do rito teatral à
performance...
(Manuel Almeida e Sousa)
... da performance
ao teatro como rito
tudo é possível.
o percurso
que nos leva à arte performativa é necessariamente diferenciado. tal
como diferenciado será o ponto de partida de cada um: questões
ideológicas, estéticas, contra-culturais... linguagens plásticas,
teatrais, musicais, do âmbito da dança...
na viragem
do século XIX XX, muitos foram os profetas de uma nova linguagem
teatral e para-teatral: artaud, jarry, pierre albert-birot,
lautréamont, ivan goll, satie e tantos outros. profetas de uma outra
estética, que escandalizaram os seus contemporâneos. a sua
recuperação tardia marca uma geração faminta de liberdade: a geração
de 60.
"O teatro Nunique deve ser um
grande todo simultâneo, contendo todos os meios e todas as emoções
capazes de comunicar aos espectadores uma vida intensa e
embriagadora..."
Pierre
Albert-Birot
a ideia de
um espaço teatral novo, a ânsia de experimentar o novo, participar
do novo, leva toda uma geração a uma nova aventura, à contestação, à
afirmação ideológica porém à margem das ideologias instituídas.
abre-se um
espaço à utopia são os movimentos beat, hippy e outros "underground"
no outro lado do atlântico, a crise (revolta) de 68 em paris, do
lado de cá...
o novo
teatro passa pelo living theater, pelos bread and puppet, pelo la
mamma, pelas experiências de andy warhol na sua "fábrica"...
"o teatro
é para ser vivido, não para ser representado". o "teatro e o seu
duplo" é lido, relido, dele se compilam citações e mais citações com
o objectivo único de as vir a escrever nas paredes de qualquer
edifício – se possível nas paredes das salas onde actuam as
companhias mais conservadoras.
o gesto da
mão, o pincel e a tinta marcam os signos da revolta e do
inconformismo.
"O cenário és tu
o actor és tu
tudo é real
o público não existe
(Jarry
Rubin)
a nova
linguagem impõe-se.
uma nova
filosofia, uma alternativa ao ritual dramático. o actor "não
representa, age" – ainda artaud,
e o actor
dá, pois, lugar ao performer e à nova acção. aderem artistas dos
mais diversificados media abertos a outras experiências, a uma outra
"vanguarda". destacam-se: john cage, richard foreman, meredith monk,
brian eno, allan kaprow, joseph beuys...
surge,
quase em simultâneo, um novo movimento – mais radical, mais
subterrâneo. uma nova tribo destilada nos subúrbios com rock duro,
com álcool, com drogas e, com muita revolta – destacam-se, aqui, os
sex pistols, verdadeiros performers do rock. é o movimento punk que
marca agora o ritmo.
o
happening fora já posto em causa em 68 – "o último reduto da arte
burguesa" como diriam os internacional situacionistas. e o teatro,
mesmo o considerado mais radical, é agora acusado de colocar a
revolta entre quatro paredes:...
"O Living Theater, avançadissimo
grupo teatral de guerrilha, chegou a Berkeley quando lutávamos na
rua contra a Guarda Nacional. Como pacifistas, opuseram-se às nossas
acções. O Living Theatre eliminou o cenário e misturou-se com o
público. Teatro revolucionário...
... Acabou
o espectáculo, todos saíram para levar a revolução para a rua. A
companhia deteve-se à porta do teatro.
Revolução
na sala é uma contradição. Dá náuseas ver a nossa energia
revolucionária desperdiçada num espectáculo limitado por quatro
paredes..."
