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Nicolau Saião

 

“FUGA” E OUTROS POEMAS

 

(Ildásio Tavares)

 

 

Soneto da luz

 

Quando eu nasci, já recebi a cruz,

plantada no caminho à minha espera,

a projetar a sua sombra austera

onde eu busquei sedento paz e luz.

 

Quando eu nasci, já recebi Jesus

como anúncio de dor e primavera.

Mas era uma outra luz, uma outra esfera –

meu caminho, não sei onde conduz.

 

Resta-me a cruz e a dura provação

dos espinhos da vida, triste dança

de enganos, dissabores, ilusão

 

que penetram-me o peito feito lança

e afastam a luz que a vista não alcança –

numa só chaga pulsa o coração.

 

 

 

 

Fuga

 

Queria fugir de mim

pra ser qualquer coisa à toa.

Mas, mesmo longe de mim,

serei a mesma pessoa.

 

Como hei de ser outro então,

como haverei de aprender,

se eu mesmo, por opção,

é que desejo não ser?

 

Vivo cansado de mim,

de ir e vir e de ficar.

Quer princípio, meio ou fim,

eu não encontro o lugar

 

 

 

 

Balada da Babilônia

 

Eu não quero esta mulher

que me fascina na tela,

cheia de luzes e cores,

encaixotada no vídeo

como ração refulgente

pra se comer com os olhos

que faz de mim mariposa

querendo que eu queime as asas

na luz da televisão.

 

Eu não quero essa mulher

que se entrega nua em pêlo

nas páginas das revistas

na distância do papel

e quer o meu onanismo;

e quer dinheiro por nada

com seu corpo de escultura

de mármore feito carne,

seu sexo milionário.

 

Eu quero aquela menina

lá no alto do sobrado

com as pernas grossas ocultas

pela grade da sacada

que me sorri quando eu passo,

sorrindo as vagas promessas

dos sorrisos das mulheres,

todo encanto que entreteço

na minha imaginação.

 

Eu quero aquela menina

que trabalha no escritório

e que, quando cruza as pernas,

todo mundo fica louco –

com o decote generoso,

mostrando as marcas das alças

do biquíni no seu colo,

apontando para os seios

palpitantes, quase à mostra.

 

Eu quero aquela menina,

caixa do supermercado

que troca olhares furtivos

enquanto registra as compras,

com sua farda que cuida,

lava e passa todo dia

para estar no seu trabalho

com a elegância do pobre.

 

Eu quero aquela

menina

que é balconista no shopping

e que apesar das varizes

fica em pé o dia

todo,

atendendo com um sorriso

os clientes oportunos:

que sai só, tarde da noite,

sem perder a sua pose

no sacolejo do ônibus.

 

Eu quero aquela menina

colega de faculdade

que me dá cola no exame

e nem sequer é bonita

(mas empresta o apontamento),

com quem estudo pra prova,

colando coxa com coxa

imaginando loucuras,

            sem coragem para falar.

 

Não. Não quero essa mulher

que está em oferta na praça.

Eu quero mulher de graça.

Eu quero poder sonhar.

Tanta beleza me oprime,

tanta sensualidade

tanta perícia na cama.

Sou amador. Quero amor.

E não profissionalismo.

 

Os meus olhos são meus olhos.

Minha cama é minha cama.

Não sou rei pra ter rainha –

a mulher que fosse minha

nem minha tinha de ser.

Tinha que ser dela mesma

e ser o seu sentimento;

e ter em seu pensamento

querer ser minha mulher.

 

 

 

 

Baladas da Modelo Afogada

 

Oito dias sobre as ondas,

sem querer foi desfilar;

posta em desassossego,

seu desfile derradeiro

fez vestida de sargaços

na passarela do mar.

 

O seu príncipe encantado

veio em seu cavalo alado

pra seu castelo a levar.

Caiu uma tempestade,

ergueu-se uma onda brava

e os dois caíram no mar.

 

Desesperados, nadaram,

lutando pra se salvar –

ela foi ficando atrás,

não demorou a cansar:

por mais que ele a procurasse,

ela se perdeu no mar.

 

Ele só ouviu seus gritos,

abafados pelo ar.

A vida, a glória, a beleza,

houveram de se afogar

nas ondas frias da noite;

nos precipícios do mar.

 

Com o resto de suas forças,

ele nadou feito louco

até na praia chegar.

Nadando, ia misturando

com o sal amargo do mar.

 

Oito dias sobre as ondas,

ela esteve a desfilar –

são algas os seus cabelos;

são anêmonas seus seios

e sua vulva é uma concha

nas profundezas do mar.

 

 

 

 

Madrigal do Desejo

 

Milady, teus olhos

me furam, perfuram,

teus olhos, carvões,

tão fundos são brasas,

queimando meus olhos,

fundidos nos teus.

 

Milady, teus olhos

me iludem, fascinam,

teus olhos são gemas

de tanto fulgor

que ofuscam meus olhos,

rendidos nos teus.

