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«Para enganar os mais sábios»
O Mercador de Veneza, Ricardo
III
(René Girard)
A crítica do Mercador de Veneza tem sido
desde sempre dominada por duas imagens de Shylock aparentemente
inconciliáveis. O meu sentimento é que estas duas imagens fazem parte
integrante da peça e que, longe de a tornar ininteligível, a sua conjunção é
essencial para a compreensão da prática teatral shakespeariana.
A primeira imagem é a do Judeu agiota, imagem
popular do anti-semitismo tradicional e moderno. A simples evocação deste
estereótipo implica a existência de um sistema poderoso de oposições
binárias que não precisa de ser totalmente exposto para se impor ao nosso
olhar. Opõem-se assim: a cupidez judaica e a generosidade cristã, a vingança
e a compaixão, o humor difícil dos velhos e o encanto da juventude, o
obscuro e o luminoso, o belo e o mal parecido, a suavidade e a dureza, o
musical e o discordante, etc.
A segunda imagem é totalmente diferente uma vez
que é dominada pela reciprocidade. Só aparece em segundo lugar quando o
estereótipo já está bem implantado nos nossos espíritos. Não causa a
princípio a impressão mais forte, mas vai-se fortalecendo com a continuação,
à medida que a linguagem e o comportamento das personagens cristãs vêm
confirmar os dizeres breves mas cruciais de Shylock que formulam o substrato
teórico desta segunda perspectiva:
Se vocês nos fizerem
cócegas, não havemos de rir? Se nos envenenarem, não havemos de morrer? E se
nos ultrajarem, não nos vingaremos? Se somos como vocês no resto, também
nisto nos havemos de parecer. Se um Judeu ultrajar um cristão, qual é a
caridade? Vingança. Se um Cristão ultrajar um Judeu, qual deverá ser a sua
paciência segundo o exemplo cristão? Ora bem, a vingança. Essa infâmia que
vocês me ensinam, hei-de pô-la em prática e farei todos os esforços para
ultrapassar os meus mestres.
(III, 1)
O texto chama a atenção para o espírito de
vingança comum a todos os homens; não prepara a «reabilitação» de Shylock no
sentido do revisionismo ingénuo, o qual gostaria pura e simplesmente de
negar a presença do estereótipo anti-semita no Mercador de Veneza. Em
contrapartida, descreve sem equívoco a simetria e a reciprocidade que
governam as relações entre os cristãos e Shylock.
A simetria entre a venalidade explícita de
Shylock e a venalidade implícita dos outros venezianos é certamente
voluntária por parte do autor. A corte que Bassanio faz a Portia é
apresentada como uma operação sobretudo financeira. Quando insiste junto de
António para que este o ajude, Bassanio alude em primeiro lugar à riqueza da
jovem herdeira, depois à sua beleza e em último lugar às suas qualidades de
espírito. Os críticos que idealizam os venezianos fazem como se o próprio
Shakespeare não tivesse introduzido na peça numerosos indícios que
contradizem esse ponto de vista. Não há aqui nada de fortuito, é como
encontrar uma factura na caixa do correio em vez da carta de amor que se
esperava! A cada momento, Shakespeare sublinha as analogias entre a aventura
amorosa de Bassanio e a empresa comercial de António – os seus negócios
marítimos. Testemunha disto é o modo como Gratiano, no regresso de Belmont,
ainda todo excitado com o bom sucesso de Bassanio, se dirige a Salerio:
A vossa mão Salerio… que novas
dais de Veneza?
Como vai esse régio mercador o
bom António?
Eu sei que ele vai ficar feliz
com o nosso êxito.
Nós somos Jasões, conquistámos o
velo.
SALERIO: Quem me dera que
tivessem conquistado o velo que ele perdeu.
(III, 2)
Na verdade foi precisamente o que fizeram
Bassanio e os seus amigos. Mesmo que as perdas de António se revelassem
reais, a conquista de Portia faria mais do que compensar financeiramente os
barcos perdidos pelo mercador veneziano.
Acto III, cena 2: Bassanio que quer recompensar
o seu lugar-tenente pelos seus bons e leais serviços, anuncia a Gratiano e a
Nerissa que estes se casarão ao mesmo tempo que ele próprio e Portia, numa
mesma cerimónia nupcial (financiada, já se vê, por esta última): «a nossa
cerimónia, diz ele, será muito honrada com o vosso casamento», ao que
Gratiano, num transporte de alegria, diz à sua noiva: «Vamos apostar mil
ducados em como fazemos o primeiro rapaz» ( III,2).
Estes jovens têm todas as razões para estarem
contentes: graças à escolha hábil de Bassanio na prova dos cofres, o seu
futuro está, a partir de agora, assegurado e a aposta parece ser inofensiva.
