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Nicolau Saião (arte digital)

 

Poemas de Mauro Mendes

 

Ditirambo

Gênesis

Mar obsoleto

Nostalgia

Náutica

Sierra Madre

Escalada

Tautologia

Sentimento

Sinopse

Pastoral

Carrossel

Pontuação

Pesadelo

 

 

DITIRAMBO

 

um livro

um filho

um idílio

uma árvore genealógica!

um deus

um fruto

uma flora

uma fauna arqueológica!

um filho

um deus

uma ninfa

uma santíssima trindade!

um livro

um deus

uma hera

uma folha paradisíaca!

 

 

 

GÊNESIS

 

No princípio era o Verbum

(João 1;1)

 

...e Deus,

por ter inventado o mundo

antes de todo mundo,

quanta coisa deixou de aprender!...

escrever, rabiscar, desenhar...

escrever ao acaso, desdenhar...

adivinhar, garatujar...

no princípio era o Verbum...

de repente, as palavras se encontram

ao redor do vazio deixado pelas mesmas palavras...

escrevinhar, rabiscar,

tornar até mesmo adivinháveis as garatujas,

as burundangas, mixórdias e algaravias...

pensar ao léu,

penetrar nos mistérios,

desvendar...

imo ímã hímen mãe serpente cobra boa

hímen ímã irmã mãe serpente naja boa

não haja mais serpente boa

no imo húmus úmido do paraíso

para isso estamos aqui mesmo

serpente-ando por nada

por isto tudo e aquil'outro

'stamos estáticos

sintáticos, sintagmáticos

como ex-finges que te devoras ou me decifro

por dez cifras te devoro me desdenho

pra isto mesmo aqui estamos

desvendando os sonhos

do outro lado do léu

do outro lado do istmo

 

 

 

MAR OBSOLETO

 

Foi desde sempre o mar

e multidões passadas me empurravam

como a barco esquecido.

(Cecília Meireles)

 

Diante deste mar revolto,

que, outrora, simbolizou

a esperança de um tempo,

estou sozinho e calmo.

Agora já não penso,

sou apenas memória,

lembrança de outros caminhos,

que se perderam

no próprio caminho do vento.

Tento, em vão, recompô-los

e presto atenção às ondas,

se quebrando nos rochedos,

trazendo conchas e búzios,

respostas mudas do mar.

O pensamento é como a água-viva,

atirada na areia,

misteriosa e sedutora.

Quem ousaria romper

o seu invólucro transparente

e suportar a ardente ferida

por puro descaso?

Não! Deixa-o dormir,

longe da praia,

numa profundidade de algas,

num emaranhado de algas,

numa discreta espessura e consistência de algas...

Deixa-o dormir!

Agora sou apenas memória!

 

 

 

NOSTALGIA

 

Saudade dos verdes campos,

das pastagens,

daquela vida pré-vegetal,

(aquela vida pré-)

atrasado no tempo,

escondido

no mimetismo universal...

 

 

 

NÁUTICA

 

I – A Espera

 

À beira do cais deserto,

o barco ancorado sonha com procelas,

e eu, que cheguei há pouco,

vindo de dentro de um sonho impossível,

que sonho eu?

Dize-me, barco, o teu segredo

parado nesta ponta de espera,

nesta beira de cais!

É sempre a mesma a distância

que vai da praia à linha do horizonte?

... e eu, que venho de ruas estreitas,

sempre me perco.

Vários murmúrios marinhos me acompanham

barcos invisíveis vêm à tona

cheios de peixes voadores...

 

 

II – A Partida

 

O que farei dos sonhos perdidos,

fugidos, desmastreados,

vogando, à deriva,

sobre um mar qualquer?

Farei velas enfunadas

para uma ilusão mal curada,

alguma navegação tardia,

e sairei em busca de portos inseguros,

açoitados de vento,

povoados pela alma de antigos descobridores,

velhos piratas sem bússola e sem tesouro...