 

Milady, teus olhos

me assustam me azoam,

teus olhos são sóis

no céu do teu rosto

que atraem meus olhos

perdidos nos teus.

 

Milady, teus olhos,

refratam, refletem,

teus olhos são poços

escuros, profundos,

que afogam meus olhos,

espelhos dos teus.

 

 

 

 

Rondó com dó

 

Ninguém sabe quem sou eu.

Caminhando pela rua,

meu pensamento flutua:

quem lembrou já se esqueceu.

 

Ninguém sabe quem eu sou.

Com a indiferença da lua

uma gente nua e crua

se esqueceu do que lembrou.

 

Quem é que sabe? Quem é?

Quem ao menos percebeu

que ninguém no mundo sabe

quem eu sou? Ninguém. Nem eu.

 

 

 

 

Ut  Floreas

 

Há quem curve o poema ante o leitor.

Eu o escrevo como vem: um fruto; um potro;

Um rio; um matagal; escrevo-o

Sem pensar – o sucesso das palavras

Não depende de mim; nem tampouco

É um simples problema de carpintaria.

 

Se o poema se equilibra sobre as pernas

Com alguma elegância; e se é mesmo

Uma planta; um animal; até um córrego

Discreto, tudo bem –

Lê-lo-ão e, então, amá-lo-ão ou não.

 

Só o dinheiro agrada a todo mundo.

Que hei de fazer

Se não entendem meu poema?

Tem horas que nem mesmo eu o entendo.

 

 

 

 

Desmagia

 

É preciso desembaraçar o novelo,

desritualizar o ritual;

e reinventar,

até o que já foi reinventado

e azedou.

 

É preciso descartar o adoçante

para conhecer

o gosto real das coisas –

saborear a fruta

sem medo nem avidez.

 

É preciso reconhecer

e assumir

a óbvia obviedade do óbvio.

 

 

 

 

O Enfado de Tereu

 

Me irrita a paranóia dos pássaros

quando ruflam de mim

                                   fuga e aflição.

Me irrita.

                Jamais ousaria caçá-los

para me deliciar

com a frágil obscenidade

de seus cadáveres

dourados ao fogo com requinte.

No passado, confesso que já degustei

essas, que se caçam, perdizes. Mas foi

há muito tempo. Jamais mastigaria

um lírico colibri

ou este bem-te-vi

que fugiu de mim agora, tão amarelo.

 

 

 

 

Ditirambo

 

Pouco importa. Viver é perder. Viver

é morrer a cada instante. Viver é

saber que nada é certo

ou perdura – cedo ou tarde, os

esforços se resolvem (e todo gozo)

em uma massa falida

                                     (como uma goma de mascar).

 

                    A preamar, hoje, foi às 18:25, embora

eu lá não estivesse para presenciar

as efêmeras espumas espoucando-se na esteira da praia;

gozar no rosto a viração e um resto de sol

a me lembrar que só o presente existe;

e que tudo passa.

 

Pouco importa.

 

Fosse porém de vez (não em pequenos pedaços),

ao menos eu teria  

o gosto do abismo,

a vertigem da queda,

a majestade do inferno.

 

 

 

 

A Semente na Leira

 

Há em toda mulher

a possibilidade da cópula

que o homem busca desabrochar

em seus olhos, sua boca, seus seios, seu ventre,

seu corpo, sua alma

penetrando seus ouvidos

com as carícias do som.

 

Há em toda mulher

a possibilidade da mãe,

de quem o homem rebrota

como quem surge a si mesmo;

de quem faz nascer a sua projeção

avante ao mundo – colo

de onde nunca sai sua cabeça;

útero de onde nunca sai a sua alma.

 

Há em toda mulher

a possibilidade da filha,

imagem decomposta por carinho;

ave pousa em mãos espalmadas

de ternura; de zelo; escudo; ágeis

trazendo da selva a caça; bravas

fortes sustentando o medo e a fadiga;

mãos em manto sobre o inverno.

No espelho, imagem que prossegue; flor

que se divisa; que se quer; porém

mal se cheira num breve instante

de culpa. E que se beija contrito

com os olhos.

 

Há em toda mulher

a possibilidade da irmã –

gesto ao flanco de si mesmo;

encanto próximo, passos, lado a lado,

furtivos, junto a junto nos folguedos;

contactos ao demoradamente descobrir

que o longe é perto

e que o perto tem o nome do perigo –

dois gomos de uma fruta que

não se podem jamais juntar de novo

na mesma casca.                                                                              

 

Há em toda mulher

a possibilidade de amiga

com quem compartir o tempo para adoçar

o espaço com quem verter confidências

da paixão a quem confessar fracassos,

fraquezas e vilezas. A quem mostrar

esse lado débil e amarelo que um macho

nunca devia mostrar a ninguém. A quem

pedir a palavra serena na hora da

loucura; a palavra de fé na hora do

vacilo; a palavra de compreensão

na hora do erro. Amiga em cujo ombro

chorar, sem ter vergonha de ser não mais

que um menino maltratado e só.

