MEUS
CUMPRIMENTOS, CAPITÃO
(Miguel
Carneiro)
A
coluna vai na frente
Dos
homens, das mulheres, das crianças.
A
coluna deita no leito dos rios,
A
coluna se levanta, rasga matas,
A
coluna vai na frente,
Vai
mostrar o caminho ao país,
A
coluna marcha,
O
povo diz que ela é de fogo,
A
coluna vai sempre na frente,
Nem
sabe direito o que vai mostrar,
A
coluna marcha,
O
povo conta com a coluna,
A
coluna conta com o céu.
O
governo faz promessa
Para
a coluna desaparecer.
Populações
inteiras se penduram nela,
A
coluna vira coluna de homens,
A
coluna cresce, cria uma barba enorme,
A
coluna marcha
Na
frente dos cavalos, das cidades, dos sertões,
Na
frente das ondas, do fogo, das promessas,
A
coluna vai, a coluna vai, a coluna vai,
Não
dá mais notícias
–
Perdem a esperança –
Nunca
mais que volta,
Nunca
mais que vem.
(Murilo
Mendes, “Marcha da Coluna”)
Tiririca ficava na
cabeceira do Rio Jacuípe, miúda, espremida entre duas serras,
parecia esquecida no tempo. Um coreto no meio da praça, duas ruas
tortas, a igreja salpicada de azul e um cemitério mal florido na
entrada da Vila. Quando setembro abria, surgia algum mascate perdido
com suas malas de couro repletas de quinquilharias que emprestavam
àquela paisagem um colorido efêmero.
Às
terças-feiras, depois do vento leste que descia da serra e se
espalhava pelo lugarejo, Ernestina Ferreira vestia seu vestido
azul-turquesa, o belo camafeu no decote, e se encaminhava para a minúscula
Agência dos Correios, para postar uma correspondência para um
certo capitão na Guanabara. Só Deus sabe se ele as recebia. Pois
nem ela mesma tinha o endereço do destinatário.
Mantinha
esse estranho hábito desde que cansada da espera por um noivo
imaginário, resolvera povoar seu final de existência com uma
grande paixão. Primeira mestra do Arraial, se viu cercada pelo
manto do respeito. Seus antigos alunos se tornaram comerciantes,
mudavam e voltavam com os filhos crescidos.
Quando
a tarde melancolicamente demorava a cair, ela selecionava alguns
discos de Aracy de Almeida, punha-os na vitrola e se postava em sua
janela a mirar com os olhos fitos o azul do horizonte das serras. E
imaginava-se passeando de mãos dadas com seu capitão fardado pelas
praias de Copacabana. Porém, havia semanas que seu capitão se
apoderava de seus sonhos e ela, então, passava as manhãs
garimpando num velho "Caldas Aulete" os mais belos vernáculos.
As
suas cartas perfumadas e desenhadas com motivos primaveris na borda.
Por algum tempo, Paim, o velho funcionário dos
"Correios", alertou que aquela correspondência estava
ficando perigosa; o seu suposto noivo estava na ilegalidade, e
Filinto Müller estava caçando-o por todo o Pais. Ernestina
Ferreira continuou a enviar suas preciosas missivas. A Cidade, aos
poucos, foi inteirando-se daquele amor proibido. E, em pouco tempo,
a Professora passou a ser objeto de escárnio daquela população
ribeirinha. Tomou-se indesejável, uma louca de idade avançada, mas
com um passado invejável, que punha a paz dos pacatos tiriricanos
em ameaça.
A
grande mesa de jacarandá da sala vivia forrada com uma toalha de
linho branco, flores, à espera de que o suposto noivo um dia
aparecesse de surpresa para o jantar.
Quando
não estava escrevendo suas cartas, vivia tricotando pulôveres de vários
matizes, com as iniciais de seu amado sobre o peito. Sua vida se
transformou no culto dessa paixão. Já não remetia uma carta por
semana, eram diárias. Repletas de suas íntimas lembranças. Nunca
obtivera uma resposta.
O
velho Paim, funcionário dos "Correios", integralista,
denunciou de portas escancaradas para o lugarejo que a Professora
eslava sendo procurada e que, em breve, chegaria à Cidade a polícia
de Filinto Müller em seu encalço. Foi o bastante para a população
preparar um abaixo-assinado pedindo o internamento da Velha Mestra
num sanatório. Corria o ano eleitoral e o prefeito, no afã da sua
reeleição, acatou de bom grado a imposição. E Ernestina, num sábado
de feira, foi posta para fora da Cidade, numa camisa de força, num
lombo de um burro chotão, acompanhada por dois praças e um
enfermeiro.
De
nada adiantaram seus berros, ninguém se sensibilizou. Em prantos,
suplicou que lhe dessem o pequeno maço de papéis perfumados e sua
caneta Parker. Foi tudo o que foi permitido, foi toda a sua bagagem.
Quando ela deixou Tiririca, debaixo de um sol escaldante de
meio-dia, o velho Paim estava a fechar a repartição e se
encaminhava para sua casa, onde o esperava um lauto mocotó.
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