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O
Homem por inteiro – As
“Ciências Sociais” e
o Sistema Educativo
(João
Garção)
“A
educação dirige-se ao Homem por inteiro”
(Julien
Freund, A Essência do Político)
1
– Ao analisar a cultura de massas, Marshall McLuhan, estudioso
canadiano que cunhou a célebre expressão “Aldeia Global”,
considerou que o progresso técnico e tecnológico constituía um
dos mitos da sociedade industrial mais divulgados pelos meios de
comunicação do século XX.
Ora,
esta admiração contemporânea pelos resultados da técnica foi
possibilitada por uma série de quadros mundividenciais: o empirismo
de Locke, a crença iluminista na perfectibilidade social, os
ensinamentos da ciência pós-newtoniana. O optimismo gnosiológico
a que esses quadros abriram caminho corporizou-se de forma exemplar
no século XIX, nas concepções materialistas e mecanicistas do
Cientismo e do Positivismo.
Dito
de outra forma: mais além do mundo do espírito, existiria um outro
mundo estruturado por leis objectivas, as quais poderiam ser
apreendidas pelo Homem. O conhecimento destas leis tornaria possível
o controlo do devir, pelo que o Homem, se é um objecto modelado
pelo meio, tornar-se-ia também sujeito de progresso, na medida em
que se instituiria como agente de desenvolvimento. Neste sentido,
será fácil compreender que as Ciências Naturais tenham sido
colocadas num pedestal, adquirindo grande protagonismo, e que a
Natureza tenha sido afirmada como base da normatividade.
Paralelamente
ao esforço de conhecimento da Natureza, impunha-se igualmente a
necessidade de conhecer a realidade social, a qual obedeceria a leis
semelhantes àquelas que regulariam o mundo natural. O domínio
antropológico viu-se assim invadido por postulados mecanicistas. Às
Ciências Sociais, que progressivamente se foram institucionalizando
na sequência desta reestruturação dos mecanismos de aquisição
de Conhecimento, pede-se-lhes então que apresentem os resultados da
sua pesquisa empírica, enunciando princípios e resolvendo
problemas. Contudo, em comparação com as Ciências Naturais,
aparentemente revelam mais débeis padrões de exactidão e parecem
incapazes de oferecer resultados práticos, passíveis de utilização
imediata. Além disto, as pretensões universalistas que
protagonizaram traduziram-se em críticas oriundas de vários
quadrantes, os quais reprovaram o carácter sectorial das suas análises,
encaradas como expressando um ponto de vista parcelar, pouco
apropriado para ser aplicável a toda a Humanidade. Os seus
pressupostos teóricos, tidos por apriorísticos e mesmo
preconceituosos, bem com a sua tradicional arquitectura disciplinar,
considerada anquilosada, também contribuíram para que se tenha
avolumado o cepticismo em relação às suas virtudes científicas,
falando-se frequentemente, nos últimos anos, numa “Crise das Ciências
Sociais” – aliás, não é sequer consensual o próprio grupo de
disciplinas que participam deste enquadramento tipológico, tendo-se
multiplicado, nos últimos anos, as sub-divisões disciplinares que
reivindicam essa integração, fruto, em boa medida, da maneira como
se estruturam as instituições de ensino e investigação.
Na
verdade e em relação a essa referida crise, é um facto que os
postulados resultantes da actividade dos investigadores da área das
chamadas Ciências Sociais e Humanas necessitam, por vezes, de vários
anos para encontrarem confirmação, aparentando, assim, possuírem
uma menor dimensão de aplicabilidade ao quotidiano societário,
quando comparados com o conhecimento produzido pelas Ciências
Naturais, o qual sempre recebeu a preferência do denominado
“grande público” (pouco entendido nestas matérias mas sempre
disposto a extasiar-se perante os progressos da técnica) e das
estruturas produtivas (por ser de aplicação mais imediata). Além
do mais, as rápidas mutações a que o mundo contemporâneo tem
estado sujeito têm conferido primazia à existência presente,
contribuindo para o desenvolvimento de uma cultura da novidade e da
utilidade imediata, o que ainda mais parece afirmar o carácter de
permanente obsolescência do Saber oriundo da área das Ciências
Sociais e Humanas.
