SOBRE “SETE CANTARES DE
AMIGOS” (*)
(Mauro Mendes)
A Miguel Carneiro
1. A capa
Os violeiros estão começando o desafio:
“Sinhores donos da casa
o cantadô pede licença
pra puxá a viola rasa
aqui na vossa presença”.
[ELOMAR, Abertura do Auto da
Catingueira, in “CANTORIA 1, Kuarup Discos, 1984]
Os violeiros: dois bonecos de Vitalino!...
A sonoridade destes instrumentos é bárbara!
2. O título
O título do livro é, por si só, um
posicionamento esplêndido contra a antinomia que alguns dizem
existir entre canção e poesia. São sete amigos, sete poetas, cujos
poemas são também cantares (cantigas), o que, de novo, me remete a
Elomar:
“Lá na Casa dos Carneiros,
sete candeeiros
iluminam a sala de amor.
Sete violas em clamores,
sete cantadores,
são sete tiranas de amor.”
[ELOMAR, Cantiga de amigo, id. ib.]
Um bom livro tem que ter, antes de tudo,
um bom título, quer dizer, um bom título vale por um livro inteiro!
3. A apresentação
Na apresentação, a poeta Maria da
Conceição Paranhos, com a sensibilidade que a caracteriza, capta
todo o sentido, todo o “peso” do título e convida a uma reflexão
sobre a poesia como “cantar” ou como “canção”. Cita, a propósito, o
poeta francês Paul Verlaine (1844-1896), cujo lema, “De la
musique, avant toute chose” (Música, antes de tudo), está,
admiravelmente, representado nestes versos de sua autoria:
“Les sanglots longs
des violons de l’automne
blessent mon coeur
d’une langueur monotone.”
Cita ainda Walter Pater (1839-1894),
para quem “todas as artes aspiram à condição de música”.
Uma proposta semelhante às
citadas acima (e, de certo modo, até mais ousada) eu descobri numa
canção que ouvi, casualmente, no rádio, há muitos anos:
“Todas as coisas,
na realidade,
serão verdade,
se eu puder cantar”.
[Trecho não literal da letra de
uma canção popular; cujo autor desconheço]
4. Sobre o cantar de Adelmo Oliveira
Boiardos...
Alguém sabe o que é boiardos?...
Boiardos só quem sabe é o poeta que
escreveu e às vezes nem o poeta mas é justo quando ele pensa que
boiardos são estes bêbados bastardos gritando de madrugada tirando o
sossego da gente...
Boiardos...
Eu também me atrevo a imaginar algo que
seja boiardos assim como estes bois tardos que não se pejam nem se
importam de ficar para sempre lentamente ruminando remoendo a sua
baba...
Boiardos...
Só o poeta que escreveu é que sabe...
E às vezes...
5. Sobre o cantar de Affonso Manta
O poeta Affonso Manta
via outro Affonso Manta...
e, quando um deles passava,
o outro sempre encontrava
um jeito de estar por perto:
– “Lá vai Affonso Manta!”
... e, ainda hoje, o que um Affonso
diz sobre o outro (também Manta)
é tudo líquido e certo!...
6. Sobre o cantar de Elizeu Paranaguá
A poesia de Elizeu Paranaguá tem um
certo acento “filosófico”. Gláucia Lemos usa o termo “Metafísica”
para caracterizar a obra do poeta (Sete Cantares de Amigos, pg. 83).
Pode-se observar esta tendência já no próprio título do seu segundo
livro, “Pedra do Caos”, onde “pedra”, cuja consistência é sólida e
possui natureza concreta e delimitada, se opõe a “caos”, que é
fluido, desordenado, confuso e ilimitado. Então, é como se, pela
ação do poeta-criador, ocorresse uma espécie de cosmogonia...
Quase todos os poemas de Elizeu
Paranaguá incluídos na coletânea fazem parte do livro “Pedra do
caos”. O “tema” da pedra é, portanto, neles recorrente e aparece
também, repetidas vezes, no “Poema Terra Castro Alves. O termo pedra
é utilizado ora como símbolo da tentativa humana, sempre frustrada,
de parar, de fixar o que é essencialmente fugidio ou inalcançável,
ora como símbolo de imobilidade, isto é, de “morte” de tudo o que é
mais caro ao homem ou do que constitui seu sonho, suas aspirações,
suas formas de vida ou sua simples relação com a natureza.
