“FUGA” E OUTROS POEMAS
(Ildásio
Tavares)
Soneto
da luz
Quando
eu nasci, já recebi a cruz,
plantada
no caminho à minha espera,
a
projetar a sua sombra austera
onde
eu busquei sedento paz e luz.
Quando
eu nasci, já recebi Jesus
como
anúncio de dor e primavera.
Mas
era uma outra luz, uma outra esfera –
meu
caminho, não sei onde conduz.
Resta-me
a cruz e a dura provação
dos
espinhos da vida, triste dança
de
enganos, dissabores, ilusão
que
penetram-me o peito feito lança
e
afastam a luz que a vista não alcança –
numa
só chaga pulsa o coração.
Fuga
Queria fugir de
mim
pra ser qualquer
coisa à toa.
Mas, mesmo longe
de mim,
serei a mesma
pessoa.
Como hei de ser
outro então,
como haverei de
aprender,
se eu mesmo, por
opção,
é que desejo não
ser?
Vivo cansado de
mim,
de ir e vir e de
ficar.
Quer princípio,
meio ou fim,
eu não encontro
o lugar
Balada da
Babilônia
Eu não quero
esta mulher
que me fascina
na tela,
cheia de luzes e
cores,
encaixotada no
vídeo
como ração
refulgente
pra se comer com
os olhos
que faz de mim
mariposa
querendo que eu
queime as asas
na luz da
televisão.
Eu não quero
essa mulher
que se entrega
nua em pêlo
nas páginas das
revistas
na distância do
papel
e quer o meu
onanismo;
e quer dinheiro
por nada
com seu corpo de
escultura
de mármore feito
carne,
seu sexo
milionário.
Eu quero aquela
menina
lá no alto do
sobrado
com as pernas
grossas ocultas
pela grade da
sacada
que me sorri
quando eu passo,
sorrindo as
vagas promessas
dos sorrisos das
mulheres,
todo encanto que
entreteço
na minha
imaginação.
Eu quero aquela
menina
que trabalha no
escritório
e que, quando
cruza as pernas,
todo mundo fica
louco –
com o decote
generoso,
mostrando as
marcas das alças
do biquíni no
seu colo,
apontando para
os seios
palpitantes,
quase à mostra.
Eu quero aquela
menina,
caixa do
supermercado
que troca
olhares furtivos
enquanto
registra as compras,
com sua farda
que cuida,
lava e passa
todo dia
para estar no
seu trabalho
com a elegância
do pobre.
Eu quero aquela
menina
que é balconista
no shopping
e que apesar das
varizes
fica em pé o dia
todo,
atendendo com um
sorriso
os clientes
oportunos:
que sai só,
tarde da noite,
sem perder a sua
pose
no sacolejo do
ônibus.
Eu quero aquela
menina
colega de
faculdade
que me dá cola
no exame
e nem sequer é
bonita
(mas empresta o
apontamento),
com quem estudo
pra prova,
colando coxa com
coxa
imaginando
loucuras,
sem
coragem para falar.
Não. Não quero
essa mulher
que está em
oferta na praça.
Eu quero mulher
de graça.
Eu quero poder
sonhar.
Tanta beleza me
oprime,
tanta
sensualidade
tanta perícia na
cama.
Sou amador.
Quero amor.
E não
profissionalismo.
Os meus olhos
são meus olhos.
Minha cama é
minha cama.
Não sou rei pra
ter rainha –
a mulher que
fosse minha
nem minha tinha
de ser.
Tinha que ser
dela mesma
e ser o seu
sentimento;
e ter em seu
pensamento
querer ser minha
mulher.
Baladas da
Modelo Afogada
Oito dias sobre
as ondas,
sem querer foi
desfilar;
posta em
desassossego,
seu desfile
derradeiro
fez vestida de
sargaços
na passarela do
mar.
O seu príncipe
encantado
veio em seu
cavalo alado
pra seu castelo
a levar.
Caiu uma
tempestade,
ergueu-se uma
onda brava
e os dois caíram
no mar.
Desesperados,
nadaram,
lutando pra se
salvar –
ela foi ficando
atrás,
não demorou a
cansar:
por mais que ele
a procurasse,
ela se perdeu no
mar.
Ele só ouviu
seus gritos,
abafados pelo
ar.
A vida, a
glória, a beleza,
houveram de se
afogar
nas ondas frias
da noite;
nos precipícios
do mar.
Com o resto de
suas forças,
ele nadou feito
louco
até na praia
chegar.
Nadando, ia
misturando
com o sal amargo
do mar.
Oito dias sobre
as ondas,
ela esteve a
desfilar –
são algas os
seus cabelos;
são anêmonas
seus seios
e sua vulva é
uma concha
nas profundezas
do mar.
Madrigal do
Desejo
Milady, teus
olhos
me furam,
perfuram,
teus olhos,
carvões,
tão fundos são
brasas,
queimando meus
olhos,
fundidos nos
teus.
Milady, teus
olhos
me iludem,
fascinam,
teus olhos são
gemas
de tanto fulgor
que ofuscam meus
olhos,
rendidos nos
teus.
