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RUY
VENTURA - INSTRUMENTOS DE SOPRO
(Levi
Condinho)
Vencedor,
em 2000, do Prémio Revelação de Poesia, da Associação
Portuguesa de Escritores, Ruy Ventura, nascido em 1973 na Serra de São
Mamede, publicou, depois do seu primeiro livro de poesia, Arquitectura
do Silêncio, mais cinco livros de poemas, alguns traduzidos em
Espanha e um nos Estados Unidos. E menciono apenas a sua produção
poética; por outros géneros e actividades literárias se espraiou
Ruy Ventura.
Senhor
de uma cada vez mais apurada ciência da linguagem, onde detectamos
a laboriosa reflexão sobre a mesma, enformada por uma vasta e ecléctica
cultura, proponho-me extrair da leitura da sua obra, e, sobretudo,
de Instrumentos de Sopro, dois tópicos (entre outros possíveis)
fundadores da sua poética: a) o elementarismo; b) a religião/religação.
Refiro
o elementarismo, desde logo, pela atenção devota às coisas do
mundo, da natureza (dos elementos) do tempo, da(s) memória(s), dos
ritos do trabalho / da lavoura (e da arte), da história, do
microcosmos do pequeno – mas nobilitante – quotidiano, ao
macrocosmos em que ousamos, através do “sopro”, emitido a
partir dos “instrumentos” de um corpo indissociado do espírito,
pesarmo-nos na “balança transcendente das coisas” (Antero de
Quental): “nesta noite em que vigiamos / o forno do alto da mais
alta torre” (poema 39, “síntese”).
Determinante
do elementarismo em questão é a própria matéria da linguagem,
plena de contenção, de palavras sopesadas e oferecidas, uma a uma,
diríamos, ao “sabor / paladar”, ao “táctil” do leitor,
numa coesão orgânica que nos envia, remotamente, para as poéticas,
por exemplo, de um certo Carlos de Oliveira, de um Nuno Guimarães.
Palavras substanciais, em que signo e referente se casam
indissociados, assentes, sobretudo, em substantivos (pedra, árvore,
água, vinho, pão, casa, corpo, etc.) que raramente necessitam do
abrilhantamento do adjectivo para projectarem o fulgor do seu
brilho. Palavras associadas, por via de sábias “técnicas de
engate” em que o óbvio é recusado, amiúde, para dar lugar ao
efeito de estranhamento, à inesperada substituição de signos
(“a janela guarda no poço uma língua estranha”), palavras que
escavam, que raspam, que procuram o vestígio, o achado arqueológico,
o arcano, “palavras que ninguém entende mas todos queremos
escutar” (8, “evocação”), pelas quais o “caçador afasta o
nevoeiro para melhor entender o nevoeiro” (2, “aparição”),
nas quais coabitam “os ossos e a estrutura mineral das horas”
(11, “registo”).
Referindo
agora o outro tópico, aqui me surge o maior embaraço da escolha, já
que toda a obra (e a vida, sei-o eu) de RV é, mais do que
atravessada, pan-estruturada pela religião/religação. Não por
acaso, RV (num poema do epílogo) escreve “ora. e labora. ora e
labora” em alusão à recomendação de São Bento “ora et
labora et noli contristari”, aqui se podendo acrescentar, para
maior abrangência contra um possível reducionismo da sentença
beneditina, o conselho de Agostinho da Silva: “Tudo o que
fizermos, o façamos bem feito […] com disposição e intensidade
litúrgicas.”
Se
a religião surge, permanentemente, em RV, nos seus aspectos visíveis,
rituais, litúrgicos (catedral, torre, sino, paramento…) com
fortes reminiscências dos textos sagrados do cristianismo e do judaísmo
(“a árvore / nascida no início.” – 25, “escritura”),
numa denúncia clara da saudável prática cristã e católica (mas
ecuménica) por parte do poeta, pobre seria a leitura da sua poesia
se não ultrapassássemos essa prática/mundo no sentido de uma
demanda/outra que é a do espiritual (por exemplo, no sentido estético
kandinskyano), da luta pelo “achamento” do coração do invisível,
em que “dois anjos abraçam o cume da montanha” (25,
“escrituras”), enquanto se escutam “os sinos embalando o
nevoeiro” (9, “regresso”).
E
posso salientar, ainda nesse contexto de religião/religação, a
denúncia, o protesto, a lamentação, contra a profanação do
mundo (42, “cadáver” – sobre a transformação da igreja de São
Julião, na Baixa lisboeta, em garagem de automóveis), contra o
desrespeito e os atentados (incêndio da serra de Castelo de Vide,
as questões em torno da serra da Malcata, etc.) contra a natureza
(sagrada natureza), contra o património artístico e religioso. E
afirmo a minha admiração por um poema que, só por si, vale todo
um livro (5, “purificação”), texto admirável em que se
rememora toda a existência da igreja de São Domingos, em Lisboa,
palco de fogo, de fogos (o fogo conclamando o fogo), queima de
homens e queima (“o incêndio purificou a pedra e a memória”)
do edifício no seu (belo, recordo) interior.
Ruy
Ventura recorre neste seu livro a umas “notas de autor” em que
nos fornece um “mapa/guião” como visita guiada aos seus poemas
que, “não sendo tópicos ou ecfrásticos”, assentam sobre
“elementos materiais (povoações, lugares, casas, igrejas,
castelos, sítios e achados arqueológicos, esculturas e pinturas)
que convulsionaram as palavras”. Reconhece-se aí uma mais-valia
para a leitura, mas julgo que, mesmo que, como outros poetas fazem,
se deixassem os poemas na obscuridade, sem tais pistas de leitura, a
autonomia, só por si, de cada poema, já nos bastaria. Na
“travessia” (poema 15) entre Amieira e as Portas do Ródão,
leiamos, em aberto, qualquer outra travessia (a vida…):
“trasladaram o trigo e o fermento / com que fui diminuindo / a
minha sede. / só não quiseram levar o calor / do vinho eterno. a
barca era demasiado estreita.”
Ruy
Ventura é já um poeta maior da nossa contemporaneidade. Mas ele
também sabe que “a linha desconhece esta presença. / o padrão
(se existiu) foi engolido / pela velocidade com que passaram” (15,
“travessia”).
(Publicado
originalmente em Colóquio / Letras, nº 176, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, Janeiro / Abril de 2011: 227 – 229)
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