Alguns trechos selecionados destes
poemas exemplificam o que se disse acima:
Correndo atrás da imagem
(...) e no meio
da pedra cabe um deus
(...)
Poema do rio
O rio penetra no homem
no tempo, na rocha e foge
do espírito implacável
(...)
O nada como sombra
Sou apenas o nada
como sombra sobre
a pedra, sou apenas
a sombra como pedra.
Poema Terra Castro Alves
(...)
Presencio no templo-negro a imagem e
os cânticos da coruja que abre suas asas sobre a face da terra.
(...)
pedra-deusa
pedra-noite
pedra-dia
pedra-arco-íris
(...)
pedra-força
pedra-céu
pedra-mar
(...)
pedra-da-paixão
pedra-do-amor
(...)
7. Sobre o cantar de José Inácio
Vieira de Melo
Eu queria também ter nascido
em Olho d’Água do Pai Mané,
mas também podia ter sido
em Olho d’Água das Flores,
ou em outro Olho d’Água qualquer...
Segundo o poeta Iacyr Anderson,
quem nasce em Olho d’Água do Pai Mané
é manezinho,
(o que, de fato, é um achado
muito engraçado),
e, segundo o Aurélio Buarque,
quem nasce em Olho d’Água das Flores
é, simplesmente, olho d’agüense...
Divergências à parte,
juro que eu gostaria
de ser chamado de manezinho,
eu queria era ter nascido
em Olho d’Água do Pai Mané,
mas também podia ter sido
em Olho d’Água das Flores
ou em outro Olho d’Água qualquer...
Olho d’água é a nascente,
é a canção subterrânea,
que surge assim de repente,
que vem de dentro da gente,
e jamais pára de correr...
Olho d’água é a fonte
aonde as morenas da serra,
(como a cabocla Jurema)
rindo a não mais poder,
vêm encher as suas talhas
quando chega o entardecer
e se juntam pra conversar...
Sem dúvida, era muito esperto
este Pai Mané do olho d’água...
Juro que eu gostaria,
não me importava nem um pouquinho
de ser chamado de manezinho...
Eu queria ter nascido
em Olho d’Água do Pai Mané,
mas também podia ter sido
em Olho d’Água das Flores
ou em outro Olho d’Água qualquer...
8. Sobre o cantar de Kátia Borges
Poemas zumbindo,
ao redor da cabeça...
Amanhã dou um jeito nisto,
deixo estas coisas,
esta caixa...
Tenho abelhas e vendo mel...
9. Sobre o cantar de Miguel Carneiro
Além de sua ligação visceral com o
sertão, a obra de Miguel Carneiro está envolta numa aura de
misticismo e religiosidade.
Num primeiro nível, isto se observa nos
seguintes títulos de poemas da coletânea e de poemas e livros
publicados no “Arquivo de Renato Suttana” e no “Jornal de Poesia”:
“Breviário do povo”, “Breviário”, ”Breviário da danação” (o termo
breviário entendido, aqui, como uma alusão ao antigo livro de
rezas diárias dos clérigos), “Psalmus 13”, “Psalmus 66”, “O Anjo
exterminador”, “O herético”, “Prece de um pecador”, “Catecismo
jacuipense” e “Celebrações Zefirinianas (à moda do catecismo)".
Num segundo nível, o poeta, aqui e ali,
transcreve ou faz referências a trechos de antigas orações ou
cânticos da liturgia da Igreja Católica: “Ora pro nobis, Sancta Dei
Genitrix” (Rogai por nós, santa mãe de Deus), no poema “Breviário do
povo”; (...) “os cânticos de Maria, Mãe Puríssima”, no poema
“Ofício”; “Por ti, Mãe de Deus, reúno todas as minhas preces
pequeninas”, no poema “Psalmus 13”. Pode-se mesmo afirmar que alguns
poemas de Miguel Carneiro são pedaços de rezas, murmúrios ou
lembranças de rezas, cânticos ou insinuações de cânticos religiosos
e não me espantaria se, lendo seus versos, eu “ouvisse”, de repente,
um coro de querubins cantando um “Queremos Deus, na hóstia santa,
que se consagra sobre o altar”, ou um “A treze de maio, na cova da
Iria, no céu aparece a Virgem Maria”, ou um “Miserere nobis” (Tende
piedade de nós) ou um “Te Deum laudamus, Domine” (Nós te louvamos,
Senhor Deus)...