Mas Shakespeare não costuma ter o hábito de propagar palavras inúteis.
Devemos procurar saber a que preocupação respondem estas linhas, qual é o
pensamento latente que elas tornam manifesto. O bebé de Gratiano valerá
então dois mil ducados menos do que a libra de carne de António. Em Veneza a
carne humana e o dinheiro são sempre mais ou menos intercambiáveis. O homem
já não passa de uma mercadoria, um valor de troca entre outros. Não posso
acreditar que a analogia entre a aposta de Gratiano e a libra de carne
exigida por Shylock não seja intencional da parte de Shakespeare.
A libra de carne simboliza o comportamento
veneziano mais do que o judaico, mas os venezianos não se apercebem disso,
pois julgam-se, e em certa medida são-no, realmente diferentes de Shylock.
As considerações financeiras tornaram-se para eles de tal modo naturais e
tão arraigadas no fundo do seu psiquismo que deixaram de ser conscientes;
passam portanto despercebidas. É impossível distinguir nelas um aspecto
distinto do comportamento. Assim, por exemplo, o empréstimo de António a
Bassanio é tratado como um acto de amor, não como uma transacção comercial.
Shylock odeia António pelo facto de que este
empresta dinheiro sem cobrar juros (sem interesse). Agir assim, é a seu ver
estragar o mercado financeiro. Isto pode ser interpretado de acordo com a
imagem antijudaica; podemos ver aqui apenas o ressentimento de um ser
vilmente cúpido em face de uma generosidade cheia de nobreza, mas podemos
também orientar-nos para uma leitura mais subtil. Pode dar-se o caso de que
a generosidade de António esconda uma perversão mais profunda do que a
cupidez caricatural de Shylock. De maneira geral, quando Shylock empresta
dinheiro, é também dinheiro que espera receber, muito mais dinheiro do que o
que emprestou, mas somente dinheiro. O capital é suposto produzir capital.
No espírito de Shylock não há confusão entre operação financeira e caridade
cristã. E é por isso que, ao contrário dos venezianos, ele pode aparecer
como uma encarnação cómica da cupidez.
Veneza é um mundo onde as aparências e a realidade não se dão
bem. De todos os pretendentes à
mão de Portia, Bassanio é o único que faz a escolha acertada entre os três
cofres. Este veneziano subtil sabe de facto até que ponto é preciso
desconfiar dos aspectos exteriores mais rutilantes. Ao contrário dos seus
concorrentes estrangeiros, que vêm segundo parece de países onde as coisas
permanecem mais ou menos conformes à sua aparência (de países, diríamos,
menos avançados que Veneza), Bassanio sente instintivamente que na sua
cidade natal o tesouro procurado por todos os concorrentes há-de apresentar-se sob o aspecto que mais lhe dissimule o valor.
O facto de que, ao contrário dos dois
estrangeiros, ele opte pelo chumbo em vez do ouro ou da prata, tem uma
significação simbólica essencial. Quando os dois pretendentes estendem
avidamente a mão para os dois cofres de metal precioso, tal como faria
Shylock, oferecem, também eles, a imagem da cupidez encarnada; na realidade
antes será ingenuidade o que revelam, enquanto que a Bassanio se pode
censurar muita coisa mas de modo algum o ser ingénuo. Não há nele nada de
mais tipicamente veneziano do que o aparecer como a própria imagem do
desinteresse no preciso momento em que os seus profundos cálculos frutificam
e em que a formidável fortuna de Portia lhe entra no bolso.
A generosidade dos venezianos não é fingida. Ela
torna o beneficiário dependente do benfeitor bem mais do que um empréstimo
usurário de Shylock. Em Veneza reina uma nova forma de vassalagem que não se
baseia em delimitações territoriais precisas, mas em vagos acordos
financeiros. O facto de não se fazerem contas exactas dá à obrigação
pessoal do devedor um carácter infinito. Fica claro que Shylock está longe
de se ter tornado mestre nesta arte paradoxal de subjugar, uma vez que a
própria filha o rouba e o abandona sem sombra de remorso. A elegância do
cenário e a harmonia da música não significam de modo algum que tudo esteja
bem no melhor dos mundos. O mal-estar é, em Veneza, universal, mas
indefinível. Antonio está triste,
mas é incapaz de dizer porquê. Para além do
próprio António, esta tristeza inexplicada caracteriza a aristocracia
veneziana em geral.
E,
de repente, eis que também Shylock começa
a
misturar o dinheiro e os assuntos do coração. Há algo cómico na sua
confusão, uma vez que está longe de ser perfeita e é, consequentemente,
fácil
de descobrir. Os elementos misturados mantêm a especificidade e combatem-se
alegremente no discurso da personagem. Ouvimos coisas do género: «A minha
filha! Ai os meus ducados! Ai a minha filha! / Fugiu com um cristão! Ai os
meus ducados cristãos!» (II, 8) e outros dizeres demasiado ridículos e
reveladores para poderem ser ouvidos na boca de um autêntico veneziano.