Jerry Rubin
Do Rito
é o
equilíbrio-desequilibrio (constante) que provoca o rompimento da
linguagem através dos movimentos do poeta actuante
a acção
performântica é regida por movimentos secretos e processos
invisíveis, compostos pela precariedade do instante e imbuídos de
certo automatismo que não resvala, no entanto, para lá da razão. o
seu aspecto mágico tem em conta que o movimento do corpo é poderoso
e suficiente para evocar algo que está para além dos níveis do
consciente. os sentidos são, também eles, evocados com propósitos
que os transcendem. é, portanto, um trabalho em processo que rompe,
na necessidade de diálogo entre linguagens estéticas – um novo
território, o território do nada.
o delírio
e a performance são, podemos dize-lo, fenómenos estritamente
relacionados – tudo reside no acto poético. isto será também verdade
para a acção dramática, enquanto projecto que questiona a sua
funcionalidade como elemento do rito. daí que possamos afirmar que a
arte não tem qualquer relação com o bom senso ou com o senso comum,
a arte não tem nenhuma relação com o sentido. tudo depende do olhar
exterior e da acção produzida pelo poeta actuante. significantes
manifestos de uma actividade oculta e inconsciente; o desejo do
poeta. artaud dirá:
– "E
doravante vou consagrar-me
exclusivamente
ao teatro
tal como o
concebo,
um teatro
de sangue,
um teatro
que em cada representação faça ganhar
corporalmente
qualquer
coisa
tanto
àquele que representa
como
àquele
que vem
ver representar.
aliás
não se
representa
age-se"
o
performer – e também o operador estético da acção dramática – sabe
como a estrutura da acção é regida, da importância do gesto. o
movimento pode ser levado ao limite, pelo que quase não há gesto (no
sentido da expressividade), mas muitas atitudes que dele se
distinguem. o aspecto mágico da performance está aí e tem em conta
esta velha sabedoria: evocar algo que está sempre além dos níveis da
consciência. os sentidos são evocados com objectivos que muitas
vezes os transcendem. e a acção do poeta – do iniciado – reside
nessa transcendência.
a relação
entre magia e acto performativo (para explicar os fenómenos da
essência e da aparência) vai mais além. para isso será preciso que
se libertem os desejos do iniciado actuante, que penetre na "zona
sombria" da consciência. quando isso acontece, quando o desejo se
transforma em momento, em ritmo, é que o performer e a performance
se tornam vivos. e o poder transcendente do simbólico se expressa
"rente à terra".
é desta
forma que o poeta/mago se propõe à pesquisa, a um trabalho em
processo e progresso, dando assim à sua acção uma dinâmica estética
de ruptura.
para cada
um, um percurso estético próprio. cada acto, cada acção, será a
construção de um paradigma que se quer único e de domínio por parte
dos seus operadores/actuantes. atinge-se assim o objecto- arte novo
e diferente, ainda que os percursos nos levem a outras coisas. o
novo é misterioso e o seu maior mistério é o real e o quotidiano.
qualquer que seja a proposta, a acção reflecte os mistérios da arte.
uma arte ancestral (antes do homem obter a noção de arte tomou
conhecimento de si próprio). arte como forma de auto consciência,
entre o respirar e a noção do eu.
o acto é
vivo, perde-se no labirinto das decifrações de signos. no entanto o
significante mantém-se presente. e o actuante parece perder-se no
acto e o acto parece perder sentido – caminhamos sobre uma linguagem
do corpo sem precedentes
posturas – gestos – posições
um
regresso ao ritual primitivo onde o poeta/mago é o que desenha
movimentos (muitas vezes desmontagem de danças sagradas e de rituais
primitivos). ele recupera as velhas crenças ligadas à terra-mãe ou
ao sol-fálico e o consequente jogo de opostos: o
equilíbrio-desiquilíbrio constante que provoca o rompimento da
linguagem através dos movimentos do mago. uma transgressão?!... mas
não, necessariamente, subversão. transgressão, porque rompe com
comportamentos, regras e atitudes próprias da cultura alimentada
pelo (nosso) quotidiano. porque rompe com a ideia da actuação/representação
e em sua substituição é ofertado um ritual: o poeta-iniciado (um
corpo) que se oferece ao olhar do espectador. e ainda que este acto
ritualista ultrapasse a ideia pré-estabelecida de espectáculo, ele
é, de facto, uma arte do espectáculo, mas também podemos afirmar que
é pertença da arte mágica.
