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LIÇÃO DE HISTÓRIA
(Renato Suttana)
No ano de 2014 recebi um
telefonema do representante comercial da revista de
esquerda Caros Amigos,
que me perguntou sobre os motivos pelos quais eu
decidira não renovar minha assinatura para aquele
período. Tendo sido assinante da publicação nos anos
precedentes, eu tinha tomado a decisão de não mais
adquiri-la, não tanto porque discordasse de sua linha
editorial ou de seu conteúdo informativo, mas porque as
posições da revista, quanto ao desenrolar dos
acontecimentos políticos dos dois últimos anos, me
pareciam equivocadas ou pouco esclarecedoras do que
realmente acontecia, para não dizer que eram bastante
contrárias àquilo que eu mesmo pensava. Assim foi que eu
disse ao representante (de cujo nome não me recordo) que
não queria mais assinar a revista e que a principal
razão estava no fato de que em março ou abril 2013,
quando se iniciaram em São Paulo as manifestações de rua
encabeçadas pelo Movimento Passe Livre, a revista — que
já fazia críticas oportunas e até legítimas aos governos
Lula e Dilma — publicara, como reportagem de capa, um
longo artigo em que as manifestações eram interpretadas
como uma espécie de levante popular, no qual uma parte
da sociedade oprimida se erguia, pela primeira vez em
anos, contra um governo de esquerda que, ao longo de
mais de uma década, fizera tantas concessões aos
interesses do capital financeiro que já não era mais
possível, naquela altura, considerá-lo como um governo
representativo dos reais interesses da classe
trabalhadora e dos setores desfavorecidos da sociedade.
Essa linha de interpretação era abraçada também por
outros setores da esquerda, que viam nas manifestações
iniciadas (e logo abandonadas) pelo MPL (e depois
sequestradas por grupos reacionários de classe média —
conforme se viu ao longo do segundo semestre daquele ano
e, particularmente, em março do ano seguinte, com as
passeatas verde-amarelas da Avenida Paulista —, que as
converteram em manifestações contra o governo
trabalhista) a possibilidade de devolver às ruas o poder
de decisão e transformação política perdido. Tal poder
(era o argumento) adormecera ao longo da última década,
porquanto o relativo sucesso das políticas capitaneadas
pelo Partido dos Trabalhadores para recolocar a economia
brasileira nos trilhos conduzira a um processo de
acomodação e silenciamento da esquerda e suas
reivindicações de que só agora os progressistas
despertavam.
No entanto eu discordava em parte
dessa interpretação, porque já no segundo semestre de
2013 ela se mostrara inadequada, tornando-se claro que
as manifestações tinham ganhado não apenas um teor
reacionário, como também uma tonalidade declaradamente
golpista. Foi o que eu disse ao representante da revista
Caros Amigos
naquele dia, acrescentando que a reportagem apenas
levava água ao moinho dos que já se empenhavam (dentro e
fora do governo) em solapar a administração da
presidenta Dilma Rousseff, a qual nessa altura sofria um
forte ataque dos setores direitistas, conforme se
verificou e se agravou depois, com a vitória apertada na
votação de 2014 e com o subsequente acirramento da
investida conservadora. Concomitantemente, logo no
início do segundo mandato da presidenta se deu curso às
tentativas abertas de derrubada de seu governo, sob mil
alegações que não vem ao caso arrolar. Tais tentativas
culminaram na atual crise política por que passa o país,
simbolizada emblematicamente na aprovação pela Câmara
dos Deputados, no dia 17 de abril, da abertura do
processo de
impeachment da principal mandatária da Nação.
Naquela altura, portanto (em 2014), já era possível
perceber que o movimento em prol de um golpe de estado
de caráter jurídico-midiático ganhara fôlego e fora
encampado também por grupos situados dentro da chamada
base aliada do governo, dos quais os maiores
representantes eram as figuras do atual presidente da
Câmara, Eduardo Cunha, e — como principal interessado —
do vice-presidente da República, Michel Temer (cuja
movimentação errática ao longo dos últimos doze meses
permitia tudo supor, mas que até aquele momento não
havia feito, como o faria depois e, principalmente, como
o fez nas últimas semanas, nenhum gesto mais decisivo no
sentido de confirmar sua ruptura com o governo e
declarar sua intenção de dar um golpe de estado).