Mas há um outro caso em que Shylock mistura as
duas ordens de paixão que normalmente consegue distinguir. Trata-se do
empréstimo concedido a António. Preocupado apenas com a vingança, ou seja
com a mimesis, Shylock não exige nenhum juro (interesse), nenhuma
garantia concreta
— nada, além da infame libra de carne que ele pretende
debitar no corpo do seu devedor, António. Por trás da estranheza quase
mitológica desta exigência, encontramos a interpenetração total das duas
esferas, a financeira e a existencial, à partida menos típica de Shylock do
que dos outros venezianos. Assim sendo, o momento em que Shylock mais
escandaliza os venezianos é aquele em que mais se parece com eles e menos
consigo próprio. O espírito de vingança leva-o a imitar os seus inimigos
mais fielmente do que nunca
—
ao ponto de se tornar o duplo grotesco de
António, ao mesmo tempo que se esforça por lhe dar uma boa lição. É isto que
ele já anunciava no seu texto capital sobre a vingança, e que eu citei em
primeiro lugar.
António e Shylock são descritos como velhos
rivais. Deste género de pessoas costuma dizer-se que «está cada um na sua»,
acampado na sua diferença, mas a expressão é enganadora. Um conflito trágico
(ou cómico) produz sempre uma dissolução paradoxal de tudo aquilo que separa
os antagonistas; paradoxal porque contrária ao objectivo pretendido. Os
indivíduos implicados neste tipo de processo procuram acentuar as suas
diferenças. Em Veneza, como já vimos, cupidez e generosidade, orgulho e
humildade, compaixão e ferocidade, dinheiro e carne humana tendem a
confundir-se. Esta indiferenciação impede que se possa definir o que quer
que seja com precisão e que se possa atribuir uma causa particular a este ou
aquele acontecimento particular. E no entanto é a mesma obsessão que em toda
a parte prevalece: a de exibir e acentuar uma diferença que, na realidade,
cada vez mais se esbate. Assim, Shylock, acto II, cena 5: «Tu vais ver,
vais poder julgar com os teu próprios olhos
/ A diferença entre o velho Shylock e Bassanio». Os cristãos também estão ansiosos por demonstrar que
são diferentes dos judeus. Durante a cena do processo, é a vez do duque
reivindicar a diferença veneziana: «Para que vejas, Shylock a diferença que
há entre as nossas almas…» Até as palavras são as mesmas. Toda a gente fala
ao mesmo tempo de diferença, mas à medida que cresce a obsessão diferencial,
a realidade esvai-se.
Há uma alusão precisa a
este processo de indiferenciação num verso célebre do Mercador de Veneza.
Ao entrar no tribunal, Portia pergunta: «Quem é o Mercador? E quem é o
Judeu» (IV,1). Mesmo não tendo nunca encontrado Shylock, como é que ela pode
hesitar um segundo que seja entre o elegante aristocrata veneziano e o judeu
arquetípico, o horrível usurário semita que nos foi apresentado no primeiro
acto? A prova de que Shakespeare não leva a sua diferença muito a sério é
que ele recorre aqui a uma das suas expressões favoritas no contexto da
crise sacrificial. O
original inglês é: «Which is the Merchant and which is the Jew?»
É muitas vezes sob a forma de
um Which is which que se apresenta a questão da diferença perdida num
naufrágio mimético. Na Noite de Verão, por exemplo, a canção das estações
catastroficamente confundidas acaba na impossibilidade de determinar
which is which. Já na Comédia dos Erros Shakespeare recorre a
esta expressão a propósito dos gémeos impossíveis de distinguir um do outro.
O que constatamos através da linguagem da
«psicologia» pode igualmente exprimir-se em termos religiosos. Em Shylock, a
relação entre o comportamento e o discurso não consegue chegar ao ponto de
se tornar ambígua. Este judeu interpreta a Lei de maneira estreita e
picuinhas, mas não consegue esquecer o que ela distingue e, mesmo quando a
infringe conserva ainda visível a sua marca. Na sua tirada sobre a vingança,
Shylock afirma de maneira negativa uma verdade que os cristãos pretendem
viver de maneira positiva, quando na realidade não respiram senão vingança e
castigo. De facto, a caridade não reina em Veneza, mas está suficientemente
presente nos discursos para poder suscitar efeitos bastante notáveis. A
vingança veneziana, a vingança de Portia revela-se como mais subtil, mais
hábil e felina do que a vingança de Shylock. Os maus cristãos não têm
nenhuma dificuldade em arrasar este adversário, mas continuarão a viver num
mundo «triste» sem saber porquê, um mundo onde até entre a vingança e
caridade se encontra abolida a diferença.
