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JUSTIÇA
EM FARRAPOS
(Renato
Suttana)
Frequentemente,
diante do grande volume de ilegalidades endossadas
pela justiça brasileira nos dois últimos anos ―
fartamente discutidas e denunciadas por juristas,
advogados e jornalistas nos órgãos da imprensa e
na internet ―, tenho me perguntado como é possível
que uma lei continue a ser respeitada e acatada
depois que o seu descumprimento foi referendado
pelas autoridades que, em princípio, deveriam se
encarregar de aplicá-la, velando por sua
respeitabilidade. Por todos os lados que olhemos,
as irregularidades afloram: seja no âmbito de
operações policiais de apelo midiático, em que
agentes da ordem saem a público para participar de
disputas políticas (ou se tornam personagens de um
imaginário coletivo sempre ávido por novos mitos);
seja no âmbito de julgamentos em que o ritmo dos
processos e das condenações parece ser determinado
por conveniências de circunstância (com
atropelamentos de defesa e de prazos que fazem
pensar que os agentes têm “pressa” de concluir os
processos ou levá-los a determinado ponto, por
motivos insondáveis, quando não vão eles mesmos à
imprensa antecipar veredictos, sem que a defesa
tenha apresentado ainda suas cartas); seja no
âmbito da própria Suprema Corte, que acelera ou
retarda processos segundo desígnios imponderáveis
(conforme se viu, recentemente, no pedido de
cassação do deputado Eduardo Cunha, atrasado de
meses em relação à acusação ― de mais de 140
páginas ― feita pelo Procurador Geral da
República; ao passo que a prisão do senador
Delcídio do Amaral se deu quase instantaneamente,
em circunstâncias que ainda causam admiração aos
observadores) ― desígnios que surpreendem até
aqueles que estão mais acostumados às incertezas e
imponderabilidades de nossa justiça e que portanto
(como é o meu caso) já não se espantam com elas.
Por
um lado, isso mostra que a justiça brasileira
ainda se pauta pelo princípio da autoridade a todo
custo, herdado de velhas tradições (bem
representadas pela chamada cultura do
“coronelismo” e do popular “teje preso”), que
dizem que a justiça emana menos da lei que a
comanda do que da (presumida) autoridade que a
aplica. Se o juiz determinou ― é a regra ―,
cumpra-se. Por outro lado, se é possível
questionar a suspeita dizendo que o fato de uma
lei não ser cumprida (e se podem citar, por
exemplo, as regras de conduta estabelecidas por
códigos clássicos, como os dez mandamentos
bíblicos, tomados como modelo de normas que ainda
valem para muitas pessoas, embora nem todo mundo
esteja disposto a cumpri-las) não cancela a sua
vigência e tampouco anula a sua existência, mesmo
essa justiça precisa de uma lei qualquer que a
mantenha funcionando. No entanto minha pergunta
não tem a ver somente com a existência das leis,
com a sua vigência. Refere-se antes à
possibilidade de que, uma vez desacatadas não só
por aqueles que devem se sujeitar a elas, mas
também pelos que estão encarregados de velar pela
sua aplicação, elas percam de tal maneira a sua
autoridade que deixam de existir como leis daí por
diante, necessitando de alguém que as ponha de
novo em circulação ― isto, se considerarmos que
existe um sistema minimamente organizado de
códigos e normas. Aqui, como em certos casamentos
― em que as infidelidades geram suspeitas que
podem durar a vida inteira (quando não conduzem ao
fim do consórcio) ―, uma lei que foi descumprida
pela instância encarregada de aplicá-la é uma lei
que perdeu a autoridade. Deixa, portanto, de
despertar respeito frente àqueles que deveriam se
sujeitar a ela, até porque o arbítrio, a falta de
ponderação e a dissimetria na aplicação da norma
são a melhor maneira de torná-la caduca. E isto
precisa ser levado em conta até na cultura do
“teje preso”.
