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Malevitch

 

UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE O INVENTO DE KORF

 

(Mauro Mendes)

 

O Invento de Korf

 

(Poema de Christian Morgenstern, poeta alemão, publicado (o original e a tradução abaixo), em 06.11.87, no jornal Folha de S. Paulo)

 

Korf inventou uma espécie de piadas,

que só fazem efeito muitas horas passadas.

Todos as ouvem com tédio, enfadados.

 

Mas é como um rastilho, queimando em surdina.

Quando é noite, na cama, repentina euforia

faz sorrir feito um beato bebê amamentado.

 

(Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho)

 

Korf erfindet eine Art von Witzen

die erst viele Stunden spaeter wirken.

Jeder hoert sie an mit Langerweile.

 

Doch als hett ein Zunder still geglommen,

wird man nachts im Bette ploetzlich munter,

selig laechelnd wie ein satter Saeugling.

 

(Christian Morgenstern)

 

 

Sujeito estranho este Korf! Seu invento parece muito simples: contar uma espécie de piadas, que só fazem efeito muitas horas passadas. Difícil é descobrir o seu intento e, sobretudo, os mecanismos que utiliza. Que espécie de piadas conta, capazes de causar este efeito de tal maneira retardado? Não seria muito melhor fazer as pessoas rirem na sua presença, para passar por espirituoso e engraçado? Ao contrário, ele causa tédio e enfado, que os ouvintes nem se preocupam em dissimular, soltando longos e estrepitosos bocejos. Todavia, Korf nem se importa(será que nem ele ri de suas piadas como sempre acontece com os mais medíocres contadores?...) e continua, impávido, a sua fala. Seria mesmo só uma fala? Não seria Korf também um mímico? Um saltimbanco? Um prestidigitador? Um ilusionista? Um político? Um apresentador de TV? Um camelô? Contudo, tentar fazer, agora, uma idéia mais acurada da figura de Korf em nada ou muito pouco contribuiria para o nosso principal objetivo, que é descobrir o seu intento e os mecanismos que utiliza.

 

Não se pode, a rigor, afirmar que Korf seja um mau contador de piadas ou que estas não sejam interessantes, pois fazem efeito muitas horas passadas, de noite, na cama. O que não se entende é o tédio manifestado abertamente pelas pessoas. Por quê, então, vão ouví-lo? São muitas estas pessoas? Onde isto se passa? Num auditório? Na igreja? Em praça pública? No intervalo do trabalho? No metrô? Por outro lado, Korf sabe mesmo que as pessoas riem de suas piadas, muito tempo depois, de noite, na cama? Decerto que sim, pois se afirma que ele "inventou" uma espécie de piadas, o que caracteriza uma intencionalidade, uma descoberta. Qual o fascínio ou o poder que se esconde por trás disto? Mais ainda: as pessoas sabem que ele sabe que elas riem de suas piadas, de noite, na cama? Todas as pessoas sabem também isto a respeito umas das outras? São perguntas aparentemente sem importância, mas que podem fornecer elementos importantes para a nossa investigação.

 

Tentemos, agora, caracterizar melhor alguns aspectos da questão. As pessoas são tomadas por uma repentina euforia e começam a rir das piadas de Korf, de noite, na cama. É como se os torcedores vaiassem o seu time, durante o jogo, e só fossem vibrar com os gols marcados muito tempo depois de saírem do estádio... A primeira característica marcante do invento de Korf é, portanto, o deslocamento do tempo da resposta, é a distância entre a causa e o efeito, entre o estímulo e o reflexo. Mesmo aventando-se a hipótese de que o humor de Korf seja extremamente sutil e refinado, isto, de modo algum, explica o retardamento do riso. Ou se acha graça de uma piada na hora, muitas vezes por fingimento ou para não constranger a outra pessoa, ou não se acha graça nunca mais. E tanto é verdade que piada sem riso não é piada que os programas humorísticos de TV têm o cuidado de gravar, juntamente com as piadas, gostosas e sonoras gargalhadas, que, ao contrário do que acontece com Korf, têm o curioso efeito de bloquear para sempre o riso do telespectador, pois outros já estão rindo em seu lugar... Descobrimos, assim, que Korf não é nem humorista nem apresentador de TV e, como já se previa acima, isto em nada contribui para descobrirmos o seu objetivo, o seu real intento. Continuamos longe de entender o invento de Korf.

 

Analisemos, agora, duas outras características do invento de Korf. Uma diz respeito ao seu caráter orgástico, expresso como "um rastilho[de pólvora] queimando em surdina" e que provoca "repentina euforia". A outra é a sensação de saciedade, expressa como "faz sorrir feito um beato bebê amamentado". Como tudo se passa de noite, na cama, e estando a imagem de bebê amamentado associada a procriação, útero, seios fartos e túmidos(seria Korf uma mulher??!!), o invento de Korf assume, de repente, um caráter erótico, até aqui inimaginável, mas, na verdade, inteiramente óbvio. Não podemos, por isto, achar que já deciframos o invento de Korf e, ao mesmo tempo, não podemos desprezar nenhuma pista...

 

Para saber que as pessoas riem de suas piadas, de noite, na cama, Korf necessariamente tem que ter presenciado isto. Do contrário, como poderia ele avaliar a real eficácia do seu invento? Apenas com base no relato das pessoas? Apenas por ouvir dizer? Se assim fosse, o seu invento seria questionado e os seus efeitos atribuídos ao acaso ou a outros fatores. O intento de Korf parece, então, consistir em criar situações ou pretextos para estar com as pessoas de noite, na cama, para rirem de suas piadas... Com cada pessoa individualmente? Com todas ao mesmo tempo? Trata-se, então, de uma suruba, de uma orgia, de uma bacanal? Seria Korf um sedutor? Um maníaco sexual? Um guru? Estamos, de novo, fazendo perguntas sobre a figura de Korf, o que, neste momento, até se justifica, pois, de algum modo, conseguimos estabelecer um seu possível intento, embora continuemos longe de descobrir os mecanismos utilizados. De fato, qualquer pessoa não julgaria loucas outras pessoas que, de noite, na cama, começassem, de repente, a rir de piadas contadas muitas horas atrás, bem como não seria impossível a uma pessoa qualquer entrar facilmente em quartos, alcovas e leitos conjugais, a não ser que esta pessoa fosse o ladrão do riso, a não ser que esta pessoa fosse o próprio Korf?!!!!

 

Continuamos sem saber nada sobre a espécie de piadas contadas por Korf e sobre os mecanismos por ele utilizados para provocar o descompasso entre a piada e o riso, entre a emoção e o fato. Todavia, podemos ainda afirmar que o invento de Korf parece também uma parábola, uma alegoria ou uma paródia de certa condição humana em que as pessoas não se conectam com a situação que estão vivendo e, bocejando, fingem desconhecer o que se passa à sua volta, tornando-se, assim, presas fáceis de hábeis manipuladores. Isto seria um ótimo argumento, uma ótima pista para continuarmos investigando o invento de Korf, não fora a sensação de beatitude, de satisfação plena, que o poema passa, no final. Com efeito, a loucura, e nunca a felicidade, costuma ser a conseqüência do alheamento da realidade.

 

A despeito das conclusões e observações desta investigação, algumas até perspicazes e verossímeis, outras irônicas e outras até intencionalmente vulgares, o invento de Korf permanece indecifrável. Ou será que Korf simplesmente inventou uma espécie de piadas? Os poetas nunca se enganam!...

 

 

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