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Alberto Lacet - Dos secretos passos seus brotavam os dias

 

RUY VENTURA - INSTRUMENTOS DE SOPRO

(Levi Condinho)

 

 

 

Vencedor, em 2000, do Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, Ruy Ventura, nascido em 1973 na Serra de São Mamede, publicou, depois do seu primeiro livro de poesia, Arquitectura do Silêncio, mais cinco livros de poemas, alguns traduzidos em Espanha e um nos Estados Unidos. E menciono apenas a sua produção poética; por outros géneros e actividades literárias se espraiou Ruy Ventura.

 

Senhor de uma cada vez mais apurada ciência da linguagem, onde detectamos a laboriosa reflexão sobre a mesma, enformada por uma vasta e ecléctica cultura, proponho-me extrair da leitura da sua obra, e, sobretudo, de Instrumentos de Sopro, dois tópicos (entre outros possíveis) fundadores da sua poética: a) o elementarismo; b) a religião/religação.

 

Refiro o elementarismo, desde logo, pela atenção devota às coisas do mundo, da natureza (dos elementos) do tempo, da(s) memória(s), dos ritos do trabalho / da lavoura (e da arte), da história, do microcosmos do pequeno – mas nobilitante – quotidiano, ao macrocosmos em que ousamos, através do “sopro”, emitido a partir dos “instrumentos” de um corpo indissociado do espírito, pesarmo-nos na “balança transcendente das coisas” (Antero de Quental): “nesta noite em que vigiamos / o forno do alto da mais alta torre” (poema 39, “síntese”).

 

Determinante do elementarismo em questão é a própria matéria da linguagem, plena de contenção, de palavras sopesadas e oferecidas, uma a uma, diríamos, ao “sabor / paladar”, ao “táctil” do leitor, numa coesão orgânica que nos envia, remotamente, para as poéticas, por exemplo, de um certo Carlos de Oliveira, de um Nuno Guimarães. Palavras substanciais, em que signo e referente se casam indissociados, assentes, sobretudo, em substantivos (pedra, árvore, água, vinho, pão, casa, corpo, etc.) que raramente necessitam do abrilhantamento do adjectivo para projectarem o fulgor do seu brilho. Palavras associadas, por via de sábias “técnicas de engate” em que o óbvio é recusado, amiúde, para dar lugar ao efeito de estranhamento, à inesperada substituição de signos (“a janela guarda no poço uma língua estranha”), palavras que escavam, que raspam, que procuram o vestígio, o achado arqueológico, o arcano, “palavras que ninguém entende mas todos queremos escutar” (8, “evocação”), pelas quais o “caçador afasta o nevoeiro para melhor entender o nevoeiro” (2, “aparição”), nas quais coabitam “os ossos e a estrutura mineral das horas” (11, “registo”).

 

Referindo agora o outro tópico, aqui me surge o maior embaraço da escolha, já que toda a obra (e a vida, sei-o eu) de RV é, mais do que atravessada, pan-estruturada pela religião/religação. Não por acaso, RV (num poema do epílogo) escreve “ora. e labora. ora e labora” em alusão à recomendação de São Bento “ora et labora et noli contristari”, aqui se podendo acrescentar, para maior abrangência contra um possível reducionismo da sentença beneditina, o conselho de Agostinho da Silva: “Tudo o que fizermos, o façamos bem feito […] com disposição e intensidade litúrgicas.”

 

Se a religião surge, permanentemente, em RV, nos seus aspectos visíveis, rituais, litúrgicos (catedral, torre, sino, paramento…) com fortes reminiscências dos textos sagrados do cristianismo e do judaísmo (“a árvore / nascida no início.” – 25, “escritura”), numa denúncia clara da saudável prática cristã e católica (mas ecuménica) por parte do poeta, pobre seria a leitura da sua poesia se não ultrapassássemos essa prática/mundo no sentido de uma demanda/outra que é a do espiritual (por exemplo, no sentido estético kandinskyano), da luta pelo “achamento” do coração do invisível, em que “dois anjos abraçam o cume da montanha” (25, “escrituras”), enquanto se escutam “os sinos embalando o nevoeiro” (9, “regresso”).

 

E posso salientar, ainda nesse contexto de religião/religação, a denúncia, o protesto, a lamentação, contra a profanação do mundo (42, “cadáver” – sobre a transformação da igreja de São Julião, na Baixa lisboeta, em garagem de automóveis), contra o desrespeito e os atentados (incêndio da serra de Castelo de Vide, as questões em torno da serra da Malcata, etc.) contra a natureza (sagrada natureza), contra o património artístico e religioso. E afirmo a minha admiração por um poema que, só por si, vale todo um livro (5, “purificação”), texto admirável em que se rememora toda a existência da igreja de São Domingos, em Lisboa, palco de fogo, de fogos (o fogo conclamando o fogo), queima de homens e queima (“o incêndio purificou a pedra e a memória”) do edifício no seu (belo, recordo) interior.

 

Ruy Ventura recorre neste seu livro a umas “notas de autor” em que nos fornece um “mapa/guião” como visita guiada aos seus poemas que, “não sendo tópicos ou ecfrásticos”, assentam sobre “elementos materiais (povoações, lugares, casas, igrejas, castelos, sítios e achados arqueológicos, esculturas e pinturas) que convulsionaram as palavras”. Reconhece-se aí uma mais-valia para a leitura, mas julgo que, mesmo que, como outros poetas fazem, se deixassem os poemas na obscuridade, sem tais pistas de leitura, a autonomia, só por si, de cada poema, já nos bastaria. Na “travessia” (poema 15) entre Amieira e as Portas do Ródão, leiamos, em aberto, qualquer outra travessia (a vida…): “trasladaram o trigo e o fermento / com que fui diminuindo / a minha sede. / só não quiseram levar o calor / do vinho eterno. a barca era demasiado estreita.”

 

Ruy Ventura é já um poeta maior da nossa contemporaneidade. Mas ele também sabe que “a linha desconhece esta presença. / o padrão (se existiu) foi engolido / pela velocidade com que passaram” (15, “travessia”).

 

 

(Publicado originalmente em Colóquio / Letras, nº 176, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Janeiro / Abril de 2011: 227 – 229)

 

 

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