a acção do
poeta-mago, pela sua riqueza simbólica, transforma-se naturalmente
em acto mágico. e com alguma facilidade, poderá servir de base a um
grande cerimonial – sendo que este simbolismo oculto é, sem dúvida,
um elemento naturalmente constitutivo da magia e o mistério da
profundidade do rito é impenetrável aos não iniciados. todavia,
apesar da exibição e comportamento cénico, pode vir a ser objecto de
experimentação por parte de qualquer um. mas para se alcançar este
estado será necessário anular a representação e adoptar-se, em sua
substituição a interpretação, como preconizavam os poetas dadaístas.
recorrendo
a uma signagem de dimensão literal (símbolos e mitos), a cena
persegue a imagem/texto sintética, emocional, conotativa, próxima do
conceito do gestus brechtiano ou do signo/dança – mãe do teatro –
imaginado por artaud. Então, polaridades, oposições, contrários...
são um só corpo. a arte constrói-se a partir das contradições e,
logicamente, na diluição da fronteira situada entre os extremos.
voltando a artaud; diluição das fronteiras, não dos opostos, porque
a unidade é fundamental (taoísmo). São estas forças "contraditórias"
que agem no interior do cerimonial – explodem em movimento, em
ritmo... um desenho de uma paisagem interior que escorre pelo
corpo/imagem do artista. assiste-se pois a uma espécie de arte-acto
litúrgico e secreto – o artista desempenha a sua função concreta.
ele explora as faces do ambíguo e a despolarização é o centro do
acto – ele é
sacerdote --- mago --- iniciado
o que
actua com movimentos precisos, que empresta ao acto a imagem do seu
corpo. tal imagem, poderá e deverá provocar a tal dimensão mágica e
poética. o artista emerge (se assim se poderá dizer) num NIRVANA
através de acções intimistas e repetitivas. e esse acto repetitivo,
por vezes levado à exaustão, exalta ainda mais o sentido ritualista
perdido no acto dramático (no teatro, entenda-se). a performance
recupera, pois, a dicotomia entre opostos, propõe uma espécie de
jogo de espelhos onde a desconstrução está sempre presente,
preservando assim um certo estado de ordem: anarquia/caos.
é esse
estado de ordem que cria a comunhão entre artista e espectador. o
artista transmitirá a sua ideia/imagem
corpo ----- movimento ----- tempo
em
contrapartida, o espectador será o receptor da acção
imagem ---- arte ---- vida
somos
remetidos para cerimónias primitivas. o mago tribal é também, tal
como o artista, um operador de signos que oferece "espectáculos" que
permitem a abertura de "portas" por onde o espectador poderá
contemplar um outro horizonte.
Do Corpo
o corpo
não é uma questão, não se coloca entre o acto que o envolve como
tema (corpo do artista), ou uma acção onde o actuante se oferece
corporalmente. tudo passa por actos livres e uma morfologia
extraordinariamente difícil de identificar esteticamente. o corpo,
aqui, afirma que a linguagem verbal é incapaz de transmitir a
vertigem do seu movimento – o peso da palavra paralisa-o, trava o
vigor do gesto. o poeta actuante lança-se na vertigem e rompe com o
espaço morto imposto pela palavra – rompe com a oralidade. o gesto
foge à razão da palavra, cumpre o desejo de pesquisar e
experimentar uma outra linguagem que está para além da articulação
de um texto limitador – autoritário. o que se procura é a expansão
física e corpórea, onde a palavra dá lugar a uma ideia-imagem que se
desloca ao ritmo do corpo.
a arte ao
envolver o corpo, tem como tema a relação deste com o acto – a
atmosfera criada por esta busca de novas linguagens através do corpo
aproxima-se do transe xamânico. o poeta-mago, envolto de outras
imagens que se projectem de forma repetitiva poderá (deverá)
atravessar territórios plásticos, espaços inimagináveis num contacto
directo com o desconhecido – uma outra linguagem mais elástica e
que, em delírio, jorra do seu corpo (quando atingido o êxtase do
movimento).
