Home Poesia Prosa Traduções Colaborações Arquivo Contatos

Bem-vindo à             homepage de Renato Suttana.

Nuno de Matos Duarte

 

Mauro Mendes - Prosa poética

 

Garatuja

Gávea

Vento claro

Vigília

 

 

GARATUJA

 

Uma coisa eu gostaria de deixar clara, amanhã. Acontece que nunca a manhã foi tão clara! Nunca amanhã! O dia nasceu do sol e, talvez, do fundo da noite, houvesse um tempo menos avaro. O futuro espera, o futuro não perde por esperar. Há um processo de composição global, que vai do infinito à raiz dos cabelos. Talvez ceja esta a maneira serta de dizer as coisas. Não sei o que. Não sei de nada. Eu quero é subir a rua da ladeira e sentar na beira. Quando as noites forem frias de chuva e aqueles barquinhos de papel passarem, ao largo, nas águas da sarjeta, põe uma rua por cima desta noite, põe uma noite por cima deste sonho, mesmo que seja só o tempo de dormir, sem parar, mesmo que seja só o tempo de te amar, mesmo que seja só... Mas, não adianta! No mais, no mais, as palavras não passam de pretexto. Ninguém fala das tuas roupas dependuradas no varal. Só se elas estiverem encardindo o teu corpo vivo. Tu não irás muito longe, mesmo porque a terra é pequena e os teus olhos estão próximos. Sonho-rodas-despedaçados. Um capricho. A espada de Dom Quixote não quebra meus moinhos de vento a contento. Ontem fazia um mar azul de meter medo nos outros mares, que se foram. Ontem fazia um escuro de meter medo, de meter medo no olho. Mas nós fomos mesmo assim. Nenhuma folha se mexia, pois o vento passa longe. Se o vento teima em soprar, pode ser perigoso. Primeiro o sopro, a inspiração, o mote, o verso, o canto. Depois eu digo, tu dirás e nos surpreenderemos conjugando verbos que julgávamos esquecidos. Infinito é o nome do verbo. Criaremos novas formas, que nos deixem perplexos, sem saber o que dissemos ou iremos dizer. A gramática persistirá, para sabermos que já não podemos voltar. Riremos das locuções pronominais recíprocas (egoístas), dos verbos intransitivos (encalhados), dos transitivos (de sentido único), dos bi-transitivos (com mão e contra-mão) e haveremos por bem não haver sujeito, mesmo que haja, neve, chova, amanheça, anoiteça, e nós debaixo deste haja, desta neve, desta chuva, desta manhã, desta noite. Nós não somos, propriamente, sujeitos. Isto é mais uma certeza de nomenclatura, pois quando neva, chove, amanhece, anoitece, nós nunca somos neve, chuva, manhã, noite. Preciso passar nesta calçada onde nunca passei, antes que se quebre esta doce certeza de ser noite. Quero ficar sem planos de madrugada, para que o dia não tenha nenhuma pista, nenhum roteiro da noite que me viu passar sozinho. Enfim, só tenho restos de noite para conferir esta manhã, que me leva além das fábricas. E quando, no fim, já de saída, nos despedirmos com um aperto de mão, ecoará a lembrança de tardes modorrentas, como se o passado destruído acordasse de um longo sono. No entanto, é apenas manhã, além das fábricas. É preciso ter, há muito tempo, a certeza de noites apenas esboçadas. A vida nos túneis, o vaga-lume no telhado, perto da antena de TV, o tempo no tempo e esta imensa garatuja pra escrever nas paredes declinadas: vento, deuses, praia, musgo, lusco-fusco, luxo, repuxo, frouxo barraco prenhe de vento acima das nossas cabeças descontentes, o mar e o nauta, o bardo viajor, o nauta solitário viajou por águas mansas, o trevo de quatro folhas, desconexo, impresso em tipografia original, paradoxal, todos dentro longe perto e longe dentro de tudo de perto visto de longe, até que a distância nos separe.

 

P.S. Se você anda descalço, eu não posso cuspir no chão. Mas se você amarra as minhas botas, eu andarei sete léguas!

 

 

 

GÁVEA

 