Milady, teus
olhos
me assustam me
azoam,
teus olhos são
sóis
no céu do teu
rosto
que atraem meus
olhos
perdidos nos
teus.
Milady, teus
olhos,
refratam,
refletem,
teus olhos são
poços
escuros,
profundos,
que afogam meus
olhos,
espelhos dos
teus.
Rondó com dó
Ninguém sabe
quem sou eu.
Caminhando pela
rua,
meu pensamento
flutua:
quem lembrou já
se esqueceu.
Ninguém sabe
quem eu sou.
Com a
indiferença da lua
uma gente nua e
crua
se esqueceu do
que lembrou.
Quem é que sabe?
Quem é?
Quem ao menos
percebeu
que ninguém no
mundo sabe
quem eu sou?
Ninguém. Nem eu.
Ut
Floreas
Há quem curve o
poema ante o leitor.
Eu o escrevo
como vem: um fruto; um potro;
Um rio; um
matagal; escrevo-o
Sem pensar – o
sucesso das palavras
Não depende de
mim; nem tampouco
É um simples
problema de carpintaria.
Se o poema se
equilibra sobre as pernas
Com alguma
elegância; e se é mesmo
Uma planta; um
animal; até um córrego
Discreto, tudo
bem –
Lê-lo-ão e,
então, amá-lo-ão ou não.
Só o dinheiro
agrada a todo mundo.
Que hei de fazer
Se não entendem
meu poema?
Tem horas que
nem mesmo eu o entendo.
Desmagia
É preciso
desembaraçar o novelo,
desritualizar o
ritual;
e reinventar,
até o que já foi
reinventado
e azedou.
É preciso
descartar o adoçante
para conhecer
o gosto real das
coisas –
saborear a fruta
sem medo nem
avidez.
É preciso
reconhecer
e assumir
a óbvia
obviedade do óbvio.
O Enfado de
Tereu
Me irrita a
paranóia dos pássaros
quando ruflam de
mim
fuga e aflição.
Me irrita.
Jamais ousaria caçá-los
para me deliciar
com a frágil
obscenidade
de seus
cadáveres
dourados ao fogo
com requinte.
No passado,
confesso que já degustei
essas, que se
caçam, perdizes. Mas foi
há muito tempo.
Jamais mastigaria
um lírico
colibri
ou este
bem-te-vi
que fugiu de mim
agora, tão amarelo.
Ditirambo
Pouco importa.
Viver é perder. Viver
é morrer a cada
instante. Viver é
saber que nada é
certo
ou perdura –
cedo ou tarde, os
esforços se
resolvem (e todo gozo)
em uma massa
falida
(como uma goma de mascar).
A preamar, hoje, foi às 18:25, embora
eu lá não
estivesse para presenciar
as efêmeras
espumas espoucando-se na esteira da praia;
gozar no rosto a
viração e um resto de sol
a me lembrar que
só o presente existe;
e que tudo
passa.
Pouco importa.
Fosse porém de
vez (não em pequenos pedaços),
ao menos eu
teria
o gosto do
abismo,
a vertigem da
queda,
a majestade do
inferno.
A Semente na
Leira
Há em toda
mulher
a possibilidade
da cópula
que o homem
busca desabrochar
em seus olhos,
sua boca, seus seios, seu ventre,
seu corpo, sua
alma
penetrando seus
ouvidos
com as carícias
do som.
Há em toda
mulher
a possibilidade
da mãe,
de quem o homem
rebrota
como quem surge
a si mesmo;
de quem faz
nascer a sua projeção
avante ao mundo
– colo
de onde nunca
sai sua cabeça;
útero de onde
nunca sai a sua alma.
Há em toda
mulher
a possibilidade
da filha,
imagem
decomposta por carinho;
ave pousa em
mãos espalmadas
de ternura; de
zelo; escudo; ágeis
trazendo da
selva a caça; bravas
fortes
sustentando o medo e a fadiga;
mãos em manto
sobre o inverno.
No espelho,
imagem que prossegue; flor
que se divisa;
que se quer; porém
mal se cheira
num breve instante
de culpa. E que
se beija contrito
com os olhos.
Há em toda
mulher
a possibilidade
da irmã –
gesto ao flanco
de si mesmo;
encanto próximo,
passos, lado a lado,
furtivos, junto
a junto nos folguedos;
contactos ao
demoradamente descobrir
que o longe é
perto
e que o perto
tem o nome do perigo –
dois gomos de
uma fruta que
não se podem
jamais juntar de novo
na mesma
casca.
Há em toda
mulher
a possibilidade
de amiga
com quem
compartir o tempo para adoçar
o espaço com
quem verter confidências
da paixão a quem
confessar fracassos,
fraquezas e
vilezas. A quem mostrar
esse lado débil
e amarelo que um macho
nunca devia
mostrar a ninguém. A quem
pedir a palavra
serena na hora da
loucura; a
palavra de fé na hora do
vacilo; a
palavra de compreensão
na hora do erro.
Amiga em cujo ombro
chorar, sem ter
vergonha de ser não mais
que um menino
maltratado e só.