Afinal de contas, não temos de escolher entre
uma imagem favorável e uma imagem desfavorável de Shylock. Os críticos
tradicionais compreenderam-no como uma entidade distinta, uma maneira de ser
caracteristicamente judaica em oposição a uma outra que seria
caracteristicamente cristã. A profundeza do Mercador de Veneza nasce,
na realidade, de uma tensão que opõe entre si não duas imagens estáticas,
mas diversos dados textuais que, num nível superficial,
reforçam e, num nível
mais profundo,
subvertem a ideia de uma diferença insuperável entre judeus e
cristãos.
Por um lado Shylock é descrito como um patife
perfeitamente diferenciado; mas por outro, é ele que nos diz que não há nem
patifes nem heróis, que todos os homens se assemelham, sobretudo quando se
vingam uns dos outros. Todas as diferenças que os separavam até então se
dissolvem na reciprocidade das represálias. Qual é o objectivo de
Shakespeare? Os indícios são demasiado numerosos para que reste alguma
dúvida: o judeu caricatural só ali está para distrair a multidão. Mas a peça
também não é uma crítica moderna do anti-semitismo. Shylock só é reabilitado
na medida em que os cristãos ainda são piores do que ele. A «honestidade»
dos seus vícios faz dele uma personagem quase refrescante face à ferocidade
moralizadora dos venezianos puro-sangue.
A cena do processo revela a implacável
habilidade desta vingança que se arvora em caridade. Nesta estranha paródia
da justiça, o papel da defesa é entregue a António e o da acusação a Shylock.
No final da sessão os papéis invertem-se; Shylock faz figura de culpado e
toda a gente se assanha virtuosamente contra ele. O homem não fez, na
verdade, mal a ninguém. Pelo contrário é a ele que todos os felizes do final
da peça devem a sua felicidade. De facto, sem ele, sem o seu dinheiro, os
dois casamentos não se poderiam ter realizado. Mas quando os seus inimigos
triunfantes regressam a Belmont enriquecidos com um espólio que inclui a
própria filha de Shylock, ainda têm o desplante de se considerarem, em
contraste com o seu miserável adversário, como seres cheios de compaixão e
bondade.
Quando atentamos na sorte injusta reservada a
Shylock, dizemos: é um bode expiatório. Mas a expressão é ambígua. Pode
significar duas coisas muito diferentes. Pode significar que a condenação é
levada a cabo pelas personagens mas que o autor não se lhes associa. A
vítima é inocente e o autor condena os que a condenam. Neste primeiro caso
pode dizer-se que o motivo ou o tema do bode expiatório está presente na
peça em questão. Mesmo que a expressão «bode expiatório» não apareça na
peça, seria possível que aparecesse uma
vez que o conceito lá está.
A ideia de que uma personagem seja um bode
expiatório pode ter um outro sentido. Pode significar que a personagem é
condenada pelo próprio autor, mas, segundo o nosso parecer de leitores
críticos, a condenação é injusta. A multidão que condena a vítima é
apresentada como racional pelo autor
(que na realidade faz parte desta
multidão); a multidão e o autor só são injustos aos olhos do crítico.
Desta feita o bode expiatório está longe de ser
um motivo ou um tema; o fenómeno não é explicitado pelo escritor, mas, caso
as alegações do crítico sejam justas, deve existir na origem da peça um
«efeito de bode expiatório», um efeito com certeza colectivo e no qual o
autor toma parte. O crítico pode considerar, por exemplo, que um dramaturgo
que cria uma personagem como Shylock, decalcada a partir do estereótipo do
agiota judeu, terá de partilhar pessoalmente o anti-semitismo da sociedade
onde este estereótipo está presente.
Quando dizemos simplesmente que tal ou tal
personagem é um bode expiatório, ainda não sabemos com o que estamos a
lidar. E nada avançamos enquanto não especificarmos se se trata do primeiro
ou do segundo sentido, do bode expiatório como tema ou como estrutura, do
bode expiatório como objecto de indignação e sátira para o próprio
Shakespeare, ou como preconceito anti-semita partilhado e sustentado por um
autor cúmplice.
Antes de responder à questão levantada no começo
do capítulo, será conveniente reformulá-la em função deste problema. O
fenómeno do bode expiatório é o sujeito da estrutura dramática elaborada por
Shakespeare, ou é um dos seus objectos, um verdadeiro tema no interior de
uma estrutura diferente? Toda a gente concorda emdizer que Shylock é um
bode expiatório, mas será que ele é o bode expiatório da criação
shakespeariana, a chave do seu «sistema de representação», ou será ele o
bode expiatório dos venezianos somente, tal como Shakespeare os representa
para denunciar a «boa consciência» da sua crueldade?
