um homem catingueiro acostumado a
derrubar marruás no pasto e segurar uma mula braba e doida com o
próprio punho dos seus arreios.
Nessa noite do idílio Trazíbulo foi
preparando para a sua amada o seu verdadeiro presente. Após o coito,
Trazíbulo se dirigiu ao guarda-roupa e de lá tirou uma caixa de
lenços brancos. Trazíbulo tirava um lenço na caixa e enxugava sua
amada, e ele foi também limpando com um lenço a cabeça da pica
encharcada de gozo. Esse rito foi se prolongando durante cinqüenta
anos de vida conjugal. E em cada lenço que era usado, Trazíbulo
pedia carinhosamente a Ebonina que não o lavasse. Deixasse com a
marca do amor. E assim caixas e mais caixas de lenços foram
guardadas dentro do guarda-roupa,
chegando a um ponto de o próprio guarda roupa só servir para colocar
lenços perfumados a gala.
Quando
comemoraram as bodas, nessa noite Ebonina desarrumou todas as caixas
e cobriu o leito com todos os lenços que tinha usado em sua vida. E
ali, em meio há tantos panos, adormeceram os dois, numa prova de que
a fidelidade é o que sedimenta um amor, que o diga Trazíbulo.
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