GARATUJA
Uma
coisa eu gostaria de deixar clara, amanhã. Acontece que nunca a
manhã foi tão clara! Nunca amanhã! O dia nasceu do sol e, talvez,
do fundo da noite, houvesse um tempo menos avaro. O futuro espera, o
futuro não perde por esperar. Há um processo de composição
global, que vai do infinito à raiz dos cabelos. Talvez ceja
esta a maneira serta de dizer as coisas. Não sei o que. Não
sei de nada. Eu quero é subir a rua da ladeira e sentar na beira.
Quando as noites forem frias de chuva e aqueles barquinhos de papel
passarem, ao largo, nas águas da sarjeta, põe uma rua por cima
desta noite, põe uma noite por cima deste sonho, mesmo que seja só
o tempo de dormir, sem parar, mesmo que seja só o tempo de te amar,
mesmo que seja só... Mas, não adianta! No mais, no mais, as
palavras não passam de pretexto. Ninguém fala das tuas roupas
dependuradas no varal. Só se elas estiverem encardindo o teu corpo
vivo. Tu não irás muito longe, mesmo porque a terra é pequena e
os teus olhos estão próximos. Sonho-rodas-despedaçados. Um
capricho. A espada de Dom Quixote não quebra meus moinhos de vento
a contento. Ontem fazia um mar azul de meter medo nos outros mares,
que se foram. Ontem fazia um escuro de meter medo, de meter medo no
olho. Mas nós fomos mesmo assim. Nenhuma folha se mexia, pois o
vento passa longe. Se o vento teima em soprar, pode ser perigoso.
Primeiro o sopro, a inspiração, o mote, o verso, o canto. Depois
eu digo, tu dirás e nos surpreenderemos conjugando verbos que julgávamos
esquecidos. Infinito é o nome do verbo. Criaremos novas formas, que
nos deixem perplexos, sem saber o que dissemos ou iremos dizer. A
gramática persistirá, para sabermos que já não podemos voltar.
Riremos das locuções pronominais recíprocas (egoístas), dos
verbos intransitivos (encalhados), dos transitivos (de sentido único),
dos bi-transitivos (com mão e contra-mão) e haveremos por bem não
haver sujeito, mesmo que haja, neve, chova, amanheça, anoiteça, e
nós debaixo deste haja, desta neve, desta chuva, desta manhã,
desta noite. Nós não somos, propriamente, sujeitos. Isto é mais
uma certeza de nomenclatura, pois quando neva, chove, amanhece,
anoitece, nós nunca somos neve, chuva, manhã, noite. Preciso
passar nesta calçada onde nunca passei, antes que se quebre esta
doce certeza de ser noite. Quero ficar sem planos de madrugada, para
que o dia não tenha nenhuma pista, nenhum roteiro da noite que me
viu passar sozinho. Enfim, só tenho restos de noite para conferir
esta manhã, que me leva além das fábricas. E quando, no fim, já
de saída, nos despedirmos com um aperto de mão, ecoará a lembrança
de tardes modorrentas, como se o passado destruído acordasse de um
longo sono. No entanto, é apenas manhã, além das fábricas. É
preciso ter, há muito tempo, a certeza de noites apenas esboçadas.
A vida nos túneis, o vaga-lume no telhado, perto da antena de TV, o
tempo no tempo e esta imensa garatuja pra escrever nas
paredes declinadas: vento, deuses, praia, musgo, lusco-fusco, luxo,
repuxo, frouxo barraco prenhe de vento acima das nossas cabeças
descontentes, o mar e o nauta, o bardo viajor, o nauta solitário
viajou por águas mansas, o trevo de quatro folhas, desconexo,
impresso em tipografia original, paradoxal, todos dentro longe perto
e longe dentro de tudo de perto visto de longe, até que a distância
nos separe.
P.S.
Se você anda descalço, eu não posso cuspir no chão. Mas se você
amarra as minhas botas, eu andarei sete léguas!
GÁVEA
Naquele
entardecer, quando voltávamos dos lados do mar, as nuvens, muito
escuras e compactas, pareciam uma grande serra à nossa frente. Mas
nós passamos, fácil, por aquela serra de nuvens e fomos ainda
muito além... Agora, o vento ensaia uivos e assovios no casco de
velhos veleiros abandonados. A carcaça dos veleiros guardou, por
muito tempo, o tesouro dos piratas. Depois que de lá voltamos,
nunca mais ouvimos falar naqueles simpáticos corsários, que tanto
nos alegravam e até nos prometiam uma participação nas moedas ou
mesmo um pequeno resgate. O cesto da gávea agora é samburá, em
toscas jangadas. Quer dizer: perdemos o mapa do tesouro. Pouco
importa! Amanhã, eu lhe enviarei um pequeno presente quebrado. Não!
