LUAR
FLORENTINO
(Jossi
Borges)
Vinicius estava ansioso. Fora chamado à casa de Carissa, sua amiga e colega de trabalho.
Não entendia o que significava aquilo
— era um convite de Natasha, a mãe dela, na verdade. Eles se conheciam há coisa de quatro ou cinco meses, pois trabalhavam na mesma casa noturna. Trabalhavam, sim. Embora ele fosse sócio do proprietário do bar “Colori Vivaci”, uma das casas noturnas mais famosas de Florença, a bela, antiga e luxuriante Florença.
Carissa era uma dançarina brasileira, uma das muitas que compunham o time de artistas tupiniquins da casa e que eram muito requisitadas por seu tipo físico latino e “exótico”. Os italianos prezavam ainda mais as morenas e negras brasileiras, mesmo assim, a beleza suave e clara de Carissa também fazia sucesso entre italianos e estrangeiros das mais diversas partes da Europa.
Era uma moça de seus vinte e cinco a trinta anos, esbelta, de longos e sedosos cabelos de tonalidade mel-escuro, rosto redondo e lábios delicadamente róseos. Um ar de inocência e jovialidade pairava-lhe perpetuamente nos olhos de um verde-jade puro e brilhante. Vinicius achava-a linda, mas não estava preparado para a pequena armadilha que Cupido armara para ambos.
Ele ficou sabendo que Carissa estava apaixonada por ele numa noite quente, após o show. Não soube o que dizer diante das insinuações dela
— insinuações que eram quase uma declaração. Não podia dizer que correspondia. Não, porque já tinha interesse em outra mulher.
Ele notou que, depois disso, a moça pareceu entristecer-se. Ela percebera que ele não ia se deixar seduzir, e julgou que outra das dançarinas
— talvez Saskia, uma polonesa de cachos dourados e formas arredondadas
— fosse a temida rival. Ele não fez nada para desmentir a teoria de Carissa, e sempre que possível, convidava Saskia para um drinque.
Por essas e outras, o convite inesperado de Natacha, a mãe de Carissa, o surpreendeu. Ele não fazia idéia do que isso podia significar, exceto que...
***
O apartamento de Natacha e Carissa ficava num bairro residencial elegante, não muito distante da Ponte Vecchio. Da janela da sala, aberta de par em par, descortinava-se um belo panorama da Ponte, com uma tonalidade dourada sob as luzes noturnas e o Arno, um espelho negro e fantástico.
Natacha era uma mulher alta, com as mesmas feições delicadas e pálidas de Carissa e os mesmos cabelos cor de mel, um pouco mais dourados. Tinha uma beleza clássica, e cada vez que a encarava, Vinicius prendia o fôlego. Havia algo na mãe de Carissa que o fascinava.
A conversa, inicialmente, foi sobre assuntos banais, até que o inevitável assunto surgiu. Ele embatucou, gaguejou, mas finalmente não conseguiu desviar-se dele. Sabia que a mãe estava investigando seu relacionamento com a jovem dançarina.
— Sei que Carissa está sofrendo
— disse Natacha
— e por você.
Ele baixou os olhos, sem saber exatamente o que dizer, mas nem precisou. Ela prosseguiu:
— Vinicius, você é um bom rapaz. Minha filha é uma jovem talentosa, bonita e... bom, te conhecendo como conheço, acho que eu aprovaria se ficassem juntos. Mas imagino que isso não acontecerá, não é mesmo?
Ele teve que assentir, um pouco contrariado. Aquele tipo de conversa não lhe parecia muito normal. O que uma mãe moderna, como Natacha, tinha a ver com os namoros, casos, relacionamentos amorosos da filha? Ele sempre julgara Natacha tão mente aberta, tão compreensiva e à frente do seu tempo. Nem parecia mãe, mas irmã de Carissa. E de repente, todo aquele interrogatório absurdo, como se estivessem no século XIX e ele fosse um pretendente “interessante” sendo julgado por suas atitudes pouco cavalheirescas.