Por
certo, o fato de que inúmeros crimes sejam
cometidos todos os dias, apesar de existir um
Código Penal que os arrola como crimes, não anula
a existência desse Código. Este, pela sua própria
natureza, existe porque existe a possibilidade do
confronto e até do desacato, e assim estipula
penalidades e tenta dosá-las segundo a gravidade
das infrações. Em outro nível, porém ― no nível da
aplicabilidade das leis ―, as coisas tomam outro
aspecto, assumindo outra dimensão: quem se
encarrega de aplicar a lei, velando pelo seu
cumprimento, precisa, antes de tudo, reconhecer a
sua existência, o que significa que deve
respeitá-la e acatá-la também ou, pelo menos,
reconhecê-la como lei. Se aqueles a quem coube a
guarda das leis (que foram criadas por outrem,
diga-se de passagem, conforme é a praxe nas
sociedades democráticas) são os primeiros a
desrespeitá-las, dando de barato a necessidade do
seu cumprimento, pouca esperança restará de que os
demais ― os comuns ― também venham a acatá-las,
por uma característica do nosso comportamento,
desenvolvida desde a infância, que se liga à ideia
de não gostarmos de injustiças. Por outras
palavras, uma lei que não tem quem a faça cumprir
ou quem a reconheça como tal é uma lei manca,
inócua, cuja validade se desfaz no fato de não
haver quem a conheça ou interprete como lei. Isto,
evidentemente, nada tem a ver com moralidade,
cujas normas acatamos socialmente, sem que alguém
tenha de escrevê-las ou codificá-las em papel ou
em tábuas ― o que não é o caso das leis escritas,
cuja complexidade e nuanças exigem não apenas
treino social, mas também, não raro, capacidades
de interpretação que só se adquirem com o estudo e
que, portanto, não estão disponíveis para todo
mundo.
Para
se ter uma ideia, dos anos de 2005 até 2012,
assistimos, pela imprensa, no Brasil, ao
julgamento da Ação Penal 470, popularmente chamada
de “Mensalão”. Tivemos oportunidade de
presenciar o assustador volume de eventos
estranhos que se passaram em seu âmbito,
culminando na condenação, não muito recente, de
importantes políticos brasileiros à prisão ― não
obstante a ausência de provas incriminatórias,
conforme disseram muitos. A opção de condenar sem
provas parece ter acontecido aos juízes à revelia
dos princípios mais básicos de condução do
processo legal, que até um leigo compreenderia.
Fundou-se antes na argumentação de que era
impossível crer que tal e tal político não tivesse
participado dos crimes de que fora acusado ou,
como disse uma alta magistrada, porque a
literatura permitia (frase que certamente entrará
para a história das decisões lamentáveis do
direito mundial). Se isto não abria um precedente
perigoso na jurisprudência brasileira (e é de
jurisprudência que estamos a falar aqui, seja isso
o que for), outra não seria a conclusão a tirar do
fato de que, uma vez tomada uma decisão (de
legalidade) duvidosa ― de consequências nocivas
para o ponto de vista jurídico ―, surge em seguida
a necessidade de sustentá-la, isto é, de
considerá-la como legítima e justificá-la
racionalmente. E esta, por sua vez, culminou ―
para o nosso espanto ― numa estipulação de penas
cujo cálculo, conforme também se disse na época,
era totalmente desproporcional à gravidade dos
crimes alegados (em comparação com as penas
aplicáveis a crimes chamados hediondos, tais como
o sequestro e o assassinato). Havia alguma lógica
em tudo isso? Certamente havia, embora eu não
conheça ninguém que saiba explicar, ainda hoje,
com o mínimo de razoabilidade, o que significa e
em que casos se aplica a chamada teoria do
“domínio do fato” (vá saber o que é!) ― ela mesma
alheia ao Código Penal brasileiro, que não a
reconhece ou regulamenta como norma.
Poderíamos
dizer que houve um grande jogo de cena, certamente
― visando a “defender” a lei ou a salvar a sua
reputação num momento sombrio ―, mas não
poderíamos sustentar que a vida de pessoas reais ―
com a possibilidade de virem a sofrer danos
psíquicos e físicos em decorrência de uma
condenação injusta ― deva estar sujeita a esse
tipo de arbítrio. Um homem não vive segundo uma
teoria, é o que se pode dizer, e muito menos deve
morrer por causa dela ou em decorrência dela, tal
como não se mata a fome com alimento imaginário ou
não se vence o frio vestindo roupas de mentirinha.
Há uma necessidade de fatos concretos, como se
diz, e encenações podem ser boas para o momento,
mas não solidificam autoridade e respeito (e não é
à toa, pois, que o magistrado que referendou as
punições com base no tal “domínio do fato” se
aposentou depois de seu cargo na Corte, tal como
se não pudesse, a partir de então, sustentar com a
sua presença e o seu prestígio a decisão
estapafúrdia que havia tomado); e também
aprendemos com nossos pais que discursos, somente,
desacompanhados de exemplos, não educam nem
motivam a juventude. Podemos falar de educação
neste ponto? Sim, pois é de educação que se trata,
termo que, acredito, está implícito na noção de
jurisprudência, definida no dicionário como
“ciência do direito e das leis” (Dicionário
Aurélio). E ciência, entre muitos
aspectos, pode significar a consolidação de
saberes e regras de ação que, se foram bons uma
vez, é bem provável que o venham a ser novamente,
constituindo um esquema de ação que pode orientar
o futuro. Já o que foi ruim não pode gerar senão
uma jurisprudência negativa, ou seja, não pode
manifestar-se senão como exemplo daquilo que não
convém imitar ou que, dada a sua inadequação, não
se deve fazer por uma segunda vez.
