MAIS GARATUJAS
(Mauro Mendes)
Alegoria
Mal podemos
acreditar nas histórias maravilhosas que nos contavam. Lembramos
delas com satisfação e rimos o riso amargo dos vencidos. Já entramos
na região de sombra. Um atalho se desenha na paisagem dispersa, mas
ainda não sabemos onde fica a saída. O canto dos pássaros nos atinge
e nenhum pássaro específico nos impressiona, todos mudos na visão
nostálgica do verde... A chuva cai como uma estranha necessidade de
te lembrar... Os duendes foram morar na concha furta-cor de um
caracol... Até aqui vim eu. Aqui a letra começa a mudar e o instante
é demais. Até aqui vim eu, sem ter coragem de ir para onde não devo
e devassar os mistérios desta noite, tão sem mistérios esta noite,
pobrezinha desta noite. Talvez seja melhor ir contar as formigas que
passeiam na parede ou as moscas ainda acordadas a esta hora ou
investigar, cuidadosamente, o caminho dos cupins. Os cupins surgem
do fundo da terra, como os gnomos, os duendes, os elfos e os silfos.
Eles guardam a verdade que a história não conta... Até que nós
também vamos ficando leves... muito leves... etéreos... na crista da
onda... sem vontade de voar...
Noturno (I)
Eu não consigo
entender o que pode existir por trás de uma fotografia, agora. É
meia-noite de um quarto, onde existem lençóis e cama. Nem isto eu
consigo entender. O que me resta agora é assim como a areia que não
passou na ampulheta do tempo. Isto bem poderia ser o começo de um
poema... A areia que não passou na ampulheta do tempo é uma areia
cheia de mar... Isto eu consigo entender. É bom ficar escrevendo,
quando falta o sono, buscando palavras poéticas como ampulheta,
monjolo, musgo, líquen, lusco-fusco e outras, de que não lembro, mas
sei que lembrarei um dia. Esta é a única verdade que me interessa,
agora. Esta é a única maneira de dar tempo ao tempo, antes do sono,
antes do pesadelo e do falar sozinho. Este é, talvez, o único
caminho...
Noturno (II)
(quase um
“thriller”)
Obrigado! Você me
deu a dica. Obrigado! Eu não sabia o que eu queria dizer, ou,
talvez, eu não queira dizer nada. Eu, certamente, terei que dizer
alguma coisa. É triste dizer que não é triste dizer que você se foi.
É noite, eu sei. Há muita fumaça no ar e não é noite de São João.
Preste atenção, ao passar nesta calçada. Podem estar falando de um
fato novo, nunca visto e você passa, assim, ao largo, prudentemente
ao largo, como se não houvesse amanhã, como se não houvesse nada?
Preste atenção! É apenas noite, por enquanto. As ruas estão cheias
de placas luminosas acendendo e apagando. Há muito as placas não
dizem nada. Só dizem “dobre à direita”, “dobre à esquerda”, “siga em
frente”. São placas brancas de uma cidade branca sob um sol branco.
Amanhã, o sol não virá, mas eu já esperava por isto, juro, pela luz
que me alumia!... Pergunte qualquer coisa que eu respondo qualquer
coisa. Não tenho papo nem saco nem asco nem jeito. Ponto inicial,
vírgula final, abre parênteses para passarem estas palavras soltas.
As palavras vão ao final da linha e voltam, mas eu saio do papel e
escrevo na mesa, nas paredes e no teto a minha grandiloqüência. Vou,
assim, ensinar o alfabeto aos cupins, às moscas e às baratas. Não
haverá mais insetos analfabetos, míseros desprezíveis!... O papo é o
saco, o meio é o termo. O vilão que assaltou a cidade pacata fugiu
com sacolas cheias de dinheiro e não contou o mistério do dólar
furado. Não tem problema! O mapa do tesouro pode, hoje, ser
encontrado em caixas de OMO (ou coisa que o valha) e nós encheremos,
de novo, a cidade-fantasma com os uivos de falsos apaches imitando
coiotes verdadeiros, à luz da lua, dizendo que o assalto está
próximo. Porque está mesmo. Encontrar-nos-emos nos meandros do
desfiladeiro, nas escarpas da encosta. A diligência não tarda. Nela
vem uma formosa mulher vestida de negro. É Chapeuzinho Vermelho
disfarçada de Bela Adormecida. O lobo é o cocheiro. Eles estão
procurando a avozinha, para tirar as provas, e, depois, vão casar na
Justiça. A justiça do Oeste é o meu “Colt” 45. Quando ele caiu
crivado de balas, seu sangue aguado deu as tintas pro poente...
Fez-se noite. Passamos um frio danado em Sierra Madre. Antes que o
dia raiasse, as estrelas foram embora. Ao chegar em New City, o
xerife me deu sua estrela e fez-se noite para sempre no meu peito...
Vê como é simples? O Oeste redivivo, o duelo no “Saloon”, a
cavalgada no “Grand Canyon”, os índios coitados caindo de risos de
riscos matando poucos morrendo muitos o cacique Alce Ligeiro com seu
grande cocar de penas coloridas comandando os guerreiros do sol
nascente!...
Quando a sombra das
casas tiver se deslocado, e nós já não contamos os dias por sóis,
por luas, já não esperamos o sinal de fumaça dos índios, então
poderemos fumar o cachimbo da paz... Agora, me farei ao largo,
porque Barba Negra, o pirata, já não assalta as tímidas galeras.
Vogando à flor das águas... Vogando... A brisa é doce... Repousarei,
ao sabor das águas... Dormirei... Porque, não esqueci, é apenas
noite. Por enquanto...
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