POEMAS DE HENRIQUE WAGNER
Miguel Carneiro, meio-dia
A primeira vez que vi Miguel Carneiro
fazia sol, era meio-dia
ou quase, e o vento não levantava
seus cabelos longos, de esquecido.
A voz era de deus e do diabo,
na forma em que dizia e desdizia,
orava e condenava, xingava e prescrevia.
Cantava cada pedra de palavra
com o sustento de seu timbre matutino.
Lembro como se fosse hoje:
Miguel falando, Miguel falando, Miguel
falando
e uma cortina de animais
dentro da cerca se pondo ao sol.
Que Miguel, quando assenta,
põe-se o tempo. O sol descobre
que a grandeza não é de quinta,
é de um milhão de homens
na boca firme e neurológica de Miguel.
Lembro como se fosse hoje:
morreu fulano, morreu sicrano, morreu
beltrano
– enquanto Miguel vivesse tanta gente
morreria...
E agora lembro da primeira vez
em que vi Miguel:
olhar de água seca, sorriso esconso,
e no cigarro a língua solta,
lambendo a seda, colando o fumo.
Ao meio-dia, quase; tudo muito claro,
e a fumaça era evasiva,
ia longe, sem nenhum remorso.
Bênção
Num sonho de aguardente sinuoso
o rosto de meu pai navega em flores
dançando ao som de um canto mais viscoso
que o excesso de suor, calor e cores.
Sem corpo, uma cabeça esquece o busto
e apenas o que fica na cabeça
a máscara, seu rosto, – a face a custo
é mesmo a de meu pai, que eu não me
esqueça!
Tentei fugir do sonho ou do cortejo
e a fuga de meus olhos, eu, que vejo,
a morte do meu pai sem coração,
se fez indecifrada na memória
e nada mais se segue dessa história:
um sonho, e feito um sonho, um pai sem
mão.
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