Para os críticos revisionistas, o bode
expiatório Shylock não é uma força estruturante, mas sim um tema satírico.
Para os tradicionalistas é o contrário. Para estes últimos, quer nos agrade
quer não, Shakespeare é um homem do seu tempo, e a sua peça faz forçosamente
parte do anti-semitismo característico da sociedade elizabetina. Os
ridículos de Shylock mostram-no bem. Não devemos deixar que a nossa devoção
shakespeariana nos cegue quanto a este ponto.
Quanto a mim, penso que,
no Mercador, o
bode expiatório é ao mesmo tempo estrutura e tema e que a peça, pelo menos
sob este ângulo essencial, responde àquilo que o leitor, seja ele qual for,
quiser fazer dela. Se isto é assim, não é porque Shakespeare seja tão vago
como nós quando empregamos a expressão bode expiatório sem lhe
especificar o sentido, mas precisamente pelo contrário: ele domina de tal
modo o carácter paradoxal das reacções miméticas e das atitudes de grupo,
que pode fazer de Shylock um bode expiatório perfeitamente convincente para
os que não querem mais do que ser convencidos, mas, ao mesmo tempo, subverte
o efeito vitimário (sacrificial) através de pinceladas de ironia dirigidas
somente àqueles espectadores que possam compreender. Assim se explica que
ele seja capaz de satisfazer tanto os públicos mais vulgares como os mais
refinados. Aos que não quiserem pôr em causa o seu próprio mito anti-semita,
o Mercador de Veneza, aparecerá sempre como uma confirmação do seu
preconceito. Aos que recusam estas crenças, a recusa do mito por parte do
próprio Shakespeare tornar-se-á evidente. A peça funciona um pouco como um
objecto a rodar continuamente sobre si próprio e que, através de um processo
misterioso, apresentasse sempre ao espectador a face mais favorável ao seu
ponto se vista.
Porque é que se hesita perante esta
possibilidade? Recuamos perante a ideia de que a estrutura do bode
expiatório possa ser ao mesmo tempo subvertida e perpetuada por Shakespeare.
Quando um autor moderno vê a injustiça da perseguição colectiva, assume o
dever de a combater e desencorajar. Tem o dever de denunciá-la abertamente,
explicitamente. Reescrito por um Arthur Miller, um Jean-Paul Sartre ou um
Bertold Brecht, o Mercador seria sem dúvida muito diferente. Mais
diferente seria um Mercador de Veneza que se contentasse com
reflectir o anti-semitismo do ambiente social: se não estiverem convencidos,
comparem a peça de Shakespeare com a de Marlowe, o Judeu de Malta,
esta sim, realmente anti-semita.
Quando examinamos de perto a cena do processo,
deixamos de ter dúvidas acerca do facto de que Shakespeare desfaz os
«efeitos de bode expiatório» tão habilmente como os produz. Há algo
assustador na própria habilidade desta manipulação. Ela supõe uma
compreensão que transcende não somente a eterna ignorância do preconceito,
mas também o moralismo estreito dos seus adversários que não se apercebem da
sua própria participação no inconsciente vitimário nem do seu desejo de
confundir publicamente os perseguidores, ou seja, do seu desejo de vingança
em segundo grau. Não há nada disto na comédia de Shakespeare.
Vejamos como Shakespeare pode sugerir
simultaneamente duas perspectivas incompatíveis. Por muito anti-anti-semitas
que sejam, os espectadores não podem deixar de se sentir aliviados, ou até
rejubilantes, com o fracasso de Shylock. A razão é, claro está, a terrível
ameaça que paira sobre a vida de António, e esta ameaça está completamente
ligada à teimosia sinistra deste judeu, Shylock,
que exige insistentemente a
libra de carne a que tem direito por contrato.
Ora a libra de carne é um tema mítico. É, como
acabei de dizer, o símbolo ou a alegoria de um mundo onde os seres humanos e
o dinheiro são perfeitamente intercambiáveis e nada mais. É possível
imaginar um contexto puramente mítico no qual Shylock cortaria a sua libra
de carne deixando António diminuído, humilhado mas vivo. No Mercador de
Veneza, esse tema é poderosamente inflectido e ensombrado por meio de um
desvio imperceptível em direcção ao realismo moderno. Este desvio consiste
em evocar a violência física da operação e fazer dela uma cirurgia
improvisada ou até uma tarefa de carniceiro da qual é difícil imaginar que
António possa sair vivo. Mas, se este ponto de vista realista é o correcto,
como é que vai ser possível a Shylock, sobretudo em presença de Veneza
inteira, efectuar a dita operação. Se Shylock é suposto conseguir decepar a
sangue frio o corpo de António, esta suposição assenta unicamente no
preconceito. Na sua qualidade de judeu e agiota, passa por ser um homem se
rara ferocidade. É esta ferocidade suposta que se encontra no fundo do
preconceito anti-semita.