No
entanto, afirmemo-lo desde já, essa perspectiva hierárquica e
dicotómica do Conhecimento humano não tem contribuído para tornar
o mundo mais inteligível, nem tem conseguido travar o
desenvolvimento de intolerâncias e de exclusões diversas. O Homem
contemporâneo é frequentemente levado a confundir o que significa
dispor de Informação com possuir Conhecimento e é motivado a
responder de forma cada vez mais exclusiva a estímulos
audio-visuais, desenvolvendo emoções e sentimentos primários em
detrimento da capacidade crítica. Temos, assim, um crescente número
de indivíduos culturalmente atrofiados, amputados da sua capacidade
de abstracção, vivendo numa sociedade-espectáculo que prefere as
cabeças recheadas de dados enciclopédicos avulsos às cabeças
preparadas com mecanismos reflexivos (certos concursos televisivos são
disto um bom exemplo), relacionando-se prioritariamente com outros
indivíduos ou grupos com os quais mantêm afinidades e
desconhecendo – e muitas vezes rejeitando violentamente – as
realidades dos “outros”.
É
neste quadro de secundarização das Ciências Sociais e Humanas
face às Ciências Exactas, que certos pedagogos, como Hugo Assmann,
defendem como imprescindível uma maior ligação entre a Pedagogia
e as Biociências – como forma de se alargar a sua matriz
epistemológica, é certo, mas também para que a Pedagogia escape
àquilo que denominam de “sujeição face às Ciências
Sociais”, uma vez que, entendem, aquela não será filha destas.
Ora,
se é um facto que deverá operar-se uma renovação ao nível das
áreas auxiliares das Ciências da Educação, essa abertura a novos
paradigmas deverá sempre traduzir-se numa ampliação do seu campo
epistemológico e nunca numa redução. É que essa subalternização
das Ciências Sociais e Humanas, longe de significar a construção
de uma visão do mundo ampliada e de, assim, aproximar realidades física
e espiritualmente distantes, potencia, pelo contrário, a fragmentação
do Saber – o que equivalerá a dizer, inevitavelmente, a fragmentação
do próprio Homem.
2
– A reestruturação das Ciências Sociais passará,
necessariamente, pela existência de uma maior flexibilidade ao nível
das estruturas organizativas: a necessidade de acompanhar as rápidas
mutações do mundo não é compaginável com uma rigidez
disciplinar que frequentemente secundariza análises válidas sobre
os factos sociais pela simples razão de não se enquadrarem nos
esquemas disciplinares tradicionais. Esta abertura deverá
traduzir-se, pois, na fuga às demarcações tradicionais, negando a
constituição de feudos do Saber, ampliando o âmbito de acção da
actividade intelectual. E, embora recusando intuitos totalizadores e
dogmáticos, deverá sempre contribuir para um maior conhecimento do
ser humano e das suas acções e não apenas para as questionar,
permitindo que o indivíduo tenha a possibilidade de “adquirir a
estatura humana em toda a sua plenitude”, para parafrasear
Fernando Savater.
Esta
procura de uma prática transdisciplinar, refira-se, não é
exclusiva das Ciências Sociais. Ela tem sido igualmente valorizada
como fundamento epistemológico importante para a edificação da
chamada “Ciência da Educação”, por exemplo. Também neste domínio,
a adopção de novos paradigmas passa pela convergência de esforços
e pela existência de uma mundividência cada vez mais alargada e
dialogante. As tendências que se têm vindo a desenhar relacionadas
com o quotidiano humano, bem como os novos desafios que, em consequência,
se vão colocando, aconselham a construção dessa nova dimensão
epistemológica, possuidora de um universalismo pluralista, difícil
de alcançar, é um facto, mas também rico de possibilidades.