Naquele entardecer, quando voltávamos dos lados do mar, as nuvens, muito escuras e compactas, pareciam uma grande serra à nossa frente. Mas nós passamos, fácil, por aquela serra de nuvens e fomos ainda muito além... Agora, o vento ensaia uivos e assovios no casco de velhos veleiros abandonados. A carcaça dos veleiros guardou, por muito tempo, o tesouro dos piratas. Depois que de lá voltamos, nunca mais ouvimos falar naqueles simpáticos corsários, que tanto nos alegravam e até nos prometiam uma participação nas moedas ou mesmo um pequeno resgate. O cesto da gávea agora é samburá, em toscas jangadas. Quer dizer: perdemos o mapa do tesouro. Pouco importa! Amanhã, eu lhe enviarei um pequeno presente quebrado. Não! Não é a sopeira de porcelana chinesa que a vovó ganhou da baronesa. A xícara é de Colorex e, quando se mexe o leite com uma colher apanhada ao acaso, ela tilinta como as antigas moedas dos piratas. Em seguida, bebo um champanha alvejado com Omo, envelhecido em tonéis de sequóia. As sequóias crescem e vivem para o champanha desta festa, ao pôr-do-sol. Mas o sol poente não queima e, para mim, tanto faz! “Ca m’est égal”! Amanhã, veremos, ao meio-dia! Você pensará, sem dúvida, que nós temos muito a nos dizer e, talvez, seja verdade. Muitas palavras nos esperam, debaixo das pedras. A estrada que passa ao lado não voltou. O riacho se perdeu. É preciso dizer qualquer coisa. Você canta fora do ritmo. Você me pára, na rua, e me pergunta as horas pra acertar o seu relógio. E daí? Eu nunca irei saber se o seu relógio é roubado. A canção que eu assobio, neste instante, não está no disco que eu acabei de ouvir... Isto é o que se chama uma vida musicalmente desencontrada do tilintar das moedas na carcaça dos veleiros, no baú do pirata, no samburá, no cesto da gávea...

 

 

 

VENTO CLARO

 

Quatro seixos que rolam não fazem um carro. No máximo, fazem um caminho e caminhos já existem tantos e, por serem tantos, bem merecem uma sinaleira no coração. Mas o vento gira o poste da sinaleira e o sinal já não está fechado... Eu tenho uma vontade louca de rir deste tempo de ir! Por isto, espero o sinal fechar ou o vento soprar ao contrário... Os caminhos são muitos, as histórias, várias, mas só me ocorrem títulos. Quem dera reuni-los a ver se formam aquele quadro dito esparso de sombra. Existe uma tristeza tanta, que vem ou passa e diz, conforme a rima, que o soneto espera e escuta sempre os versos teus monótonos e cálidos, sem uma lua a mais ou a menos, sempre com você a menos. Estou prestes a confiar no tempo, manto, mato, longe, minto, positivo, negativo, a menos de um sinal, indefinido, sórdido. Vento claro, que sóis, ao meio-dia, bailar, que sóis poderiam bastar, ao meio-dia, e acontecer como nunca sói? Deus que me livre! “Sol com chuva, casamento da viúva”. O bem que me faz a chuva inesperada! Esconder-me-ei sob as águas dos teus olhos e deixarei a chuva cair, mansamente, no telhado. Talvez até haja, nisto, uma coincidência, (por força de eu ser lógico...), este sol mais ameno, este sereno, esta chuva menos molhada, esta crença no telhado (de Eternit), que não nos esconde do sol nem da lua nem do vento claro nem da chuva com sol, mas, pelo menos, (ao menos!), nos deixa dormir e acordar bêbados de sono! Eternite é aquela doença que não passa!...

 

 

 

VIGÍLIA

 

Avisarei, nas vésperas do alarme falso, antes do canto da sereia, da garoa. Esperarei nos arrecifes, bancos de coral salgados e marinhos, predestinados. De lá se sai para a grande “tournée” dos girassóis. A vida marisca. O sol dardeja. O mar poreja rápidos mergulhos de peixes fora d’água. O mar sabe tantas cantigas que é capaz de embalar o mundo inteiro... Eu daria tudo pra que esta frase fosse minha, mas o mar há muito que se foi e eu fiquei a ver aquela cortina de fumaça, que nada sabe. A janela do carro só me deixa alguns instantes de rara sombra, mas, talvez eu me acrescente alguma idéia, antes. No entanto, hoje eu não queria dormir, nem sequer queria mesmo! Vê se me avistas de cá, se me mandas de lá! Hoje, eu não queria dormir nem ruas nem vielas de tempo. O passado e o futuro. Tua imagem justaposta. Estrelas em demasia. Noite alta, em bando, nós passamos. Tudo opaco e nós passamos, nós amos, mostramos, deixamos você. Se vai quem seja, que fique quem há de ser, que seja quem há de ficar. Então, não tardo, vou também e me estico longas pernas, longas botas descontentes. Hoje, eu não queria dormir noites tardas, madrugadas circundantes. O vaga-lume se foi quieto de anoitecer fosforescente, pirilampo. Ele nunca esperou ser orvalho ao amanhecer, cigarra ao meio-dia. O orvalho cai das pétalas e mata a sede de raras minhocas desenterradas para ver a grande “tournée” dos girassóis. Hoje, eu não queria dormir, lentamente, ao meio-dia. Hoje, quem sabe? verão de terno inverno no terno teu meu terno meu de verão. Amanhã, ninguém sabe e nunca, antes, ninguém sabia nem esta simpatia errante pela noite, os duendes, os gnomos furta-cor, miméticos na fabulação compensatória. Deus meu, que terno meu digais se mais não valem lúcidos, brilhantes ecos de além-vento, do que sem pôr a tiracolo mais ninguém!

 

 

Retorna ao topo

Outros escritos de Mauro Mendes