Há em toda
mulher
a possibilidade
da companheira
que pega o fardo
e o carrega nos ombros
dividindo o peso
conosco, uma mão
equilibrando-o,
a outra trançada com a
nossa, numa
cadeia de energia, os dois
passo firme pela
estrada. Que brinca
conosco esses
brinquedos da infância
eterna que há na
vida, cúmplices
num parêntese de
prazer e liberdade
no mundo travado
dos adultos.
Há em toda
mulher
a possibilidade
da amante que,
quanto mais a
queremos puta para nós,
mais a queremos
santa para os outros. E
queremo-la toda,
toda, da cabeça aos pés,
de corpo e alma,
como predadores sucessivos,
totalitariamente,
no desfalecer
supremo da entrega
em que deixa de
ser ela, para sermos juntos,
um animal de
duas costas que, em convulsão,
inunda,
inunda-se, verte-se na vertigem de
outrar-se,
tempestade de ser os dois
apenas um.
Há em toda
mulher a possibilidade do amor.
Apud
Yeats
Outras, desde
que tu quebraste
aquela jura
solene
de uma noite
jovem,
têm-me amado.
Contudo, no
prenúncio da
morte
quando começa o
sono
ou no vórtice
fugaz
dos vapores do
vinho,
inda vislumbro
teu vulto.
Égloga do
Amor Desesperado
Quando o animal
estava prestes
a morrer, e as
coisas que são
não mais podiam
ser as coisas
que somos, a
vida me deu o amor
como castigo:
muito mais que ao
mandacaru seus
espinhos
e à urtiga o seu
queimor.
São, estas
plantas, assim mesmo,
quem delas se
aproxima
não pode se
queixar da sorte. Contudo,
se alguém
esbarrar, sem querer,
em uma delas,
haverá de
ferir-se. Na
pele, todavia, arde
e passa. Nada
como sucedeu comigo.
No meu tempo de
menino, andei pela mata,
livre e
descuidado; amigo de
suas sombras; de
seus inesperados
tapetes de
folhas largas e arroxeadas;
do aroma
apetitoso de uma jaca madura,
rachada e
prestes a cair
como refeição,
aspereza e visgo.
Andei pelas
furtivas roças de cacau,
encaracoladas
entre os austeros
troncos de
jequitibás, jacarandás,
pequis,
sapucaias, facão cantando
aço nos galhos
inúteis; a doze
pronta para
estraçalhar a jararacuçu
ou a beleza
mortífera da coral.
Ah, eu andei
tanto, tanto pela
mata e pouco se
me dava o susto e
a pele ardendo
como fogo, fosse
um insidioso
cansanção, uma formiga
preta ou o
repentino e insuspeitado
míssil de um
marimbondo.
Quem chega perto
do fogo é pra se
queimar, dizia
meu avô, picando
fumo de corda
para o deleite
agreste de seu
cigarro de palha,
com aquela
deliberada certeza que
têm todos os
avós e que só agora
começo a
compreender.
Porém contudo,
no mato eu sabia
o que estava
escondido para mim.
Fosse o rubi de
uma pitanga, graúda,
lá em cima do
galho. Fosse uma
goiaba de vez,
amarelando para me
anunciar seu
vermelho. Ou capim
navalha;
tiririca. Ou coisa pior.
Que nunca
aconteceu naquele tempo.
Cascavel, não,
essa avisa.
Enxota a gente
com o fuxico fatal de seu chocalho.
É que tem de
tudo na mata, tudo.
Lacraus.
Caranguejeiras. Piolhos de
cobra,
camuflados, dão febre, calafrios
dores fortes e
se duvidar até matam.
Eu, nesse tempo,
era menino, no
entanto. Menino.
Caía no mato sem
medo, afobado,
tropeçando nos
tocos – nascido
ali, mas cedo
apartado,
educado, e viciado
na moleza morna
do asfalto.
Ah, eu caía no
mato pro que desse
e nunca assinei
recibo quando me
estrepava.
Curtia calado. Lembrava
meu avô picando
fumo. E raciocinava
a euforia de que
vale a pena chegar
perto do fogo,
ainda que a gente
se queime (e que
só presta mesmo
se a gente se
queimar).
Nesse tempo, o
animal estava
vivo,
borbulhando. Com
a corda toda. E
tudo era exatamente
como eu era. Eu
sabia a cara da mata.
A mata conhecia
a passagem dos
meus pés. E tudo
estava escondido –
a cada um cabia
o que era seu e
cada um sabia de
cor o seu risco.
Cada folha era
se preparar
para a possível
surpresa –
antegozar o
prazer inusitado do mistério
mas também
lamber as cicatrizes devagar
sem perder o
sorriso jamais.
Hoje quando o
animal está
prestes a
morrer; o homem e a
alma prestes a
nascer.
Hoje quando as
coisas são o
que são (e
dane-se),
eu estava
preparado para tudo:
eu seria capaz
de aceitar qualquer coisa.
Só não este amor
(que não perdi).
Mas que a vida
me deu como sublime castigo.
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