3
– Em conclusão e pelo que atrás fica dito, considero importante:
a)
que se modifiquem as categorias tradicionais do Saber,
possibilitando o desenvolvimento de projectos transdisciplinares
que, valorizando a imaginação e a inovação, apontem para a
construção de uma universalidade pluralista e para o incremento da
convivialidade humana, reconhecendo a educabilidade como desejável
projecto ao serviço do Indivíduo e da Humanidade;
b)
que se melhore a comunicação dos cientistas sociais com o seu público
potencial, pelo que estes deverão desenvolver a divulgação do
Saber a dois níveis, sendo um deles a vulgarização, contribuindo
assim para que, paulatinamente, se “desoculte a luz que há nos
outros”, como referiu o Prof. Agostinho da Silva;
c)
que as instituições de ensino, onde prioritariamente trabalham os
cientistas sociais, se reorganizem por forma a tornarem compatíveis
a investigação com a prática docente – esta última
frequentemente negligenciada em benefício daquela, no ensino
superior; nos ensinos básico e secundário, sucede exactamente o
inverso, sendo a produção científica frequentemente descurada em
favor da actividade docente;
d)
negar a ideia tão publicitada de que a chamada “educação para a
empregabilidade” requer que se considere como de somenos importância,
se não mesmo irrelevante, o Saber oriundo das Ciências Sociais e
Humanas. Esta falácia pretensamente utilitarista enferma de um erro
basilar: os conceitos de adaptabilidade, flexibilidade e polivalência,
tidos por desejáveis, assentam no pressuposto de que o futuro
profissional não será um mero tecnocrata periodicamente
reprogramado, mas sim um indivíduo sensatamente autónomo e com
capacidade crítica para analisar o meio onde se insere. Assim
sendo, a propalada “Escola de Cidadãos” nunca o poderá ser se
se construir com currículos desequilibrados e que não traduzam a
própria essência do Humano. Não apenas não contribuirá para o
desenvolvimento económico, como privará vários indivíduos do
desenvolvimento das suas disposições sociais. E esta eventual
amputação não se minoraria com a Educação para a Cidadania, por
muito transversal que fosse o tratamento deste tema – o qual,
curiosamente, se desenvolve precisamente numa altura em que se
multiplicam os testemunhos da incapacidade do Estado para conter
comportamentos de incivilidade por parte de elementos que integram várias
das suas instituições.
Em
conclusão, urge que, nestes tempos de mudança, se contraponha ao
estrito realismo materialista
– o da aceitação do facto consumado – o idealismo realista – o da construção das possibilidades
apercebidas, para utilizar a terminologia que, no já longínquo ano
de 1939, foi empregue por Raul Proença – exemplo de intelectual,
de cidadão e de educador.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
A Ciência Tal Qual se Faz [
coordenação e apresentação de Fernando Gil ], Lisboa, Ministério
da Ciência e Tecnologia/Edições João Sá da Costa, col. “
Humanismo e Ciência”, 1999.
Assmann,
Hugo, Reencantar a Educação [ 2ª ed. ], Petrópolis, Editora Vozes Lda.,
1998.
Camps,
Victoria e outro, Manual de Civismo, Barcelona, Editora Ariel, n.º 176, 1998.
Carvalho,
Adalberto Dias de, Utopia e
Educação, Porto, Porto Editora, col. “ Ciências da Educação”,
n.º 13, 1994.
Id.
, Epistemologia das Ciências
da Educação [ 2 ª ed. ], Porto, Edições Afrontamento, col.
“Biblioteca das Ciências do Homem”, n.º 7, 1998.
NUNES,
A. Sedas, Questões
Preliminares Sobre as Ciências Sociais [ 12ª ed. ], Lisboa,
Editorial Presença, 1996.
Para Abrir as Ciências Sociais – relatório da Comissão
Gulbenkian sobre a reestruturação das Ciências Sociais,
Lisboa, Publicações Europa-América, 1996.
SAVATER, Fernando, O Valor de Educar, Lisboa, Editorial Presença, col. “Pontos de
Referência”, n.º 16, 1997.
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