Para ser eficaz, Shakespeare sabe-o, uma matança
colectiva tem de ser unânime, e, de facto, nenhuma voz se levanta em favor
de Shylock. A presença dos Magníficos silenciosos, elite da comunidade, dá
ao processo um carácter de unanimidade social. As únicas personagens que não
estão fisicamente presentes são a filha de Shylock e o seu criado, mas não
deixam de estar em uníssono com todos os carrascos: foram os primeiros a
abandonar Shylock, depois de lhe terem roubado o dinheiro. Como uma
autêntica vítima bíblica, Shylock é traído «até pelos da sua própria casa».
Quanto mais indivíduos um efeito vitimário
contamina, mais convincente se torna e, em suma, mais tende para a
unanimidade. Apesar da sua abstrusidade lógica e jurídica, a cena do
processo é dramaticamente eficaz. Os espectadores e os leitores da peça são
«sacudidos» por esta cena e não conseguem deixar de sentir a derrota de
Shylock como a sua própria vitória. A multidão que enche o teatro une-se à
multidão que está no palco e tornam-se uma só multidão. O efeito contagioso
propaga-se junto do público. No Mercador de Veneza, mas também em
muitas outras peças, a catharsis aristotélica é de facto a fabricação
de um bode expiatório.
Enquanto encarnação da justiça veneziana, o
duque deveria mostrar-se imparcial, mas, logo na abertura do processo, ele
exprime o seu desprezo pelo queixoso, e lança-se numa violenta diatribe
contra Shylock:
Tenho muito pena… vieste
responder
A um adversário de pedra, um
desgraçado inumano,
Incapaz de piedade, vazio, sem
O mais pequeno vestígio de
misericórdia.
(IV,1)
Estas palavras dão o tom à cena inteira. A
virtude cristã por excelência, a misericórdia, torna-se aqui a arma
absoluta, capaz de, à sua passagem, reduzir tudo a pó. Os cristãos
utilizam-na de uma maneira tão perversa que ela acaba por lhes justificar a
sede de vingança e a cupidez sem jamais lhes retirar a boa consciência.
Consideram-se quites em relação à misericórdia pelo simples facto de
repetirem a palavra a torto e a direito. A misericórdia deles não tem «nada
de constrangido» ( «The quality of mercy is not strained», IV,1) é o
mínimo que se pode dizer; ela é extraordinariamente desenvolta. Quando o
duque lança com voz severa: «De que misericórdia estás à espera quando não
dás mostras de nenhuma?» (IV,1), Shylock responde-lhe com uma lógica
impecável: «Que sentença posso eu temer se não fiz mal nenhum?» (IV,1).
Shylock confia demasiado na lei veneziana. Como
é que esta pode assentar na misericórdia, como é que pode aparentar-se à
«regra de ouro» evangélica, a partir do momento em que dá aos venezianos o
direito de possuir escravos e nega aos escravos o direito de possuir
venezianos? É o que constata com fineza Shylock. Como não ver que
Shakespeare, tendo fabricado tão habilmente o seu «efeito de bode
expiatório», não se deixa iludir por ele nem sequer um segundo? O jogo duplo
de Shakespeare parece-me indubitável, mas não pode ser submetido a uma
verdadeira demonstração. Se a ironia se pudesse demonstrar, deixaria de ser
ironia. Ela não se pode tornar explícita a ponto de prejudicar a eficácia da
máquina vitimária no espírito dos seus destinatários. A ironia é
forçosamente menos palpável do que o objecto ao qual se aplica.
***
Na breve intervenção de Bassanio durante o
processo, vejo um outro indício do duplo jogo shakespeariano. Assim que
Shylock começa a fraquejar sob o efeito das habilidades de Portia, Bassanio
declara-se pronto a reembolsar o seu credor que está agora disposto a
aceitar esta solução. Desejando acabar rapidamente com a situação
desagradável, Bassanio dá mostras de um pouco de misericórdia, mas Portia
mantém-se inflexível. Sentindo Shylock preso nas garras, espeta-as cada
vez mais profundamente: também ela vai buscar a sua libra de carne. O
compromisso de Bassanio fracassa, mas o facto de ser sugerido naquele
preciso momento é significativo. Shakespeare é um dramaturgo demasiado
esperto para poder desiludir os espectadores nesta conclusão, e a única
vítima satisfatória é Shylock. Mas ele quer também mostrar a injustiça desta
catharsis que as obrigações da sua arte lhe impõem. É por esta razão
que faz os possíveis para que o desfecho humano e razoável seja claramente
formulado algures no interior da peça.
