(Henrique Wagner)
No decurso do ano de 1492, em meio ao
reinado do insigne e famigerado Cristóvão Cabral, um homem de origem
humilde se notabilizou pela sua presença de espírito e incrível
sagacidade para o nada, e para a falcatrua do intelecto de raízes
anacrônicas. Quase um vate, àquela época reunia milhões de ouvintes
surdos no assunto, para tecer variações desimpedidas acerca de um
tal filósofo, que só ele conhecia, de nome Friedrich Nietzsche,
segundo ele, um pensador otomano. Segundo ele, terceiro ele e quarto
ele, mas sempre primeiro em tudo, e ele próprio discípulo de si
mesmo, pela sua audácia e no mais das tantas vezes ousadia, alcançou
as raias da “mídia” local, que, dentre outras coisas, destacava sua
incrível capacidade para os adjetivos, excessivos, que mais pareciam
substantivos abstratos ou incríveis, além do gosto adocicado para a
colocação do “erre” no final de todas as palavras, criando um eco de
gosto discutível, em que tudo rimava, como um coral de ronco, ou uma
tertúlia de pigarros na boca.
Antes da popularidade, já popularizada,
o homem das multidões, dado às conquistas do que sobrava do
Cristianismo, voltado para a palavra recitada ou mesmo cuspida e
declamada – ou seja, não clamada –, o homem que arrancava suspiros
de morte da maioria de sua particularíssima turbamulta, comprada
pelo desejo do ridículo, tivera uma infância das mais pobres, dado
que era filho de não se sabia quem, irmão de vários dos quais nunca
conhecera, e amigo dos bodes e das galinhas de uma fazendola do
vizinho de seus pais adotivos. Brincava de peão, quando conseguia
roubar um, e gamão, quando pescava algum tabuleiro com um corte de
machado pelo meio, lá pelos lados do lixão. O gamão era a sua
paixão: punha sobre a relva marginada pelo barro aquele pedaço de
madeira, sentava-se à gramínea, e lanceava os insetos que viessem a
cobrir as ogivas pretas e vermelhas, de um modo todo épico, com uns
gestos tais de heroísmo
em que Ulysses
certamente teria se inspirado. Outro de seus brinquedos era o
destacar as penas das galinhas, depois de fornicá-las até o bulício
sangrento do ânus das viúvas – porque os galos eram parte de uma
outra diversão: o quebra-pescoço. Embora fosse miúdo como um rato,
conseguia matar as pobrezinhas semi-voadoras na primeira estocada, e
depois era fácil arrancar das bichinhas as suas penas, única coisa
que sobrava da alma galinácea. Em sua notável ignorância, mais
tarde, para ilustrar as palestras que dava em praças públicas,
referia-se a tais eventos como um “inevitável galicismo de sua
parte”, assim como um dia tratou por gamologia a sua estreita
ligação com o gamão.
Tinha por vizinho apenas um casal que,
embora tivesse uma fazendola, levava uma vida miserável de súdito
dos súditos. Ao casal o garoto mais se aproximava, e mais descobria
afinidades. Apenas uma coisa os separava: a ausência da ganância
deles, o marasmo, o nada a fazer dos dois velhustros e suas caras de
vaca que vê o trem passar, já desiludidos com a vida, que começava
sempre para ele, antes mesmo do galo cantar, ou da galinha carcarear.
Mas havia cabras também.
A despeito da lógica higiênica da
natureza, o garoto crescia, para o dissabor dos cristãos. E tal
dissabor por parte do Cristianismo criava nele um peito estufado de
insurrecto ainda com pescoço, tanto mais que era apontado na rua
como um herege pelas suas façanhas com os pobres animais dos
ranchos, e pelo esquartejamento do latim, e não por defender alguma
laica idéia original. Decerto tinha idéias originais, mas todas
sustentadas pelo ópio, que passou a consumir para compor a pecha dos
intelectuais, quando completara os vinte anos – a idade, única coisa
que conseguia completar na vida –, e que deglutia os seus poucos e
tímidos inícios de neurônios. Dentre essas idéias, uma já poderia
carregar nas costas toda a chusma de pilhérias. Sustentava que a
Terra era ogival e, quando lhe pediam provas, dizia que não as
tinha, porque só ele ouvia os ensinamentos das pedras, afirmação que
lhe custara mais dores nas pernas por conta da perseguição que
sofrera da Igreja, tomada de profunda iracúndia pela “ousadia com
que esse ‘mouro’ tentava parafrasear o maior dos apóstolos”. Então
as pedras falavam e perguntavam. E ele, que a essa altura contava
com uma grande coleção de pedras de todos os tipos, mas nenhuma com
o poder místico para lhe garantir o pão da noite, menos ainda a sopa
do dia, obliterava as inquisições respondendo que sim, claro que
falavam, mas só a ele, dotado do poder da audiologia. Depois de
tanto, ninguém tinha paciência suficiente para perguntar-lhe que
diabos era “audiologia”, pois certamente daria no Anel de Moebius, e
ele então saía-se como esotérico, dado a poucos, só aos iniciados,
ou aos pertinentes na disciplina do conhecimento.
