A
BALADA DO MERLIM
(Mauro
Mendes)
Para
minha mulher, Marília
(31.10.2004)
Longos
e tediosos eram os dias do castelo, sobretudo quando o rei estava
longe, fazendo guerra, o que, às vezes, durava anos! O castelo
ficava, quase sempre, envolto em névoa e era cheio de um pesado silêncio,
interrompido, aqui e ali, pelo cocorocó dos galos, o cacarejar das
galinhas, o relincho dos cavalos, o trinado dos pássaros, o choro e
a tagarelice das crianças, o zumbido dos insetos, o ruído das
rocas e dos fusos no salão das mulheres, coisas assim tão triviais
e previsíveis, que era como se o tempo não existisse ou tivesse
parado de passar... O que ditava mesmo o tempo no castelo era a azáfama
da criadagem, na cozinha, preparando os alimentos. Depois do almoço,
durante a sesta, o tempo ficava ainda mais parado. À noite, as
pessoas, reunidas para a ceia no grande salão, tinham necessidade
de ouvir histórias maravilhosas, de saber notícias do que se
passava fora do castelo, bem longe, muito além dos confins do
reino... De vez em quando, é bem verdade, apareciam uns andarilhos,
que contavam histórias interessantes, mas tudo coisa de pouca
monta, geralmente casos de bandoleiros e salteadores comuns de beira
de estrada... O bobo da corte estava sempre disposto a divertir a
todos com seus gracejos e chalaças, mas as pessoas queriam coisas
mais excitantes...
Depois
que o rei voltava da guerra, o castelo virava um caldeirão fervente
e, durante todo o dia, ouviam-se o ranger dos portões e da ponte
levadiça, o bufar e o tropel dos cavalos, o chacoalhar dos elmos e
couraças, o tinir das armas nos torneios, o alarido das mulheres
incentivando os cavaleiros, o som das trompas de caça e o barulho
das forjas fabricando armas para futuras batalhas...
Um
dia, ao entardecer, chegou ao castelo um menestrel, que foi recebido
com muitas honrarias, e que, como se dizia, era também mago e
adivinho. Depois da ceia, quando o bobo já se preparava para a
apresentação de costume, o rei disse:
–
Bobo, não te faças de bobo! Estás dispensado, pois, hoje, neste
salão, uma voz mais alta se alevanta!
O
bobo ainda ensaiou alguns trejeitos (só bobo podia fazer caretas
pro rei...) e se retirou, não sem, antes, dar umas cambalhotas, que
bobo não fica triste assim por qualquer bobagem...
Em
seguida, o rei falou:
–
Vem, nobre e ilustre bardo, e canta-nos uma balada! Aos teus pés,
encantadas, já tens a minha rainha e as damas da corte, e,
embevecidos, os meus cavaleiros! Depois de ouvir os teus relatos,
eles hão de ficar, com certeza, ainda mais aguerridos!
O
menestrel fez uma profunda reverência e, dedilhando, habilmente, a
sua harpa, contou histórias peregrinas, narrou feitos de briosos
cavaleiros e seus combates singulares, exaltou sua agilidade no
arremeter, sua destreza no ferir, sua arte em dar com o inimigo por
terra, sua capacidade de fender, de alto a baixo, gigantes
(sobretudo bíblicos...), de cortar cabeças de serpentes peçonhentas
(embora, como era sabido, elas, continuamente, renascessem...), de
desbaratar exércitos inteiros, de enfrentar maldosos anões, de
matar dragões chamejantes e de reparar, prontamente, afrontas a
donzelas indefesas ou libertá-las de perigosos encantamentos!
Todos
aplaudiram demoradamente, mas o bardo continuou:
–
Majestade, tenho ouvido dizer que é desejo dos cavaleiros andantes,
uma vez perecendo em combate, terem seus corpos enterrados no
castelo, para não serem comidos pelas feras nem seus olhos
arrancados pelos corvos ou outros pássaros do céu. Nada seria mais
justo, pois, se eles se envolvem em tantas peripécias, o fazem a
pedido do rei, por quem foram armados cavaleiros e a quem devem
absoluta lealdade e, ademais, somente seus restos estando, pelo
menos, num ossuário, é que os tornaria reais, ao invés de,
simplesmente, lendários...
As
damas suspiraram, os cavaleiros se entreolharam e o rei (já cheio
de vinho...), declarou que gostara muito deste final (o rei ria como
um bobo...), que eram maravilhosas aquelas histórias e que achava
impossível, em qualquer tempo, alguém vir a contar fatos tão
interessantes e valorosos como os que tinham acabado de ouvir!
O
rei e os cavaleiros, seguidos de suas damas, um a um, foram saindo,
todos ávidos de semear a sua semente...
Fez-se
silêncio na corte. Ao longe, o pio de um mocho. Sozinho, no grande
salão, à luz bruxuleante das tochas e envolto na fumaça, apenas o
mago sabia os nomes terríveis e estranhos, que, um dia, ainda
seriam usados pra contar coisas de amor e de morte...
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