Será que vamos longe de mais, se virmos no bode
expiatório do Mercador de Veneza um tema explícito? Na minha opinião,
de modo algum. O motivo está ali bem visível mas, ironia suprema, não na
boca da verdadeira vítima mas da falsa, António, o qual acredita que foi
feito para desempenhar este papel:
Sou o carneiro marcado do
rebanho,
Sou o que vai morrer. O fruto
mais frágil
É o primeiro a cair: e assim eu
seja.
Não poderás ser mais bem
empregado, Bassanio,
Do que em viver para escrever o
meu epitáfio.
(IV,1)
Será que a minha tese enfraquece pelo facto de
estas palavras serem de António e não de Shylock? Penso que não, uma vez que
o ódio que têm um pelo outro faz deles duplos perfeitos. O ódio
recíproco torna qualquer (re)conciliação impossível (não há nada de
palpável que separe os antagonistas, nenhum problema verdadeiramente
concreto que possa ser arbitrado ou resolvido amigavelmente), mas a indiferenciação gerada por este ódio abre caminho à resolução vitimária, a
única que é susceptível de poder acabar com este tipo de conflito.
Nestes versos. António responde a Bassanio que
acaba de afirmar que jamais deixará o seu amigo e benfeitor morrer em seu
lugar. Antes queria morrer ele mesmo. Nem um nem outro morrerão, claro está,
nem sofrerão o mais pequeno mal. Nesta cidade de Veneza nenhum António nem
nenhum Bassanio sofrerá enquanto houver um Shylock que possa sofrer em vez
deles.
Nesse instante, contudo, António pode
considerar-se como um bode expiatório em gestação. Shakespeare consegue
então designar o mecanismo sobre o qual assenta o drama sem designar directamente a pessoa de Shylock, o «verdadeiro» bode expiatório. Nada mais
shakespeariano do que este deslocamento metafórico (sendo que o bode
expiatório é a própria essência de qualquer deslocamento metafórico). Há
também em António uma certa presunção romântica, uma espécie de satisfação
masoquista. Pode ver-se neste veneziano exemplar o homem da tristeza sem
causa, uma imagem da subjectividade moderna marcada por uma forte tendência
para a autovitimação, quer dizer pela interiorização crescente de um
processo vitimário demasiadamente bem compreendido para que possa
reproduzir-se como acontecimento real no mundo real. O processo vitimário
tende a virar-se contra si próprio e tornar-se uma atitude reflexiva. Donde
acaba por advir este apiedar-se de si próprio, masoquista e teatral, que
anuncia a sensibilidade romântica. Compreende-se assim que António anseie
por ser sacrificado na presença de Bassanio.
A ironia, repito, não é demonstrável e não deve
sê-lo para não perturbar a catharsis daqueles que só apreciam a peça
ao nível catártico. A ironia é anticatártica. Quando a sentimos é num
lampejo de cumplicidade com aquilo que o escritor tem de mais subtil, e em
contraste com a maior e mais rude parte do público que permanece cega a
estas subtilezas. A ironia é a vingança por procuração do escritor contra
uma primeira vingança por procuração. Se a ironia fosse demasiadamente
visível e pudesse ser compreendida por todos, seria contrária ao seu objectivo; já não teria nada para subverter.
***
Haverá quem considere a minha leitura demasiado
«paradoxal». Mas porque
excluir a priori a hipótese de um Shakespeare
extraordinariamente paradoxal? Sobretudo se repararmos que o paradoxo que
afirmamos estar na origem da peça é claramente formulado no seu interior.
Shakespeare continuamente nos diz e torna a dizer que as aparências mais
brilhantes, nomeadamente as da bela linguagem, são:«O semblante de verdade
que envergam os tempos ardilosos / para enganar os mais sábios» (III,2).
Shakespeare escreve também, e não é sem intenção, que destilados por uma
voz que encanta os piores sofismas conseguem decidir um processo a seu
favor e que o comportamento mais irreligioso pode dar-se ares de piedade
se souber empregar as palavras que convêm. Ouçamos com atenção as razões
que Bassanio dá para explicar a sua preferência pelo chumbo em detrimento do
ouro e da prata e veremos que estas definem a perspectiva real do autor
acerca da sua peça:
O mundo deixa-se sempre enganar
pelo ornamento.
Perante a lei, que causa haverá,
por mais suja e corrupta que seja
Que apimentada por uma voz cheia
de graça,
Não esconda a aparência do mal?
Em religião
Que erro danado, que uma fronte
austera
Não bendiga e caucione com um
texto,
Escondendo-lhe a baixeza sob
ricos ornamentos?
Não há vício tão puro que não
mostre
Algum sinal de virtude exterior.