Quando virou um chupista de grande
envergadura, passou a tocar flauta. Como soubesse muito bem encher a
cara – talvez a única coisa que dominava completamente –, davam-lhe
sempre um instrumento à mão, para ver o que saía de um homem num
estado, ou melhor, numa vilazinha de consciência diferente. Muito
cedo constataram que ele tocava flauta. Tocava-a somente. Não
produzia som algum. Assim como tocava bem um copo de aguardente, ou
os livros que encontrava em bibliotecas particulares. O que mais
sabia fazer com os livros era tocá-los, e daí roubá-los. Assim
entrou em contato com o mundo das letras. Primeiro o mundo das
letras, depois o das palavras, cada coisa em sua hora, visto que era
analfabeto.
Certamente lera livros fundamentais para
analfabetos, como algumas cartilhas, e já podia dizer-se
semi-analfabeto, embora insistisse em dizer-se letrado, intelectual,
e até mesmo poliglota. Mas que língua sabia ou achava que sabia,
diante da Torre de Babel daquela época? Nada até então foi
registrado.
Nesses seus desmatamentos pelos livros,
quando estes então mais disseminavam a idéia de antiecológicos que
eram, quando nas mãos do nosso herói, descobrira numa noite de
castiçais o ópio e a poesia! Sim, a poesia lhe surgira sem aviso,
porque talvez lhe assustasse a excelência de tal arte, e então ele
se dispôs a pesquisar o inefável: o sentimento humano deflagrado
pelos versos. Para a tristeza dos seus coetâneos, tornara-se rapsodo,
aedo, trovador, vate, poeta. Deitava a mão sobre os pergaminhos
cobrindo-lhes inteiramente com a palma grosseira, fruto do pulso
repleto de pêlos escuros e poros de diâmetros incalculáveis. Às
vezes conseguia escrever duas palavras, mas no mais das vezes dormia
com a mente cheia de idéias e ópio, o cérebro completamente tatuado.
Mas resignara-se, abnegado que era, e começara a escrever versos.
Versos ocultos, místicos, desses que cobram uma bagatela por
consulta, para dizer o óbvio, versos esotéricos, charlatões, em
cujas pedras, as suas mais cultuadas divindades, eram cantadas sem
medida, senão a da sua desmedida crença na matéria e seus
vaticínios. Tornara-se portanto, um pedreiro, além de poeta, e os
que tiveram acesso aos seus escritos, não raramente lhes convidava
para construir casas, estábulos ou galpões, ficando assim muito
conhecido pelos seus supostos dotes de obreiro, que ao fim e ao
cabo, achou de grande valia aprender.
Quanto mais alcançava a idade futura,
mais fosca ficava a sua pele, o que lhe dava um certo charme de
mouro, mas logo destemperado pelo cabelo pixaim, as ventas
escancaradas e os lábios grosseiros, como duas postas de fígado de
boi. A sua altura de toco, e o seu porte de carroceiro, lhe ajudavam
a sofrer bandos de preconceitos, principalmente quando a tudo isso
se somava o seu hálito de boca dormida. De onde estivesse era
possível reconhecer-lhe o bafo, como o zéfiro ou a brisa do
purgatório.
O certo é que nada disso anulava-lhe o
prenhe desejo pela fama, pelo reconhecimento, dotado que era de
audácia e ousadia, apreendidos – sempre apreendia as coisas, nunca
as aprendia – provavelmente através da falta de perspectiva que a
vida lhe apresentava. Sem perspectiva alguma, conclui-se, pequeno
era o risco, nada perderia porque nada tinha, e então deitava a
aparecer, como penetra ou anti-penetra, em saraus, festas e
celebrações de toda a natureza. E há quem diga que numa dessas
festas aparecera com um monóculo ou pincenez, talvez o
primeiro já visto pela humanidade, e assim tomara o instante com a
sua voz gutural, roubando a atenção dos convivas ao declamar um
poema seu. Os comensais, a princípio assustados com a perspicácia de
um tão evidente sandeu, quando não um deficiente mental, logo depois
se desfizeram em gargalhadas homéricas, justamente por não se tratar
de um Homero. Conta-se que o poema recitado era uma litania de nomes
de pedras, sem um verbo sequer, e se intitulava “Ode a Virgílio”.
O esforço, temperado pela falta de
vergonha e uma coragem incomum para o engodo, não fora de todo vão.
Chegara aos ouvidos do imperador, em meio a gargalhadas e sonoros
arrotos de cerveja preta, a notícia da existência de um homem tão
ínfimo, tão parvo, tão não-sei-pra-quê, que reunia multidões, que
tinham muito o que fazer, em praças públicas e em algumas casas de
ilustres famílias dadas à “chocarrice de um fedelho”. Com a novidade
de que trocavam as palmas por gargalhadas infinitas. E era tão
grande a parvoíce do indivíduo, que recebia como boa moeda, pensando
tratar-se de uma forma muito original de se sensibilizarem com o que
chamava de “a nata do conhecimento ocidental”. O imperador ordenara
aos soldados a captura amistosa da personagem, para uma pacífica
audiência, respeitando assim o seu mais genuíno desejo de
divertir-se um pouco numa entre-safra de guerras.