o verbo é
o entrave, é aquilo que impede o movimento livre. então o actuante
prepara o ritual de ruptura com a palavra, tal como o artista
expressionista abstracto se prepara para a sua acção, antes de
intervir sobre a sua obra com uma gestualidade enérgica, em nada
semelhante à actividade pictórica, relativamente tranquila, que
caracteriza os pintores de cavalete.
a arte
corporal do poeta é uma forma emergente, o que poderá justificar a
ausência de elementos que marquem um estilo. esta acção, cujo
suporte é o corpo, contém em si o rufar de tambores e pés e músculos
– uma base. o chão. a terra. e os corpos como sombras, agitam-se em
transe. o corpo e a terra... pluralidade numa relação de
causa-efeito numa explosão de símbolos e signos. um entendimento
único, absoluto, verdadeiro, dirigido ao espectáculo construído por
"magos" e "bruxos" recuperadores (em processo) de rituais perdidos –
um poema intenso, xamânico.
nesta
acção focalizada no corpo do artista, devemos abarcar outras
morfologias contemporâneas como o vídeo arte, a mail art, a foto
performance... porque, ainda que essas acções possam vir a não
contar com o corpo do artista (de forma explícita, claro), elas são
uma referência ao acto e à acção do actuante.
partimos,
pois, do princípio de que o trabalho artístico é o que é. não é
pintura, teatro, metáfora ou qualquer outra coisa – é uma imagem num
universo onde tudo são imagens. então, o corpo em movimento vibra,
liberta o vapor que exala já o transe. o espectáculo, este
espectáculo, ganha forma numa terra selvagem e os poetas-magos
atraem a si as forças telúricas, no bater dos pés nus.
privilegia-se nesta acção a "encenação" – texto-imagem – em
detrimento duma dramaturgia assente no texto literário. é pois o
retirar e renunciar de e a um teatro dominado e violado pelo texto –
há aqui um mergulhar na mais profunda alquimia da palavra (ou no seu
total esquecimento) e a preservação dos mais sagrados princípios do
rito teatral. aquele rito que veicula uma energia actuante no "objecto"
– o espectador. de realçar e explorar, portanto, os valores vocais –
o aparelho "fonador" representa a alma do espectáculo, a
individualidade no seu percurso glorioso através dos figurantes
demoníacos. e o ruído é o pano de fundo, o elemento não articulado,
fatal e determinante para que resulte uma acção poética, onde o
antagonismo entre a voz e o mundo – num compasso cuja sequência é
bem sentida no som que sublinha este todo como ambiente estético – é
um facto. por esta via se alcança o desejável contágio do público, o
qual sairá, por certo, mais "responsável e contagiante" do que
entrou.
no
processo exposto o texto/imagem (story board) é composto a partir de
vivências, experiências e aproveitamento de textos (não
necessariamente teatrais), sinais e outros motivos que possam
formar uma textualização viva e dinâmica. o que poderá dar origem,
enquanto linguagem, a uma série de situações – de risco, de
repetição, de estranheza – que muitas vezes pode subverter a própria
ideia de apresentação. esse "estado" caótico, logo anárquico, é
desejável, sobretudo ao longo do esboço da arquitectura-encenação,
verdadeiro acto de pesquisa e construção do espectáculo.
ao
substituir a narrativa clássica – casual, diacrónica – provoca-se a
deslocação de uma organização temporal para uma organização
espacial. a sincronia provoca um sentido de atemporalidade que
remete para uma obra aberta, universal, logo não temporal.
ainda que
a relação – ou equivalência – seja clara entre linguagem e
pensamento, nem sempre será cumprido o acerto de que toda a
predisposição para o pensamento corresponde a uma forma determinada
de falar. tudo passa pela atitude do usuário linguístico (intenção,
ironia, etc.) e, pela capacidade de (ele) utilizar uma linguagem
capaz de transmitir o dito, é dizer; o que alguns chamam de função
poética da linguagem. somos, pois, levados pela sedução da palavra –
o falante é responsável pelo que diz e em distinguir as relações
entre o que se diz – dito – e o que procura dizer de forma a
penetrar no jogo; – o que se fala, o que deve entender quem escuta.