 

Há em toda mulher

a possibilidade da companheira

que pega o fardo e o carrega nos ombros

dividindo o peso conosco, uma mão

equilibrando-o, a outra trançada com a

nossa, numa cadeia de energia, os dois

passo firme pela estrada. Que brinca

conosco esses brinquedos da infância

eterna que há na vida, cúmplices

num parêntese de prazer e liberdade

no mundo travado dos adultos.

 

Há em toda mulher

a possibilidade da amante que,

quanto mais a queremos puta para nós,

mais a queremos santa para os outros. E

queremo-la toda, toda, da cabeça aos pés,

de corpo e alma, como predadores sucessivos,

totalitariamente,

no desfalecer supremo da entrega

em que deixa de ser ela, para sermos juntos,

um animal de duas costas que, em convulsão,

inunda, inunda-se, verte-se na vertigem de

outrar-se, tempestade de ser os dois

apenas um.

 

Há em toda mulher a possibilidade do amor.

 

 

 

 

Apud Yeats

 

Outras, desde que tu quebraste

aquela jura solene

de uma noite jovem,

têm-me amado.

 

Contudo, no prenúncio da

morte

quando começa o sono

ou no vórtice fugaz

dos vapores do vinho,

inda vislumbro

teu vulto.

 

 

 

 

Égloga do Amor Desesperado

 

Quando o animal estava prestes

a morrer, e as coisas que são

não mais podiam ser as coisas

que somos, a vida me deu o amor

como castigo: muito mais que ao

mandacaru seus espinhos

e à urtiga o seu queimor.

 

São, estas plantas, assim mesmo,

quem delas se aproxima

não pode se queixar da sorte. Contudo,

se alguém esbarrar, sem querer,

em uma delas, haverá de

ferir-se. Na pele, todavia, arde

e passa. Nada como sucedeu comigo.

 

No meu tempo de menino, andei pela mata,

livre e descuidado; amigo de

suas sombras; de seus inesperados

tapetes de folhas largas e arroxeadas;

do aroma apetitoso de uma jaca madura,

rachada e prestes a cair

como refeição, aspereza e visgo.

 

Andei pelas furtivas roças de cacau,

encaracoladas entre os austeros

troncos de jequitibás, jacarandás,

pequis, sapucaias, facão cantando

aço nos galhos inúteis; a doze

pronta para estraçalhar a jararacuçu

ou a beleza mortífera da coral.

 

Ah, eu andei tanto, tanto pela

mata e pouco se me dava o susto e

a pele ardendo como fogo, fosse

um insidioso cansanção, uma formiga

preta ou o repentino e insuspeitado

míssil de um marimbondo.

 

Quem chega perto do fogo é pra se

queimar, dizia meu avô, picando

fumo de corda para o deleite

agreste de seu cigarro de palha,

com aquela deliberada certeza que

têm todos os avós e que só agora

começo a compreender.

 

Porém contudo, no mato eu sabia

o que estava escondido para mim.

Fosse o rubi de uma pitanga, graúda,

lá em cima do galho. Fosse uma

goiaba de vez, amarelando para me

anunciar seu vermelho. Ou capim

navalha; tiririca. Ou coisa pior.

Que nunca aconteceu naquele tempo.

 

Cascavel, não, essa avisa.

Enxota a gente com o fuxico fatal de seu chocalho.

É que tem de tudo na mata, tudo.

Lacraus. Caranguejeiras. Piolhos de

cobra, camuflados, dão febre, calafrios

dores fortes e se duvidar até matam.

 

Eu, nesse tempo, era menino, no

entanto. Menino. Caía no mato sem

medo, afobado, tropeçando nos

tocos – nascido ali, mas cedo

apartado, educado, e viciado

na moleza morna do asfalto.

 

Ah, eu caía no mato pro que desse

e nunca assinei recibo quando me

estrepava. Curtia calado. Lembrava

meu avô picando fumo. E raciocinava

a euforia de que vale a pena chegar

perto do fogo, ainda que a gente

se queime (e que só presta mesmo

se a gente se queimar).

 

Nesse tempo, o animal estava

vivo, borbulhando. Com

a corda toda. E tudo era exatamente

como eu era. Eu sabia a cara da mata.

A mata conhecia a passagem dos

meus pés. E tudo estava escondido –

a cada um cabia o que era seu e

cada um sabia de cor o seu risco.

 

Cada folha era se preparar

para a possível surpresa –

antegozar o prazer inusitado do mistério

mas também lamber as cicatrizes devagar

sem perder o sorriso jamais.

 

Hoje quando o animal está

prestes a morrer; o homem e a

alma prestes a nascer.

Hoje quando as coisas são o

que são (e dane-se),

eu estava preparado para tudo:

eu seria capaz de aceitar qualquer coisa.

Só não este amor (que não perdi).

Mas que a vida me deu como sublime castigo.

 

 

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