As buscas foram feitas, e a missão
cumprida com eficiência. Lá estava o vate, sangrando na ilharga, com
os testículos acorrentados aos tornozelos, os joelhos ralados, as
vestes desgarradas e manchadas de sangue, os fundilhos rotos e
carregados de excrementos – talvez os excrementos carregados
daqueles rotos fundilhos –, a boca dividida em três, donde escorria
um líquido perolado vindo das narinas.
O imperador olhou-o de cima a baixo até
secar-lhe os ossos com tamanha frieza. Nada lhe dizia o que não
mandara fazer, aquela violência gratuita que gastava a energia de
seus soldados e as armas recentemente renovadas por um
conceituadíssimo artesão capturado nas Antilhas.
O vate, cabeça pendida, os ossos à
mostra, o sangue correndo, as correntes pesando-lhe na alma, ainda
achou disposição para posar de Messias. Levantou o braço direito,
empostou a mão, empertigando o indicador e o médio, e pediu a
palavra. O imperador concedeu-lhe, não sem antes ordenar aos
soldados que lhe dessem uma chicotada no lombo, mais propriamente
abaixo da dorsal esquerda.
– Majestade, aqui estou à sua
disposição, como o mais devoto súdito deste reino. De modo que nem
mesmo precisavas ordenar aos teus soldados que me buscassem. Não
mereço tamanha honra de os receber. Embora tenhamos nos entendido
muito bem, não queria dar a Vossa Majestade esse trabalho. Mas
cessa-me o desejo de me prolongar com solilóquios. Que ordenas,
Majestade?
O imperador bateu os cílios lentamente,
como batem as asas as gaivotas altaneiras, diante daquela voz saída
de uma velha cafurna, voz tão rouca e embargada, tartamudeada e
chorosa, mas tentando ser-se venturosa e viril, pediu aos soldados
que se afastassem e se pusessem em seus postos, e finalmente, quando
o vate já pedia o conforto do mais áspero dos chãos, respondeu:
– Conte-me uma de suas histórias.
O nosso herói levantou a cabeça de
imediato, sentiu no corpo uma energia nunca antes sentida, viu as
mãos querendo manobrar os ventos novamente, o peito pulsando, o
coração acelerando o seu tempo de pensar, enfim, sentiu a essência
arrebatar-lhe o corpo alquebrado e carcomido pelas horas de tortura
nas mãos dos soldados e nas unhas da vida. Finalmente os seus
poderes reconhecidos, a sua sabedoria consultada, e não por um homem
qualquer, mas pelo imperador! Por um instante não entendeu o motivo
de ter apanhado tanto para depois ser consultado por causa de seu
intelecto desenvolvido. Mas evitou tal idéia, de resto mesquinha, e
deslumbrou-se com o fato de estar onde tantos desejavam estar, onde
muitos morreram por quererem ali estar. Ali, diante de um império,
diante do homem mais poderoso de toda a América, ali desejaria não
estar tão andrajoso, mas aprazivelmente bem vestido, com um gole de
conforto para a língua, do melhor vinho dos pampas, e um tapete
cheirando a rosas desfiladas pelo chão.
Mas ali estava, de todo modo, procurado
por quem mais lhe importava. Enfim, chegara à corte!
– Majestade, tanto tenho para dizer! Mas
serei breve por não
querer brincar com o teu tempo.
Portanto, contarei a história de um poeta que resolveu fazer versos
de setenta e cinco sílabas poéticas...
E assim o nosso herói narrou a vida do
poeta que falava com as pedras, jogava gamão como ninguém, traduzira
poetas gregos aos três anos de idade, e por aí adiante.
Como se era de esperar, recebeu tudo em
boa moeda. Depois das tantas gargalhadas do imperador, garantiu o
pão e o vinho de cada dia ao ser nomeado o mais novo bobo da corte,
título que recebeu com o peito inflado, um peso de quem carrega uma
dezena de medalhas no coração, e lágrimas nos olhos, pelos mais
belos versos jamais recitados no Ocidente.
Estrambote
Um seu coetâneo decidiu escrever um
livro muito peculiar sobre os bruxos da humanidade, e lá se encontra
catalogado o nosso herói, por um fato só pelo autor conhecido: o de
que o vate tivera um sonho sobre a vinda, em 1499, de um homem
branco, de nacionalidade espanhola, que teria aportado no Ceará,
tendo descoberto a foz do Rio Amazonas, e, segundo ainda o sonho do
vate, esse homem voltaria à América do Sul em 1508. O autor completa
o verbete referindo-se ao vate como um visionário, tido por rábula
para alguns, mas para outros, considerado o primeiro espécime de uma
nova civilização.
Henrique Wagner
é poeta e crítico de literatura, autor de As horas do
mundo e A linguagem como estética do pensamento.
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