 

 

III – O Reencontro

 

As ondas, quebrando na praia,

desfazem o sulco

(porventura deixado)

pelos barcos que se foram

e que poderia servir de pista

para irmos em seu encalço.

Quebrando assim ao acaso,

quase displicentemente,

as ondas desfazem este pequeno equívoco,

apagam a última possibilidade.

É que o mar não tem caminhos, meu amor,

e os mares para onde hoje partimos

ainda são nunca d'antes navegados,

para nós,

pouco versados na posição das estrelas,

pouco afeitos ao solstício,

aos eclipses e ao plenilúnio.

Pouco importa!

Velejarei num mar de versos,

onde me reconheço,

onde o campo é minado

e cada palavra sabe a sua cicatriz.

 

 

 

SIERRA MADRE

 

Grandes asas depenadas,

atrás daquela serra...

Grandes nuvens cinzentas,

impacientes de chuva,

por cima da alegria invernal...

Pedaços verdes de serra...

Pedras esparsas no verde...

As pedras são íngremes na subida...

A sombra das nuvens passeia na serra

e eu não queria mais nada dizer

que não fosse aquilo dito

esparso de sombra

das nuvens passeando na serra...

Não mais!

Algum tempo eu já fui vegetal, distonal,

algum tempo, eu queria te ver...

... E onde a fonte rumoreja

sua canção perdida...

...E a fonte a cantar

sua canção longínqua,

subterrânea,

do lado de dentro...

- Agreste camponesa,

(bucólica, no mais),

tu me levas uma vantagem imensa

nestas curvas retorcidas,

pedras polidas beirando o luar.

Sem demora, não é certo

que eu te alcance jamais

nestes caminhos!

Ainda bem que aquela canção

não se desgastou,

nada se desgastou,

tudo continua...

Os pirilampos verdes como d’antes,

sem saber nada de bioquímica

ou de fosforescência...

Só esta olhessência,

esta essência mesmo

no olho de olhar tudo

e tudo ver-de ou quase...

Reencontrar meu cheiro de estrume molhado,

meu cheiro de mato novo...

A chuva lava nossos  detritos inocentes, persistentes...

A chuva tem esperanças de voltar a ser,

de voltar a ser nuvem

impaciente de chuva,

por cima da alegria invernal...

Então, ninguém sabe como,

de repente nós voltamos,

brolhamos timidamente

e amadurecemos para sempre

nesta safra multicor!

 

 

 

ESCALADA

 

Vou ao cimo da montanha

me abastecer de vento e pedregulhos,

sol poente, luminescente,

(tergiverso) reverso,

terra e verso,

contar estrelas que já não choram

(ora, direis!) e nem conversam

deixar quimeras que desabrocham,

ao relento,

para que tenham um passado feliz,

à fina flor dos tempos!

 

 

 

TAUTOLOGIA

 

enquanto vivermos,

estaremos vivos

a vida toda!

é preciso fazer do instante cruel,

presente ou passado,

uma defesa contra o impossível,

sinal de que o impossível existe

e nos acontecerá,

mais dia menos dia.

vamos lá pra ver!

você chora porque não ri

ou ri porque não chora?

ou ambos?

ou isto não interessa

e o que interessa está perto demais?

hoje é quinta-feira

e ainda não sei o bicho que deu,

mas sei o bode que deu!

 

 

 

SENTIMENTO

(Bic Poem)

 

gosto de me sentir vivo,

de ver a vida se depositando,

como a tinta da caneta,

no traço indeciso do poema,

misterioso como as palavras,

que eu não sei de onde vieram

 

 

 

SINOPSE

 

Leitura de mim para mim

do que eu não disse,

mas percebo,

porque eu não me engano,

me vejo,

me vejo de soslaio,

sou da minha própria laia.

Recapitulando,

sem dar tempo ao tempo,

sem deixar o dito pelo não dito...

Nós somos trágicos antes da tragédia

e cômicos depois da comédia.

Tomamos o antídoto antes do veneno,

engolimos o dinheiro junto com a cachaça

ou saímos sem pagar a conta.