Num dos capítulos finais de seu
livro A tolice da
inteligência brasileira, o sociólogo brasileiro
Jessé Souza se espanta com o fato de que as
manifestações de rua de 2013, iniciadas como
reivindicações legítimas de seguimentos frágeis da
cadeia produtiva e motivadas por uma causa definida — um
protesto contra o aumento no preço das tarifas de
transporte coletivo na cidade de São Paulo —, tenham
sido abarcadas pelo baronato da mídia e convertidas,
quase imediatamente, em manifestações de cunho
reacionário, com vistas a desestabilizar e derrubar o
governo trabalhista. Isso — essa mudança de orientação e
de sentido —, que se refletiu inclusive em declarações
contraditórias de jornalistas conservadores, alinhados
com os chefes da imprensa (os quais no início se
posicionaram contra as manifestações, uma vez que tinham
origem indesejada, mas logo em seguida, como num passe
de mágica, passaram a exaltá-las e estimulá-las), dava o
que pensar e deverá oferecer assunto aos analistas do
futuro, caso se interessem em entender os eventos
políticos do Brasil de 2016. No presente, porém, há que
reconhecer que a mudança de curso — esse verdadeiro
“golpe” da história contra as tentativas de compreensão
empreendidas por seus agentes imediatos —, confundindo a
esquerda até o ponto da desorientação, tinha um sentido
e um lugar muito claros no processo da crise,
principalmente naquele de uma conspiração golpista em
curso, cabendo opor-se a ela (à conspiração) e
questioná-la em suas bases, conforme alguns jornalistas
e blogueiros fizeram quase de imediato, ainda sob a
confusa luz de acontecimentos recentes (haja vista os
escritos de Fernando Brito, Paulo Henrique Amorim, Paulo
Moreira Leite e outros que já naqueles dias denunciavam
a aventura golpista*). Opor-se ao golpe e confrontá-lo
era situar-se em relação à linha principal de
encadeamentos do que acontecia e do que viria a
acontecer, confirmada por algumas surpresas e espantos
maiores que se sucederam, tais como a controvertida
carta de ruptura enviada pelo vice-presidente à
presidenta e as cenas da noite de 17 de abril, em que,
sob argumentos estapafúrdios (tais como dedicar o voto
ao aniversário da cidade, ao neto ainda não nascido, à
esposa e à família), 367 congressistas disseram sim
ao processo de impedimento da governante, com resultados
que se afiguram imprevisíveis e certamente nefastos para
a vida política e jurídica do Brasil nos próximos anos.
Tudo isso deveria
servir de lição para nós que tentamos interpretar os
eventos de grande complexidade da história na sua
imediatez, mas, sobretudo, deve servir de alerta para
aqueles que os interpretam com base em interesses
estratégicos e conjunturais, de caráter imediatista. O
embate entre forças políticas pode ser imprevisível.
Em seu escrito Questão
de método, Sartre considera que a
imprevisibilidade é um componente essencial da ação
humana, com o qual precisamos conviver. Mas não há um
modo de ao menos controlar o curso dos acontecimentos,
com vistas a evitar desastres maiores? Certamente há,
mas é preciso boa vontade e disposição para cumprir
acordos e respeitar os pactos — e não há pacto mais
fundamental, nas democracias contemporâneas, do que
aquele firmado pelo voto popular. Se, para a esquerda,
a opacidade dos eventos produz consequências que se
desenrolam numa direção inesperada, para a direita —
mormente aquela empenhada numa aventura ilegítima, à
margem do pacto — as coisas não serão menos aflitivas.
Um governo ilegítimo, empossado ilegitimamente e à
revelia do pacto social (o único em condições de
prevenir as consequências mais funestas), não é só uma
incógnita, mas surge também como anúncio de
catástrofes iminentes, cujas sequelas podem ser tão
mais difíceis de corrigir do que o próprio desastre
que pôs em curso e de que se aproveitou para chegar ao
poder. Estamos preparados para uma avalanche?
Isto nós já vimos
acontecer em outras circunstâncias da política
brasileira e em outros momentos da história nacional e
mundial — a um custo, sempre, muito elevado,
principalmente para os mais fracos. Pode ocorrer
novamente? O momento é de pessimismo, mas sempre
existe a esperança. E, contanto que não seja tarde
demais, sempre será tempo de mudar de rumo, rever
estratégias e tomar as decisões corretas, inspiradas
pelo bom senso e não pelas paixões do momento.
* Embora não houvesse muita
gente, naqueles dias, a denunciar os perigos de uma
possível conspiração encabeçada pelo vice-presidente,
para a qual me chamou a atenção um texto publicado no
site Conversa Afiada, de Amorim.
2-5-2016
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