Num
contexto, portanto, de turbulência política e
jurídica (caso tenha sentido aplicar a ideia de
turbulência ao ambiente jurídico, do qual se
espera sempre um mínimo de serenidade e ponderação
para a tomada de decisões) como o atual, é justo
dizer que a primeira a perecer não é a autoridade,
mas a legalidade em si ou o ambiente de
compreensão e pacto social em que tal legalidade
se funda. Depois, como já se viu inúmeras vezes,
perece a autoridade, e o caminho para a desordem
está aberto. Muito se tem falado, nos dias
correntes, da diferença que existe entre o sentido
profundo da lei (sua racionalidade e o senso de
justiça do qual deve emanar) e o seu aspecto
exterior, relacionado à sua aplicabilidade prática
e a toda a ritualística que deve acompanhá-la.
Tem-se visto a justiça trocar o primeiro sentido
pelo segundo, como se o segundo pudesse existir
sem o primeiro, e tem-se visto os tribunais se
pautando pela observância ao ritual em detrimento
do senso profundo da justiça, numa inversão de
significados que, cedo ou tarde, não redundará em
outra coisa que a perda mesma da autoridade e do
sentido de justiça ― que os tribunais deveriam
defender como o seu princípio mais alto. Outro
exemplo se viu recentemente nos preparativos da
sessão do dia 17 de abril da Câmara Federal, que
aprovou a admissão do processo de impeachment
da presidenta Dilma Rousseff. Em resposta
à representação feita por um partido político, a
Suprema Corte determinou que o julgamento teria de
se pautar estritamente pelo conteúdo da denúncia
que dera início ao processo, quando fora aceita
pelo presidente da Câmara. O que se viu, porém ― e
qualquer um que tenha assistido à sessão pela tevê
pôde constatá-lo ―, foi tudo, menos um julgamento
pautado pelo conteúdo da denúncia (um observador
externo, que não soubesse do que se tratava, não
teria a menor ideia de qual foi realmente o motivo
por que o mandato da presidenta estava em
julgamento). E, não obstante, não faltaram depois
manifestações de representantes da Corte dizendo
que a coisa estava certa, que os procedimentos
foram corretos, porque o ritual fora seguido ―
valendo, em resumo, as aparências em detrimento do
sentido profundo.
Nos
dias atuais, a preocupação com o futuro da lei no
Brasil não é efeito de uma paranoia ou uma simples
miragem. Diante do que temos presenciado ― de
tantos exemplos de “quebra” da legalidade cujas
consequências são, em seguida, “remendadas” com
arranjos e expedientes que não corrigem a
ilegalidade em si, mas apenas os seus efeitos mais
imediatos ―, teme-se inclusive pela continuidade
da norma constitucional, que, para alguns, já se
desfez há tempos e foi substituída pelo arbítrio,
pela falsa autoridade (que não emana da lei, mas
só do status quo) e pelas conveniências de
momento. É possível viver, numa sociedade
democrática, composta por milhões de indivíduos,
sem uma norma que seja aceita por todos e,
sobretudo, sem um código supremo de conduta (uma
constituição), do qual emanem os outros e que
estipule, também, a maneira como o estado deve se
constituir, quem o comandará e quem terá, de fato,
em nome desses milhões de cidadãos, autoridade
para aplicar a lei? Tais são as perguntas que
podemos nos fazer, frente a um processo constante
de descumprimento da lei em nome do arbítrio, com
tentativas posteriores de amenizar as sequelas e
continuar, ao atropelo da razão, acreditando que o
sistema ainda funciona. E tais são as preocupações
com que devemos nos bater neste momento de crise
profunda, cujas consequências são imprevisíveis,
mas que ao menos poderiam ser amenizadas se a
justiça (a autoridade legitimamente
constituída) abraçasse a sua tarefa, mostrasse o
caminho a seguir e não apenas se debatesse, algo
risivelmente, no esforço teatral de salvar as
aparências.
Dourados, maio de
2016.
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