|
HEDDA
GABLER
(João
Paulo Esteves da Silva)
Hedda
Gabler. Não é costume ficar assim, horas esquecidas a olhar para a página
sem conseguir escrever uma única linha. Normalmente escrevo qualquer coisa,
facilmente, que depois deito fora também facilmente, ou guardo, não
interessa, o que é certo é que isto de ficar assim especado não é
costume. Agora, parece que a coisa desbloqueou; e foi no momento em que me
vi reflectido aqui no ecrã-que
se apaga de vez em quando para poupar energia e se transforma num espelho-
e me achei parecido com o meu assunto, achei-me parecido com Hedda Gabler.
Durante um instante era ela. Bloqueado a olhar o vazio tal e qual, e até
mesmo o rosto, de repente, me pareceu o da Hedda. As barbas grisalhas e a
calvície eram face jovem e cabelo louro e ralo de mulher. Será que a Hedda
se sonhava a si mesma com as barbas do pai, do general? Não sei, vem-me
agora a ideia de que este bloqueio não andará longe daquela má postura,
dos maus lençóis em que a personagem está. Uma das saídas será a outra
Hedda Gabler, a escrita, a peça de teatro que a heróina não pode ler, a
que ela queimaria sem ler.
Teria
sido mais fácil reflectir sobre «A Dama do Mar» ou «O Pato Selvagem»,
peças que Ibsen escreveu um pouco antes de Hedda Gabler, que se prendem com
os mesmos temas, obsessões, ou fulcros (o suicídio é um deles), mas que
exibem uma eloquência poética
e filosófica, por assim dizer, luxuriante, que está completamente ausente
de Hedda Gabler. As personagens destas peças anteriores são capazes de ler
a sua situação existencial, lançando mão de símbolos, metáforas
poderosas e expressivas, fecundas. Molhadas, mesmo. Por exemplo, o mar. O
mar grandeza, desconhecido, infinito, criador e destruidor, que atrai com
força irreprimível, este mar aparece dito na boca das personagens, e dá-lhes,
dizendo-se, uma possibilidade de libertação das forças obscuras que as
movem. Forçando talvez um tanto a nota, dir-se-á que em «A Dama do Mar»
e em «O O»Pato Selvagem» as personagens
se analisam reciprocamente, desfrutam, acreditam a magia das palavras
molhadas. Comparativamente, Hedda Gabler é seca. Talvez esteja grávida,
mas isso não a impede de ter a madre seca, de ser incapaz de conceber o
filho. As flores, o sol, o inchar da barriga, a bênção da tia Jule, os
cabelos fartos de Thea, etc… estimulam-lhe a antipatia, ou mesmo o ódio.
Porquê? Ela própria não sabe, e nós ficamos igualmente embasbacados
perante aquela rispidez e secura. Constatamos, apenas, não nos é dada a
verdade por detrás daquilo. Talvez por isso Hedda Gabler seja mais
convincente e, em certo nível, mais bela do que as peças anteriores. De
uma beleza árida. O tom geral de secura transforma o espaço (a casa) num
deserto e o espectador/leitor num camelo obrigado a procurar mais além sob
o sol. Esta camelice, que há-de estar por detrás da presente escrita, já
produziu alguns comentários célebres. Adorno, por ex.(Mínima Moralia, 2ª
parte, 58) viu
em Hedda Gabbler
, essencialmente, uma crítica do casamento burguês, a subversão da
bondade opressiva (medíocre) em nome da beleza libertadora: Hedda, a heroína,
revolta-se, protesta até à morte, em nome de ideais elevados, beleza,
nobreza, coragem, etc… ou seja, Adorno contentou-se com pouco; mas seria
abusar da retórica dizer que viu simplesmente uma miragem. Porque a crítica
do casamento burguês, está de facto na peça; o problema é que a crítica
desta crítica também lá está, e a desta última, e por aí fora até que
tenhamos que admitir que a peça se ri da crítica em geral, como o deserto
se ri dos camelos, deixa-se atravessar, dominar, não. O texto de Adorno está
cheio de meandros e subtilezas de pensamento merecedoras de respeito, e é
muito injusto rejeitá-lo, assim, secamente, fosse em nome de alguma beleza.