— Natacha, eu gosto muito de Carissa, mas acho que já deixei bem claro para ela que não há possibilidades entre nós. Infelizmente.
— É pena
— ela disse, visivelmente irritada, levantando-se do sofá e caminhando até a janela. A paisagem do rio Arno, ao longe, parecia uma pintura. A silhueta de Natacha era como um toque sombrio numa composição impressionista.
— Natacha.
Ela voltou-se, com uma lâmina de gelo nos olhos castanhos.
— Eu estou apaixonado por outra mulher.
— Oh, entendo.
— Ela ia voltar-lhe as costas, quando então decidiu encará-lo novamente.
— E quem é ela... se é que posso me atrever a tal pergunta?
Ele sorriu, encabulado, e pela primeira vez em sua vida adulta, sentiu que o rosto corava.
— Prefiro não falar a respeito.
Natacha sorriu, como aquela luminosidade feiticeira que lhe era tão característica. Ela já tinha entendido tudo, não era mais necessário nenhuma palavra de Vinícius. Ele nao queria a filha, porque estava apaixonado pela mãe. Natacha soltou uma risadinha irônica. Como o destino podia ser cruel.
— É mesmo? E se eu lhe disser que já sei quem ela é?
— ela perguntou, com o mesmo sorriso gracioso e que tinha um leve traço de maldade.
Sem entender bem, Vinícius estremeceu. Teria ela descoberto o seu segredo? Mas e já não era hora de revelar a verdade?
Então, ela deu um passo à frente.
— Você sabe? Sabe mesmo, Natacha?
Ela meneou a cabeça, com um brilho avermelhado nos olhos.
— Você está apaixonado...
— Por
você
— ele disse, engolindo em seco, ao contemplar o rosto da bela mulher de meia-idade, tão próximo dele.
— E sabe que isso é impossível, não é? Sabe que eu jamais trairia a confiança de minha filha. Sabe que eu jamais me interessaria por um homem que deveria ser dela...
Vinícius franziu a testa, confuso. Sentia o perfume marcante de Natacha e suas narinas inflaram-se, pelo prazer e pelas estranhas sensações que percorreram-lhe o corpo, ao senti-la mais e mais próxima dele. Se ela não o queria, por que se aproximava tanto dele, quase ao ponto de... beijá-lo?!
Natacha inclinou a cabeça e fitou um ponto qualquer no pescoço de Vinícius. Então, como um leve estalido na mandíbula, ela abriu a boca, onde as presas longas e afiadas surgiram.
Vinícius deu um passo atrás. Sentia-se tonto e confuso, como se sua mente ficasse subitamente turvada por algum tipo de droga. Sabia que devia fugir dali. Aquele lugar era maligno, Natacha
— e talvez Carissa
— eram monstros perigosos.
Mas ele não conseguiu dar mais um passo sequer, quando ela deu um pequeno salto e cravou os dentes em seu pescoço. Ele gritou alto, a princípio, mas à medida que as forças o deixavam, seu gritou feneceu, baixou de tom, até perder-se em apenas um sussurro inaudível.
Ele mesmo foi ficando pálido, até que a vampira soltou-o, deixando-o cair, como uma flor murcha, sobre o belo tapete felpudo da sala.
Natacha, então, limpou os lábios com as costas da mão e afastou-se do cadáver, caminhando sinuosamente atá a janela.
— Não, minha filha não precisará mais se preocupar com você.
— Ela disse, lançando um último olhar ao corpo pálido e sem vida de Vinícius.
— Por quê mais atritos entre nós duas? Por causa de um... pobre diabo?
Ela meneou a cabeça e voltou a fitar a paisagem dourada da Ponte Vecchio, com um ar sonhador nos olhos.
— Minha filha não precisará nunca mais se preocupar com namorados indiferentes e amores não correspondidos. Nunca mais.
No céu de veludo e seda da noite florentina, uma lua cheia brilhava, majestosa, lançando lampejos de prata sobre o negro espelho do Arno.
Nota:
este conto faz parte da antologia Beijos e Sangue, publicada no Clube de
Autores
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