portanto,
uma poética acção – a poesia será aquilo que está em movimento e
tudo o mais será "prosa". e o desejo é um estar em movimento, não
parar, actuar... o exposto é tanto retórica quanto conceptual. a
acção vai avançando de acordo com suas próprias fissuras, produto de
múltiplos confrontos, directos e indirectos que, no terreno
experimental, são realmente vividos. as chaves deste acontecer
poético: o móvel e o estático.
Do Caos
na nossa
mente, por vezes, convivem ideias que poderão aparentar
contradição... se te movimentas no terreno das sensações, das
recordações, do teu imaginário... é lógico que venhas a aperceber-te
da coexistência de elementos que te são familiares, com muitos
outros – bem estranhos. transportar essas sensações para a "acção
poética" será o objectivo. a marca particular da nossa "linguagem".
mais do que a técnica, o risco e o improviso.
o caos
está presente e... o acaso não existe, qualquer coisa que ocorra,
por mais insignificante que seja, poderá ter consequências
imprevisíveis... tudo se resume a uma cadeia de acções e efeitos
que, ainda que nos escapem, estão interligados – a "evolução",
todavia, faz-nos parecer que existe um destino pré – estabelecido.
um
monólogo onde latem as esperanças e os sonhos de tempos perdidos. os
instintos provocam a demanda, o tecer de uma história fantástica
onde o limite está especificamente situado no indivíduo que a
protagoniza.
e cada
imagem concebida pelo mago/actuante está carregada de símbolos e
signos. cada imagem é pois um sigilo – pessoal. e sendo as imagens
sigilos bem personalizados, cada operador desenvolve o seu acto
segundo o seu desejo, a sua estética...
mas o
facto de uma acção carregar consigo símbolos e signos (alfabetos de
desejo) ela não é, de todo e obrigatoriamente, simbólica, antes
será um veículo de manifestações de "zonas de poder", uma expressão
pictórica dos domínios do caos.
o actuante
deste rito é um mago, um iniciado capaz de manipular e decifrar um
alfabeto que reflecte a estrutura da "árvore da vida". sendo que os
símbolos e signos utilizados no acto, demonstram o grau de
consciência daquele que concebeu a acção.
cada
apontamento do acto é, portanto, uma manifestação na esfera da
consciência, de algo que não pode ser expresso racionalmente. assim,
cada acto, cada acção será um portal aberto a espaços de reflexão,
construção e experimentação. e esses portais já existiam muito antes
de qualquer actuação. de qualquer representação gráfica que deles
exista.
caos é o
princípio da criação (contínua), o vazio no sentido potencial. caos
é a "soma de todas as ordens" – nesta alquimia se fermenta uma
teoria estética. uma estética em sintonia com o "terrorismo" e
dirigida à destruição de "fantasmas", não de pessoas – um "teatro da
crueldade", como diria artaud. estamos perante uma estética de
libertação, não uma estética de poder. daí o "terrorismo poético" à
boa maneira de hakim bey. trata-se, pois, de uma acção
diametralmente oposta ao sado-masoquismo de certas "artes da
desgraça" preenchidas por auto mutilações, tão em voga no panorama
das artes da dita vanguarda!!!
