|
A
IMPORTÂNCIA DA TRANSVERSALIDADE
NA
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
(João
Garção)
"É
sempre interessante colocar uma questão, mesmo que a resposta o não seja" (OSCAR WILDE)
Édoxè té boulé kai to démo...
Todas
as antigas leis gregas começavam por esta cláusula a qual,
traduzida para a nossa Língua, significa "Pareceu bem ao
Conselho e ao Povo..."
É
importante que tenhamos em consideração esta primeira palavra -
pareceu. Na verdade, as leis eram feitas não porque fossem boas mas
porque, na opinião dos legisladores, pareciam boas. E há aqui uma
diferença muito importante e que deveremos ter em consideração:
as leis eram entendidas não como o resultado de um saber científico
(epistéme) mas como um produto de opiniões (doxa), de convicções
frágeis porque variáveis na medida em que eram o resultado
da momentânea reflexão humana e do debate entre seres
humanos.
Platão
classificava a opinião entre os conhecimentos inferiores. Contudo,
prefiro realçar, neste exemplo que a História nos fornece, o facto
de ele constituir uma afirmação de abertura e de tolerância no
que se refere à forma como se encara a produção do Conhecimento.
Este não advém de crenças impostas, mas sim, desejavelmente, da
reflexão participada, fruto da acção de indivíduos informados e
abertos às opiniões dos seus semelhantes.
Pelo
que atrás fica dito, será lógico que constatemos que o
Conhecimento não é algo rígido e estanque mas sim flexível e mutável. O conhecimento que
hoje em dia temos de nós próprios e do Mundo não é o mesmo que
possuíam os nossos antepassados. Ao longo dos séculos, temos vindo
a acumular informações sobre muitas matérias, algumas das quais não
utilizamos no nosso quotidiano - contudo, o interessante e positivo
é que as temos à nossa disposição, para delas nos servirmos, se
assim o entendermos.
Por
este motivo, e na medida em que as descobertas científicas se
sucedem a um ritmo cada vez maior, sendo também mais rápida a sua
aplicação ao dia-a-dia dos seres humanos, com as inevitáveis e
correspondentes mutações sociais, costuma afirmar-se que o nosso
mundo ocidental contemporâneo é altamente complexo e de mais difícil
compreensão do que o de séculos anteriores. Este "acelerar do
tempo histórico", que se vai estendendo
igualmente a outras sociedades fora do mundo ocidental e que
se vão paulatinamente ocidentalizando (melhor seria dizer,
"americanizando"), condiciona
de forma decisiva a maneira como se processa a construção
do Saber e a sua divulgação e, por essa via, regula a configuração
das sociedades.
Ora,
se analisarmos o mundo contemporâneo - cada vez mais estruturado
em função de arquétipos culturais norte-americanos, repito
- constataremos a prevalência de um modelo globalizante,
simultaneamente político, económico e cultural que, a pretexto de
defender a liberdade individual, em última instância encara o
Homem como um recurso que pode ser consumido como qualquer outro,
circunstância esta apresentada como inevitável - aspecto expresso
de forma exemplar, há alguns anos, na obra O Fim da História e o
Último Homem, de Francis Fukuyama. Na perspectiva dos ideólogos
que partilham destas concepções, a uniformização das mundividências
dos seres humanos, progressivamente estruturada, é indispensável
para que esse modelo possa impor-se. Construir-se-á, desta maneira
- e para parafrasear Herbert Marcuse - o "Homem
unidimensional", aquele que age num único registo pré-concebido
e cujas atitudes, aparentemente livres, são moldadas por forças
que lhe são exteriores e que o mesmo não tem a capacidade nem o
discernimento de reconhecer como condicionantes das suas
aparentemente livres escolhas.
Impõe-se
que lutemos contra esta domesticação do Indivíduo e contra a
crescente persuasão do abandono da sua autonomia. Na verdade, esta
autonomia depende da existência de reflexão e de deliberação próprias.
Quem assim não agir, não será autónomo, não será, portanto,
democrata numa sociedade democrática, ou seja, numa sociedade onde
as várias opiniões devem passar, para se validarem, pelo crivo do
confronto de ideias. E não existirá maior perigo para a Democracia
do que o de estar assente
numa cidadania apenas aparente, na medida em que os cidadãos
desenvolvem interesses pelo superficial e pelo acessório,
secundarizando as análises sobre as questões prioritárias e que,
na verdade, condicionam o nosso destino comum.