Não é a sopeira de porcelana chinesa que a vovó ganhou da
baronesa. A xícara é de Colorex e, quando se mexe o leite com uma
colher apanhada ao acaso, ela tilinta como as antigas moedas dos
piratas. Em seguida, bebo um champanha alvejado com Omo, envelhecido
em tonéis de sequóia. As sequóias crescem e vivem para o
champanha desta festa, ao pôr-do-sol. Mas o sol poente não queima
e, para mim, tanto faz! “Ca m’est égal”! Amanhã, veremos, ao
meio-dia! Você pensará, sem dúvida, que nós temos muito a nos
dizer e, talvez, seja verdade. Muitas palavras nos esperam, debaixo
das pedras. A estrada que passa ao lado não voltou. O riacho se
perdeu. É preciso dizer qualquer coisa. Você canta fora do ritmo.
Você me pára, na rua, e me pergunta as horas pra acertar o seu relógio.
E daí? Eu nunca irei saber se o seu relógio é roubado. A canção
que eu assobio, neste instante, não está no disco que eu acabei de
ouvir... Isto
é o que se chama uma vida musicalmente desencontrada do tilintar
das moedas na carcaça dos veleiros, no baú do pirata, no samburá,
no cesto da gávea...
VENTO
CLARO
Quatro
seixos que rolam não fazem um carro. No máximo, fazem um caminho e
caminhos já existem tantos e, por serem tantos, bem merecem uma
sinaleira no coração. Mas o vento gira o poste da sinaleira e o
sinal já não está fechado... Eu tenho uma vontade louca de rir
deste tempo de ir! Por isto, espero o sinal fechar ou o vento soprar
ao contrário... Os caminhos são muitos, as histórias, várias,
mas só me ocorrem títulos. Quem dera reuni-los a ver se formam
aquele quadro dito esparso de sombra. Existe uma tristeza tanta, que
vem ou passa e diz, conforme a rima, que o soneto espera e escuta
sempre os versos teus monótonos e cálidos, sem uma lua a mais ou a
menos, sempre com você a menos. Estou prestes a confiar no tempo,
manto, mato, longe, minto, positivo, negativo, a menos de um sinal,
indefinido, sórdido. Vento claro, que sóis, ao meio-dia, bailar,
que sóis poderiam bastar, ao meio-dia, e acontecer como nunca sói?
Deus que me livre! “Sol com chuva, casamento da viúva”. O bem
que me faz a chuva inesperada! Esconder-me-ei sob as águas dos teus
olhos e deixarei a chuva cair, mansamente, no telhado. Talvez até
haja, nisto, uma coincidência, (por força de eu ser lógico...),
este sol mais ameno, este sereno, esta chuva menos molhada, esta
crença no telhado (de Eternit), que não nos esconde do sol nem da
lua nem do vento claro nem da chuva com sol, mas, pelo menos, (ao
menos!), nos deixa dormir e acordar bêbados de sono! Eternite é
aquela doença que não passa!...
VIGÍLIA
Avisarei,
nas vésperas do alarme falso, antes do canto da sereia, da garoa.
Esperarei nos arrecifes, bancos de coral salgados e marinhos,
predestinados. De lá se sai para a grande “tournée” dos girassóis.
A vida marisca. O sol dardeja. O mar poreja rápidos mergulhos de
peixes fora d’água. O mar sabe tantas cantigas que é capaz de
embalar o mundo inteiro... Eu daria tudo pra que esta frase fosse
minha, mas o mar há muito que se foi e eu fiquei a ver aquela
cortina de fumaça, que nada sabe. A janela do carro só me deixa
alguns instantes de rara sombra, mas, talvez eu me acrescente alguma
idéia, antes. No entanto, hoje eu não queria dormir,
nem
sequer queria mesmo! Vê se me avistas de cá, se me mandas de lá!
Hoje,
eu não queria dormir nem ruas nem vielas de tempo. O passado e o
futuro. Tua imagem justaposta. Estrelas em demasia. Noite alta, em
bando, nós passamos. Tudo opaco e nós passamos, nós amos,
mostramos, deixamos você. Se vai quem seja, que fique quem há de
ser, que seja quem há de ficar. Então, não tardo, vou também e
me estico longas pernas, longas botas descontentes. Hoje, eu não
queria dormir noites tardas, madrugadas circundantes. O vaga-lume se
foi quieto de anoitecer fosforescente, pirilampo. Ele nunca esperou
ser orvalho ao amanhecer, cigarra ao meio-dia. O orvalho cai das pétalas
e mata a sede de raras minhocas desenterradas para ver a grande
“tournée” dos girassóis. Hoje, eu não queria dormir,
lentamente, ao meio-dia. Hoje, quem sabe? verão de terno inverno no
terno teu meu terno meu de verão. Amanhã, ninguém sabe e nunca,
antes, ninguém sabia nem esta simpatia errante pela noite, os
duendes, os gnomos furta-cor, miméticos na fabulação compensatória.
Deus meu, que terno meu digais se mais não valem lúcidos,
brilhantes ecos de além-vento, do que sem pôr a tiracolo mais
ninguém!
|