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Juan Gris

 

"Solfejo" e outros poemas de João Garção

 

 

SOLFEJO

 

Meu menino, ino, ino

meu menino do cinzel

Se olhares para o horizonte

verás S. Pedro de Muel

 

Meu menino, meu menino

meu menino do Choupal

Se olhares para o oceano

tu verás o Cadaval

 

Meu menino, meninão

meu menino da pistola

Se olhares p’ra dentro dum morto

verás Moçambique e Angola

 

Verás o não e o sim

meu menino face preta

Se olhares para a tua imagem

‘starás no céu da Fuzeta

 

Num almoço ao pé do Douro

lá p’ró norte do país

Se olhares p’ra cima do mundo

cair-te-á o nariz

 

E se fores ao Estoril

a S.Roque e a Albufeira

um fantasma aparecerá

de repente à tua beira

 

Meu menino, ino, ino

meu menino desgraçado

Se olhares para tudo o resto

ficarás do outro lado

 

Entre um ponto circunflexo

um parêntesis e um til

Se souberes todas as letras

descobrirás o Brasil

 

Meu menino, meninote

meu menino brincalhão

Se não andares num fagote

perderás o coração

 

E hão-de partir-te a cabeça

meu menino, minha estrela

Se olhares p’ra baixo da morte

não poderás fugir dela.

 

Toma cuidado, menino

ao chegar e ao partir

Se não procurares a Vida

nem dela poderás fugir!

 

 

 

SENTIMENTO

 

A água está parada, muito quieta no meio da noite.

E é preciso perguntar-lhe: és água de um rio?

És água dum mar? És água dentro dum copo

sobre uma mesa muito antiga e sonhada?

És água para um cavalo beber? Para um cão se banhar?

Para um homem e uma criança se lavarem ao relento?

Para uma mulher, para um gato, para um lobo?

 

E a água talvez não te responda. Nunca te responda.

Ou te responda tarde de mais. Ou nem sequer te ouça.

 

Mas tu pergunta. Pergunta e espera pela resposta.

Mesmo que os minutos passem entre ti e a água.

E devagar uma silhueta se desloque

e depois se detenha no meio das árvores imóveis.

 

 

 

MURALHA

 

Ai flores, ai flores da cor perdida

Dizei-me se sabedes novas da nossa vida

 

Ai flores, ai flores da nossa Idade

Dizei-me se sabedes novas da liberdade

 

Ai flores, ai flores da inocência

Dizei-me se sabedes novas da sonolência

 

A sonolência que me há gerado

O espanto em que estou mergulhado

 

E a outra verdade que é só enguiço

Sem carne e sangue para o chouriço

 

E a cor perdida que perdida é

Da triste vida cá para o Zé

 

Há tanta névoa, tudo confuso

Por isso, flores, perdeis o uso

 

E sois apenas, por nosso mal

Notícia triste no Telejornal

 

Ai flores, florzinhas, ai lindas flores

Sede de novo plantas às cores

 

Que o coração me dá um tranco

De vos ver todas de preto e branco.

 

 

(in “Líricas & Satíricas”)

 

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