Mas parece-me que ele não quis ter em conta o nível shakespeariano
atingido na peça de Ibsen. É
que, segundo o conselho de Hamlet aos actores, a arte de representar deveria
fornecer um espelho:« to hold, as 'twere, the mirror up to nature, to show
virtue her own feature, scorn her own image, and the very age and body of
the time his form and pressure». Um espelho como que
posto frente à natureza, que mostrasse de que é que a virtude é feita (é
possível traduzir feature por feitura) e
mostrasse ao desprezo a sua própria imagem… Ora bem, o desprezo é,
precisamente, uma das armas paradoxais de Hedda Gabler. Hedda despreza,
entre outras coisas, os valores do marido, Tesman, e neste ponto é muito
difícil não a imitarmos, Tesman aparece como um ridículo coleccionador de
miudezas, insignificâncias. Fascinado pelos restos do passado «coisas de
que ninguém faz a mais pequena ideia». Desprezível, portanto. Mas então
e o fascínio que este desprezo exibe, melhor dizendo, trai, no próprio
acto de desprezar? Porque será que a peça Hedda Gabler nos fascina tanto,
sendo ela feita, muito cuidadosamente, de apenas miudezas domésticas, do
mesquinho abortar de um casal burguês, de preocupações comuns como ganhar
a vida, obter uma posição, procriar… etc. Há a heroína, claro, Hedda
que se opõe a tudo aquilo e é isso que nos prende. Sim, mas Hedda casou
com Tesman, de livre vontade, qualidade que ela preza acima de tudo,
escolheu-o entre muitíssimos pretendentes, porquê? O que é que em Tesman
atrai Hedda? Mesmo antes de saber se é possível responder, podemos reparar
que o próprio acto de desprezar revela uma adesão aos valores desprezados
e encerra uma contradição radical. To show scorn his own image é fazer
ver o quanto o desprezo é desprezível. O desprezo, se tal existe,
implicaria a indiferença absoluta, qualquer manifestação de desprezo já
é uma auto negação, um começo de apreço. Armados desta constatação
gramatical, será que podemos arriscar ler no espelho que Ibsen nos põe à
frente, ler sem esquecer a condição de camelo atravessando o deserto? Vou
arriscar.
Hedda
Gabler já não existe quando a peça começa, o nome seria agora Hedda
Tesman. O nome da peça e da personagem é, pois, um resto do passado, e
cai, enquanto objecto , sob a especialidade, para não dizer o talento, de
Jorgen Tesman. O desprezo também, como vimos, já foi logicamente perdido
no momento em que nasceu, já pouco nada ou dele resta no mundo dos fenómenos.
