DE TODAS AS COISAS
(Marcos Brás)
De todas as coisas,
as que desmoronarão mais fragorosamente
são aquelas que mais amamos:
disso sempre estivemos certos...
De todas as coisas,
de todos os gritos, luzes, tremores
que se levantam na noite –
de todos os estremecimentos
que agitam a superfície desse lago
de silêncio em que a noite se afunda,
de todas as coisas,
as que fracassarão com maior estrépito
são exatamente aquelas que nos são
caras:
aquelas pelas quais empenhamos nossa
parte melhor,
sem as quais não poderíamos ser,
sem as quais o que há de melhor em nós
não poderia ser
e flutua e desce pela correnteza como a
asa de algum inseto destroçado...
De todos os sonhos,
os que nos devastam mais profundamente,
quando perdidos,
são aqueles em que, como num espelho,
nos miramos –
em que, como numa superfície de água,
nos miramos,
em busca de nossa verdadeira face,
seja ela qual for,
de nossa face projetada no futuro,
convertida em máscara de futuro,
em coisa imortal que sobrevive na noite
convertida em máscara de futuro...
De todos
os sonhos que formos capazes de fazer
arder em nosso pensamento,
os que naufragarão com maior
estardalhaço
são exatamente os melhores,
os mais caros, os mais raros,
aqueles em que apostamos
toda uma vida de miséria...
Quando atravessamos a rua ou quando
olhamos pela janela,
quando estamos a sós no quarto
ou quando saltamos de um precipício,
nos damos conta disso...
Damo-nos conta de que viver não nos
guarda,
de que olhar para fora e pensar
é ser sem garantia:
ser como uma fogueira quando começa a
chover,
exposta aos riscos de estar lá
quando a chuva principia...
Atravessamos uma rua, olhamos por uma
janela,
nos debatemos e nos cansamos e nos
entediamos
entre paredes – mas quando nos damos
conta disso
damo-nos conta também
de que viver é estar desamparado,
exposto às incertezas do dia e da lua,
sem uma porta que nos abra para a
segurança
e para as formas luminosas do sol...
Nada sabemos sobre permanecer...
O tempo em nós é uma doença cega
que sempre nos atrai para baixo:
que se infiltra em nosso sangue
e, atraindo-nos para baixo,
vai apagando aos poucos
a agilidade de nossos passos, a precisão
de nossos gestos, como uma chuva
ou uma infiltração de água é capaz de
solapar
as bases de uma muralha...
E é então que nos deixa vazios,
não porque se acumulou em nós como uma
força negativa de ser,
propícia apenas às ruínas
e a uma forma de consciência
envelhecida, imóvel e neutra,
que não é propícia aos novos
florescimentos
da primavera, mas porque se acumulou
como simples consciência de ser,
e toda consciência envelhece...
(O tempo é o pior dos roedores, a pior
das águas –
e um acúmulo de tempo em nós
apenas nos precipita em direção a essa
espécie de consciência apodrecida
que tem muito mais de apodrecida e de
semelhante a um abismo
do que de outra qualquer coisa:
seja essa coisa um sentimento
primaveril,
seja uma propensão
a reverdecer após o inverno...
Lança-nos para baixo,
como se nos lançasse para um fim –
e o movimento em que, conscientes de nós
mesmos, somos arrebatados
por essa velhice do tempo
é o movimento que fazemos em direção a
nós mesmos,
a trajetória que cumprimos,
atirando-nos de encontro a todos os
nossos potenciais de florescimento –
areia de deserto que o vento lança
contra a robustez agreste dos rochedos,
encarquilhando-a e reduzindo-a a areia
também...)
Permanecer, em nós, não tem sentido de
resistência:
e, quando vem a noite,
ou quando a chuva cai,
é então que desmoronamos mais
fragorosamente
e nos convertemos numa lama espessa de
lembranças e remorsos –
que não se pode recolher na promessa
quebrada dos dias...
E quando vem a noite é que sabemos
melhor
que nada se pode conservar na noite
e que, na noite, nada se pode ter de
próprio,
porque na noite não existe acolhida
e não existe simpatia e afeição...
Não é isso? Não é o que se devia dizer à
noite à face da noite? –
Noite: não tenho nenhuma simpatia por
ti,
tal como não tenho pelos teus
mistérios...
Não é assim – com a noite a nos alcançar
pelos ombros,
em véspera de nos afogar,
de nos encobrir totalmente com a sua
água negra, impraticável,
com o seu deserto negro e desconsolado
que se imiscui entre todos os pensamentos
e se infiltra no sangue de todas as
coisas:
até mesmo no mais límpido clarão de luar
que sobre ela se acenda
nas horas tardias do sono?...
De todos os propósitos,
os que nos decepcionarão mais,
os que deixarão maiores remorsos
e mágoas mais profundas
são exatamente aqueles pelos quais
penhoramos o que há de melhor em nós,
pelos quais penhoramos nosso futuro
que trepida, implode e desmorona
diante de nossos olhos estarrecidos,
deixando apenas um gosto amargo
na boca...
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