"só o prazer é divino" – dizia
Breton
resumindo;
a acção poética em processo e em progresso é aquela que contempla
relatos e, num primeiro olhar, transmite uma sensação semelhante à
que produz uma mesa posta com conhecimento e gosto... enfim, que só
pode proceder de uma natural relação entre a pessoa que a pôs e os
seus actos. nessa mesa que contemplamos, repleta de iguarias, há
muito mais que correcção, coerência e beleza. é fácil perceber que a
disposição é dinâmica e que a vitalidade da imagem está ligada a
poderosa expressão poética, na sua penetrante capacidade de sugerir
outras leituras. leituras que, com a maior naturalidade, se expandem
enquanto o observador se introduz no "quadro" e descobre que há
espaço, mais que suficiente, para a imaginação. a sensatez é, neste
caso, uma obra-mãe de depuração estilística.
a acção
não se constitui num sistema fechado. são muitas e nem sempre
complementares, as vidas desta vida.
teatro
"o teatro deve ser
uma espécie de dança onde os ritmos do movimento correspondam ao
ritmo poético. nada é mais grotesco que ver como, no ocidente, uns
simples versos são recitados com ritmos de gestos e de movimentos
"realistas" ou colados à vida quotidiana". assim se pronunciava o
poeta hindu rabindranath tagore sobre um teatro europeu, um teatro
que impõe uma subordinação total do actor ao autor do texto.
uma vez que no
teatro oriental está implícita uma celebração (ritual) impregnado de
vapores de incenso – uma oferenda aos deuses, um abandono do ser e
uma procura mística ao som de música propícia ao cerimonial que se
desenvolve no espaço, há um abismo entre as duas formas de actuação
(oriente/ocidente).
ao assistirmos a uma
actuação com actores orientais encontramo-nos perante uma acção/cerimonial
que tem início com os actores frente ao espelho, completando-se o
rito no espaço cénico onde todos – actores e espectadores – estão
unidos por um "acto de fé"... este cerimonial facilita e propicia a
evocação dos planos estéticos/espirituais. o espectador embriaga-se
e ambos – espectador e actor – libertam o elemento desejo, de forma
a alcançar a experiência visual total. imprimem-se signos e símbolos
que fazem parte de um código apenas compreendido por parte dos
iniciados.
na busca de
sentimentos estranhos ao quotidiano, o actor da acção em processo e
progresso (tal como os actores orientais) explora as capacidades do
seu aparelho fonador – o grito, as mutações vocais, a criação de um
alfabeto sonoro suportado por todo um corpo que se movimenta em
êxtase pelo espaço. esta linguagem do corpo (total) é pertença de um
espaço para além da linguagem estereotipada do teatro dito
psicológico.
a proposta formulada
por artaud – referenciada num dos capítulos de "o teatro e seu
duplo" – é a de que o actor seja um atleta afectivo – a cada
sentimento deste, corresponderá um sopro, uma respiração. como na
cabala; o tempo corresponde a um sopro e um sopro suscita – mediante
as forças a que preside – um momento de vida. assim, o actor que não
experimenta o sentimento desejado pode penetrar nesse sentimento
através do sopro. uma atitude orgânica ao nível de actos físicos.
há, pois, que
conhecer profundamente o corpo e não se conformar com a imitação de
actos exteriores – trabalhar o corpo a partir do interior.
é pelo sopro que
penetramos no desejo. pelo sopro damos-lhe vida.
estamos a falar,
evidentemente, de um objecto estético (teatro) cujo peso agudiza,
por contraste, a etérea e impalpável presença de uma quase loucura –
aquela loucura que nos toma enquanto actuantes espontâneos e
criativos. não como actores manipulados por qualquer encenador ou
condicionados por compromissos ideológicos, políticos.
"Se o que queres é
fazer um teatro que defenda determinadas ideias, políticas ou não,
não te seguirei por esse caminho. No teatro só me interessa o
essencialmente teatral. Servir-se do teatro para lançar qualquer
ideia revolucionária, excepto o que concerne ao espírito, parece-me
do mais servil e mais repugnante oportunismo"
Carta de A. Artaud a
Roger Vitrac
o objecto estético
de que se fala é mesmo o teatro. teatro onde cada actor é construtor
livre de imagens e a sequência dessas imagens se torna naturalmente
teatro.
é sobre essas
imagens que o texto é construído. que pulsa ao ritmo da dança dos
corpos.
(2003)