Por tudo isto, o poeta cumpre, de
forma adicional e particularíssima, a proposta do título da
coletânea: Sete cantares de amigos...
Contudo, do que foi dito acima, não
deduza algum leitor incauto que estamos diante de um misticismo
piegas nem mesmo que se trata de uma religiosidade ortodoxa ou
praticada por um crente comum. Ao contrário, o poeta faz da
religiosidade base para uma total e escrachada irreverência, como no
poema “Quatro fadas do meu burgo”:
(...)
Zefa Moringa, amásia de Tomaz,
entregava os peitos anchos e caídos
para saciar mundanamente a sede dos
meninos.
Enquanto Padre Osvaldo
imerso em incensos e mirra
recitava ladainhas.
(...)
Zeca de Magalhães, poeta carioca
radicado na Bahia, diz, no Prefácio de “Breviário da Danação”
(publicado no “Arquivo de Renato Suttana), que se trata de uma
novela de título “picante e irônico”, “que decerto fará corar as
senhoras de família, as mocinhas casadoiras e causará
constrangimentos a hipocrisia moralista de nossa imprensa cultural”.
Em “Catecismo Jacuipense” (publicado
também no “Arquivo de Renato Suttana”), o poeta conta, de maneira
admirável e franca, as lições de vida que aprendeu e que considera
verdadeiras (em oposição ao catecismo, onde se ensinavam apenas
dogmas e preceitos religiosos...), alternando momentos de fino
lirismo e de crua irreverência:
(...)
“Eu nunca morei em ponta de Rua,
mas é como se ela sempre habitasse
dentro de mim.
(...)
dançando nas Lavagens das Putas,
em cada 16 de Agosto,
quando me incorporava ao grandioso
cortejo,
para louvar o glorioso São Roque do
Jacuípe.”
(...)
Os aspectos místicos e religiosos da
poesia de Miguel Carneiro merecem um estudo mais alentado, mas penso
que não é um despropósito já aplicar a eles os conhecidos versos de
Gregório de Mattos :
Pequei, Senhor, mas não porque hei
pecado,
de vossa alta clemência me despido,
porque, quanto mais tenho delinqüido,
vos tenho a perdoar mais empenhado.
Em suma, poder-se-ia dizer que a poesia
de Miguel Carneiro reza para que o poeta possa, assim,
continuar a ser um pecador dentro do paraíso...
10. Sobre o cantar de Pedro Vianna
Em muitos momentos, os poemas de Pedro
Vianna me lembram o poeta francês Jacques Prévert (1900-1977), pela
sua forma despojada, coloquial, direta e concisa e também por causa
deste fio lírico costurando fatos do dia-a-dia aparentemente
aleatórios, estanques ou sem importância. É o que se observa no
poema (sem título) dedicado a Denise Sardó, do qual transcrevo os
versos iniciais:
À Paris
Il est trois heures.
Les éboueurs
ramassent
les ordures de la
journée.
Il est trois heures
à Paris.
Dans une chambre
Quelq’un demande
pardon.
(...)
Prévert aprovaria, sem dúvida, o título
“Sete Cantares de Amigos”, pois escreveu letras de canção e muitos
de seus poemas foram musicados. Penso que, por isto mesmo, ele deu o
título de “Paroles” a um livro seu publicado em 1949, pois, em
francês, “paroles” significa também letra de canção...
Um poema denso como um ponto de
interrogação, como deseja o poeta? Talvez Les
paris stupides:
Um certain Blaise
Pascal
Etc. etc.
(Jacques Prévert, PAROLES, Gallimard,
1949)
11. Conclusão
Entrou pelo cu do pinto
e saiu pelo cu do pato,
Senhor Rei mandou dizer:
quem quiser conte mais quatro.
(Versos de domínio popular)
Dezessete é minha conta, vem, amiga, e
conta uma coisa linda pra mim e eu já andei dezessete légua e meia
pra ir num forró dançar e sete também é a conta do mentiroso e sete
cantares de amigos é como sete cantigas para voar e fica zunindo
assim dentro da cabeça da gente, sem parar...
(Vários domínios)
(*) SETE CANTARES DE AMIGOS
Edições Arpoador
Salvador – Bahia - 2003
Organização: Miguel Antonio Carneiro
Seleção e notas: José Inácio Vieira
de Melo
Apresentação e revisão: Maria da
Conceição Paranhos
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