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João Garção, Natureza morta com soldado e cão

 

POEMA ALGURES

 

(José do Carmo Francisco)

 

 

Há um poema. Um certo poema. Julgo-o feito a partir de memórias sedimentadas nas mais pequenas gavetas do teu coração. Assim como um guarda-jóias invisível, um estojo antigo, passado de mão em mão, na mesma família, por sucessivas gerações de mulheres.

 

Há um poema. Um poema algures onde deixaste o pó das brincadeiras de infância, os jogos, as cantigas, as lengalengas. Tudo aquilo que poderia sugerir um mundo organizado entre os sonhos e os seus resultados. Um mundo onde a ternura era uma janela a fechar o vento mais frio do Inverno desse tempo.

 

Há um poema. Procuro-o nos teus gestos hoje mais comedidos e reservados, na tua voz onde se insinua a força das pausas, a grande nuvem cinzenta do tempo de hoje onde a tristeza fez a sua sementeira multiplicada.

 

Há um poema. Deve haver mesmo esse poema num lugar que só tu sabes. Pode não ser ainda poema, pode não ter forma mas eu pressinto que ele existe, funciona, respira, articula-se entre as palavras e os sentimentos, sobe das águas mais escuras e lodosas para uma superfície onde a limpidez dita a sua regra.

 

Há um poema. Persigo-o ansioso todos os dias apenas guiado pela intuição e pelo instinto de julgar o teu rosto o rosto desse poema, sua origem e seu destino, sua força e sua razão de ser.

 

Há um poema. Eu sei. Hei-de escrevê-lo a partir da límpida pontuação do teu olhar. Amanhã. Ou num amanhã futuro. No dia da tua total revelação. No lugar onde, a partir dos teus olhos, seja possível instalar uma harmonia igual à das brincadeiras da infância quando o mundo estava organizado entre os sonhos e os seus resultados.

 

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