Somos extemporâneos,

desatentos ao tempo,

ao lusco-fusco,

ao fluxo e refluxo,

ao descompasso das marés.

O mal do século não nos atinge

e nos tornamos perigosamente óbvios.

Tente pensar o óbvio, o ínvio,

o que há de vir,

seja o que for o que há de vir.

Coma o pão,

o pão ázimo do banquete de cada dia,

pão ácido, pão duro, dormido,

de um dia pro outro,

quebrando os dentes

e não temos palitos!

Quem nos dará palitos como antigamente?

Dá Deus dentes a quem não tem nozes.

Ou é o contrário?

Faz alguma diferença?

Três vezes antes nozes fora nada,

nada,

assim está melhor!

Vão-se os dedos e fiquem os anéis.

Para que queremos dedos

se não temos palitos?

Já das nozes nem é bom falar!

Não falemos de nós,

da nossa falância e da nossa falência!

 

 

 

PASTORAL

 

O bicho-homem,

quando era bicho-do-mato,

era de vento e folhas,

balançar de galhos,

estalidos secos

de cobras e lagartos

se mexendo na folhagem,

murmúrios de água,

cri-cri de grilos,

pios e trinados.

Ia de vento em folha

o bicho-homem,

quando era bicho-do-mato.

Quantos grilos conta, hoje,

o bicho-homem,

quantas cobras e lagartos!

Há muitos sons e ruídos

ecoando, em silêncio,

no espaço das lembranças

do bicho-homem.

 

 

 

CARROSSEL

 

A vontade de cair de um edifício

é apenas uma lembrança antiga,

uma lembrança do tempo das valsas...

O corpo gira e rodopia

e se afasta da mente,

tão leve como uma pena,

mais gracioso que uma falena...

A vontade de cair de um edifício

é apenas uma pirueta,

uma diabrura a mais

nas travessuras do tempo,

uma mudança de ritmo,

dentro da mesma cadência...

A vontade de cair de um edifício

é apenas onipotência...

 

 

 

PONTUAÇÃO

 

estava escuro

onde eu estava,

dentro do livro,

na página 89.

e estava escrito

que eu devia apenas

virar a página,

porque, do outro lado, haveria

uma pista (pelo menos falsa)

para eu sair de dentro do livro,

de dentro da página...

e eu, que tenho (ou tinha)

o tempo dentro de mim

(um tempo que já nem é tempo,

um tempo de pele e osso)

eu quis saber o que havia e me perdi,

ao passar da página...

perdi meu item, meu ponto,

meu ponto e vírgula,

perdi meu til, meu cedilha,

meu traço de união,

minhas reticências e aspas,

meus parênteses

e meu ponto de exclamação.

você sabe a minha página?

você sabe a minha alínea?

então fico mesmo sem linha,

perco as estribeiras,

fico fora desta história,

desta rima rasteira,

sem eira nem beira.

mas, não se preocupe,

eu vou passar tudo a limpo,

sem emenda e sem rasura,

em homenagem ao seu novo cheiro,

este cheiro de papel novo,

o seu cheiro desconhecido...

 

 

 

PESADELO

 

Eu tenho muito,

muito medo,

muito medo de você!

Você é o meu fantasma predileto,

o meu espectro familiar,

que me apavora no sono

e de quem rio ao despertar.

Eu vivo por você num sonho antigo,

um sonho de antanho,

maluco, extemporâneo,

um sonho que já nem é sonho,

pois é quase de manhã.

Da noite alta que se desfez,

surgem palavras bêbadas,

tontas de sono,

ecoando pela casa,

junto aos passos do sonâmbulo.

Surgem de abismos profundos,

mas os abismos do sono

têm a altura da cama

(felizmente!)

E, lentamente, se recompõem

velhas estórias mal contadas,

“buenas dichas”, vagos presságios,

frágeis linhas mal traçadas

da minha mão e da tua

entrelaçadas e entrelaçadas...

 

 

 

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