Home Poesia Prosa Traduções Colaborações Arquivo Contatos

Bem-vindo à homepage de Renato Suttana.

Lucien Freud, Naked girl

 

DE TODAS AS COISAS

 

(Marcos Brás)

 

De todas as coisas,

as que desmoronarão mais fragorosamente

são aquelas que mais amamos:

disso sempre estivemos certos...

 

De todas as coisas,

de todos os gritos, luzes, tremores

que se levantam na noite –

de todos os estremecimentos

que agitam a superfície desse lago

de silêncio em que a noite se afunda,

de todas as coisas,

as que fracassarão com maior estrépito

são exatamente aquelas que nos são caras:

aquelas pelas quais empenhamos nossa parte melhor,

sem as quais não poderíamos ser,

sem as quais o que há de melhor em nós

não poderia ser

e flutua e desce pela correnteza como a asa de algum inseto destroçado...

 

De todos os sonhos,

os que nos devastam mais profundamente,

quando perdidos,

são aqueles em que, como num espelho, nos miramos –

em que, como numa superfície de água,

nos miramos,

em busca de nossa verdadeira face,

seja ela qual for,

de nossa face projetada no futuro,

convertida em máscara de futuro,

em coisa imortal que sobrevive na noite convertida em máscara de futuro...

De todos

os sonhos que formos capazes de fazer arder em nosso pensamento,

os que naufragarão com maior estardalhaço

são exatamente os melhores,

os mais caros, os mais raros,

aqueles em que apostamos

toda uma vida de miséria...

 

Quando atravessamos a rua ou quando olhamos pela janela,

quando estamos a sós no quarto

ou quando saltamos de um precipício,

nos damos conta disso...

Damo-nos conta de que viver não nos guarda,

de que olhar para fora e pensar

é ser sem garantia:

ser como uma fogueira quando começa a chover,

exposta aos riscos de estar lá

quando a chuva principia...

Atravessamos uma rua, olhamos por uma janela,

nos debatemos e nos cansamos e nos entediamos

entre paredes – mas quando nos damos conta disso

damo-nos conta também

de que viver é estar desamparado,

exposto às incertezas do dia e da lua,

sem uma porta que nos abra para a segurança

e para as formas luminosas do sol...

 

Nada sabemos sobre permanecer...

O tempo em nós é uma doença cega

que sempre nos atrai para baixo:

que se infiltra em nosso sangue

e, atraindo-nos para baixo,

vai apagando aos poucos

a agilidade de nossos passos, a precisão

de nossos gestos, como uma chuva

ou uma infiltração de água é capaz de solapar

as bases de uma muralha...

E é então que nos deixa vazios,

não porque se acumulou em nós como uma força negativa de ser,

propícia apenas às ruínas

e a uma forma de consciência envelhecida, imóvel e neutra,

que não é propícia aos novos florescimentos

da primavera, mas porque se acumulou

como simples consciência de ser,

e toda consciência envelhece...

 

(O tempo é o pior dos roedores, a pior das águas –

e um acúmulo de tempo em nós

apenas nos precipita em direção a essa espécie de consciência apodrecida

que tem muito mais de apodrecida e de semelhante a um abismo

do que de outra qualquer coisa:

seja essa coisa um sentimento primaveril,

seja uma propensão

a reverdecer após o inverno...

Lança-nos para baixo,

como se nos lançasse para um fim –

e o movimento em que, conscientes de nós mesmos, somos arrebatados

por essa velhice do tempo

é o movimento que fazemos em direção a nós mesmos,

a trajetória que cumprimos,

atirando-nos de encontro a todos os nossos potenciais de florescimento –

areia de deserto que o vento lança

contra a robustez agreste dos rochedos,

encarquilhando-a e reduzindo-a a areia também...)

 

Permanecer, em nós, não tem sentido de resistência:

e, quando vem a noite,

ou quando a chuva cai,

é então que desmoronamos mais fragorosamente

e nos convertemos numa lama espessa de lembranças e remorsos –

que não se pode recolher na promessa quebrada dos dias...

E quando vem a noite é que sabemos melhor

que nada se pode conservar na noite

e que, na noite, nada se pode ter de próprio,

porque na noite não existe acolhida

e não existe simpatia e afeição...

Não é isso? Não é o que se devia dizer à noite à face da noite? –

Noite: não tenho nenhuma simpatia por ti,

tal como não tenho pelos teus mistérios...

Não é assim – com a noite a nos alcançar pelos ombros,

em véspera de nos afogar,

de nos encobrir totalmente com a sua água negra, impraticável,

com o seu deserto negro e desconsolado que se imiscui entre todos os pensamentos

e se infiltra no sangue de todas as coisas:

até mesmo no mais límpido clarão de luar

que sobre ela se acenda

nas horas tardias do sono?...

 

De todos os propósitos,

os que nos decepcionarão mais,

os que deixarão maiores remorsos

e mágoas mais profundas

são exatamente aqueles pelos quais

penhoramos o que há de melhor em nós,

pelos quais penhoramos nosso futuro

que trepida, implode e desmorona

diante de nossos olhos estarrecidos,

deixando apenas um gosto amargo

na boca...

 

Retorna ao topo

Outros escritos de Marcos Brás