Infelizmente,
há que reconhecer que se tem desenvolvido, nos últimos tempos, um
tipo de indivíduo que não é próprio das sociedades democráticas:
desinteressado, desinformado, domesticado, afinal, este indivíduo
é aquele que Giovanni Sartori designa por "Homo Videns" -
aquele que é formado prioritariamente pela televisão, em que o
facto de ver prevalece sobre o de falar, uma vez que se habitua a
ver televisão antes mesmo de aprender a ler e a escrever,
respondendo prioritariamente a estímulos audio-visuais (e, desta
maneira, a imagem destrona a palavra e a recepção
passiva das imagens coloca em segundo plano a reflexão crítica
e criativa sobre a realidade circundante). Em conformidade e na sequência
do desenvolvimento destas concepções, tem ganho espaço, entre nós,
um tipo de indivíduo simultaneamente céptico e cínico em relação
à sociedade humana - e, atrever-me-ia a dizer, em relação à própria
Vida - mas igualmente passivo e indulgente (constate-se, por
exemplo, que a noção de "injustiça" tende a
enfraquecer: se analisarmos a problemática da pobreza,
constataremos que esta ainda causa pena, mas já são menos aqueles
a quem causa indignação...).
Não
é por acaso, portanto, que os neo-fascismos têm encontrado um
campo favorável para a sua proliferação, visto que nas sociedades
ocidentais actuais parece existir o desenvolvimento de uma amnésia
colectiva em relação a algumas das páginas mais negras da História
humana contemporânea, cada vez menos conhecidas apesar de nunca,
como agora, o ser humano dispor de tanta informação sobre esses
assuntos, bem como de tantos meios de a obter.
Contra
este "Homem unidimensional", urge que afirmemos, de
maneira veemente, a noção de multidimensionalidade do Conhecimento
humano, como forma de combatermos os propósitos totalitários que,
crescentemente, vão surgindo no horizonte.
Desta
maneira, compreender-se-á que a problemática da Transversalidade
na construção do Conhecimento não seja uma simples questão semântica
mas sim um aspecto nuclear na definição da maneira como se
processa o entendimento humano sobre a sua própria Existência. É
que "Transversalidade", termo aproximado a "Transdisciplinaridade",
implica , por um lado, multidimensionalidade operativa e, por outro,
reintegração de parcela do Saber isoladas na sequência do
tratamento disciplinar dos assuntos. Logo, necessariamente, colocação
de questões, debate, tolerância, e não inflexibilidade hierárquica
doutrinária ou rigidez epistemológica. Significa, na prática, a
constatação de que o Saber não é construído a partir de uma
praxis assente sobre o preconceito cultural nem sobre monolíticos
esquemas ideativos. Num mundo heterogéneo e em rápida mudança,
como poderia estruturar-se correctamente a procura do Saber a partir
de processos tendencialmente estanques e parcelares, porque
fragmentados?
Daí
que Hugo Hassmann tenha introduzido uma sílaba neste termo,
referindo-se-lhe como "Transversatilidade" para significar
que a apropriação dos dados da Realidade não deverá fazer-se
apenas a partir da sua decomposição disciplinar mas igualmente
através do reconhecimento de pontos de convergência recorrendo à
totalidade dos meios técnicos e tecnológicos actualmente à nossa
disposição.
Nesta
perspectiva, evidentemente, a Escola desempenha um papel
fundamental. Tal como o próprio mundo que habitamos, a Educação não
é uma realidade homogénea e a Escola é, igualmente,
multidimensional. Ela deverá reflectir esta pluralidade, lançando
interrogações, confrontando posicionamentos, inovando em termos de
processos e contribuindo, enfim, para o aprofundar das vivências
democráticas, pois não pode existir verdadeira Democracia sem
Educação. No entanto permito-me chamar a atenção
para o facto de o Pluralismo não poder dar origem ao
Subjectivismo extremo, ou seja, à noção de que, em nome da Tolerância,
todos os postulados possuem a mesma validade, o que se me afigura
bastante perigoso. Deveremos, isso sim, possuir
uma base sólida de convicções democráticas a partir das
quais desenvolveremos o nosso Conhecimento do mundo que nos rodeia.
Sem a existência deste núcleo de certezas, a questionação não
é profícua, mas sim demagógica e estéril.
Ao
finalizar, permitam-me chamar a atenção para o facto de ser
fundamental que a Acção complemente a Reflexão, que a participação
activa (Civismo) se siga às cogitações e ao confronto de opiniões
livremente expresso. "Há que escolher: descansar ou ser
livre", afirmou um dia Tucidedes. Cabe-nos efectuar essa
escolha, com a certeza, porém, de que a nossa opção condicionará
não apenas o nosso trajecto futuro mas igualmente o dos nossos
semelhantes. Saibamos nós, em nome de um mundo melhor, tomar a opção
correcta.
|