Talvez que Hedda aposte em Tesman para a sua própria conservação enquanto
resto do passado «o meu tempo estava a acabar» explica ela ao juiz Brack;
talvez que o apreço que ela mostra por todas as restantes personagens, sob
várias formas, que vão do apreço desprezo (Tesmans) ao apreço homicida (Lovborg)
passando pelo apreço ódio ternura hipócrita ( Elvsted) ou pelo apreço
desprezo sedução hipócrita…(Brack) talvez que todos estes apreços
complexos não sejam mais do que formas de luta, estratégias para recuperar
o grande Desprezo original. Nada
menos que tudo e nada mais que nada. «Um mundo que lhe está completamente
vedado». A relação com Lovborg parece ainda querer confortar o nosso
romantismo, afinal ela apaixona-se pela única personagem talentosa da peça,
não? Mas não, nada do eventual talento ou génio de historiador de Lovborg
atrai Hedda, quanto a isso o único testemunho com que podemos contar, nós
e ela, é o do especialista Tesman, nada nas falas de Lovborg é passível
de nos remeter para ideias de génio ou inspiração. Não, aquilo que
assumidamente interessa Hedda, em Lovborg, (interesse que nos deixa
embasbacados, a nós e a ele, Lovborg) é o álcool, a bebedeira, o mundo
desconhecido da ebriedade, do «dionisíaco», ecos do tal mundo sem preço,
do tal grande Desprezo. Perto do fim, o bebé livro, concebido com outra
mulher, será destruído como um inimigo em plena batalha, na guerra do
desprezo ideal contra a aceitação da vida dos valores. É difícil não
cair na tentação de invocar aqui o motivo, ciúme, e o seu corolário
comovente, amor. Mas o amor costuma querer ocupar a totalidade do
pensamento, segundo Camões, o amor é mesmo o próprio pensamento e seria,
portanto, uma palavra a evitar quando se quer pensar, porque no fundo é ele
que pensa… Enfim, Hedda vai travando uma luta desesperada em que a única
satisfação que resta como sucedâneo do grande desprezo é o poder da
vontade, a insubmissão, a liberdade. Compreende-se assim o aceitar das
escaramuças de sedução com Brack, o sentir a liberdade no prazer de a pôr
em perigo. Perder
esta liberdade é perder a guerra, não resta senão «le suicide beau».
Aplicação do código de honra militar, as tais barbas do general.
Mas
porquê? O que é que leva Hedda para fora da vida? O que é que leva uma
pessoa a não se contentar com o «entre», com algo, em vez de tudo ou
nada. Nesta peça, Ibsen não arrisca mitos fundadores que saciem a nossa
sede de respostas. Não sabemos praticamente nada do passado de Hedda,
apenas alusões, as pistolas, o retrato do pai, o vestido preto, talvez de
luto pela mãe, de quem nunca se fala, nada de certo. A peça dá-nos a
provar as virtudes da incerteza e o aparelho shakesperiano em forma de
espelho não permite a fabricação de heróis. O
modelo do desejo triangular, enunciado por Brack, sem rodeios nem poesia,
que se repete ao longo da peça como que em ilustração das teorias de René
Girard, é um modelo descritivo do desejo, não chega para explicar o
desespero do desejo. Hedda não desespera alcançar o desejado, parece que
é o próprio desejar que lhe é insuportável, e a leva ao suicídio.
Há
pouco, antes de começar a escrever, vi a Hedda Gabler a olhar as folhas
secas na minha própria imagem reflectida. Neste momento começo a reconhecê-la
em inúmeros poemas de «Les Fleurs du Mal», de Baudelaire, sobretudo na
parte «Spleen e Ideal» , termos que agora me aparecem quase sinónimos.
E
por fim, última camelice, invoco a história de Narciso, um rapaz suicidário,
uma flor e um estupefaciente. Narciso interessou Freud, seus contemporâneos
e seus discípulos que vêm tentando apurar o conceito problemático e
equivoco de «narcisismo» o qual, ainda hoje, continua a dar água pela
barba à teoria freudiana das pulsões. É que o rapaz Narciso
caracteriza-se, precisamente por não ter pulsões, não ter desejos, por
estar absolutamente em si mesmo; ou seja, por todo o contrário daquilo em
que normalmente se pensa, quando se fala de narcisismo. Narciso não tem
ego, nem, consequentemente, amor-próprio nem egoísmo. Disfruta de si, sem
divisão entre o eu e o seu objecto. Este estado, aparentemente, invejável,
terá suscitado a inveja dos deuses que o condenaram ao desejo. Quer dizer,
malvados, tiraram-no de si próprio e puseram-no em frente dele mesmo.
Seguiu-se crise de spleen entrecortada por ais de ideal e a história
termina como a da Hedda Gabler.
|