(III,2)
***
A leitura que proponho poderá, creio, encontrar
um reforço se a compararmos com outras peças, nomeadamente com Ricardo
III. Quando Shakespeare escreveu esta tragédia, o rei em questão era
assimilado a um bandido. Shakespeare reproduz a visão popular, sobretudo no
começo. Na primeira cena, Ricardo apresenta-se a si próprio como uma espécie
de monstro. O seu corpo deformado reflecte a fealdade da sua alma,
complacentemente exibida. Encontramos aqui o estereótipo do mau rei, que
releva da instituição monárquica do mesmo modo que o seu contrário, também ritualizado. Este estereótipo tem a sua origem no mecanismo de expulsão
colectiva, devidamente reproduzido por Shakespeare no último acto.
Se esquecermos por um instante o começo e o
desfecho para nos concentrarmos no próprio drama, veremos aparecer uma
imagem diferente de Ricardo. Encontramo-nos num mundo de competição política
sanguinária. Todas as personagens adultas da peça cometeram ou tiraram
partido de pelo menos um homicídio. Segundo Murray
Krieger e Ian Kott, a
guerra das Duas Rosas funciona como um sistema político de rivalidade e
vingança onde os participantes são ora tirano ora vítima, cada qual
comportando-se e exprimindo-se em função do lugar que ocupa em tal ou tal
momento no seio do sistema dinâmico global. Por ser o último anel desta
espiral infernal, Ricardo mata mais gente que os seus antecessores, e fá-lo
mais rapidamente, mas não difere deles fundamentalmente. Para dar maior
presença dramática a toda esta violência recíproca, Shakespeare recorre à
técnica da maldição. Cada uma das personagens passa o tempo a amaldiçoar
todas as outras, e de um modo tão intenso e veemente que a impressão global
é trágica... ou quase cómica, segundo o estado de espírito do espectador.
Todas estas maldições se vão anulando mutuamente até ao momento em que
convergem sobre Ricardo e provocam a sua derrota final, a qual marca também
o regresso da paz.
Duas imagens do rei tendem a dominar
alternativamente a peça, uma fortemente diferenciada, e outra
indiferenciada. No caso do Mercador de Veneza e de Ricardo III,
compreende-se facilmente porquê. Tanto numa peça como na outra, o objectivo
real da sátira não é este ou aquele indivíduo, mas todo um sistema social e
político, Veneza num dos casos, a aristocracia inglesa no outro. Shakespeare
não podia atacar esta última demasiado abertamente. O método que imaginou
permitia-lhe produzir uma sátira indirecta, mas altamente eficaz junto da
elite dos conhecedores — e completamente indetectável pela multidão dos
espectadores comuns, aqueles que não procuram além da catharsis
grosseira que Shakespeare nunca deixa de lhes fornecer.
O grande teatro joga necessariamente com a
diferenciação e a indiferenciação. Para suscitar o interesse do público
popular, as personagens devem ser tais que possamos ora identificar-nos
cegamente com elas ora rejeitá-las com horror. Por outras palavras, é
preciso que sejam muito diferenciadas, mas esta diferenciação é
necessariamente sincrónica e estática. Ora uma peça, para ser boa tem de ser
dinâmica. A dinâmica teatral não é senão a dinâmica dos conflitos humanos, a
reciprocidade das represálias. Quanto mais intenso é o processo, mais a
acção se torna simétrica e mais tudo se torna idêntico de um lado e doutro
do antagonismo descrito pelo dramaturgo.
Para ser boa , uma peça deve assentar tanto
quanto possível na reciprocidade e na indiferenciação, mas é preciso também
que seja extremamente diferenciada sob pena de que os espectadores se
desinteressem pela solução do conflito. Estas duas exigências são
incompatíveis, mas um autor dramático que não satisfaça as duas
simultaneamente não será grande dramaturgo. Produzirá peças demasiado
diferenciadas que qualificaremos de peças de tese, falhas de
dinamismo, ou então peças demasiado indiferenciadas, cheias de acção ou
suspense mas que nos hão-de parecer demasiado pobres em conteúdo moral ou
intelectual para poderem merecer
a nossa atenção.
O bom dramaturgo é aquele que consegue responder
simultaneamente às duas exigências em causa e que aparentemente transcende o
seu carácter contraditório. Como é que ele procede? Em muitos casos, age, ao
que parece, sem saber exactamente o que faz; certamente que escreve com o
mesmo impulso instintivo do espectador quando este se identifica
apaixonadamente com um dos antagonistas. Mesmo que a diferença suposta entre
os dois implique sempre reciprocidade e indiferenciação, a visão que se tem
do conflito tende, ainda assim, a ser estática e diferenciada.
Não é difícil ver que este não era o caso de
Shakespeare. Este dramaturgo está plenamente consciente do hiato que separa
qualquer diferenciação estática do carácter indiferenciado da acção trágica.
As sua peças estão cheias de alusões irónicas a este hiato e Shakespeare,
sem hesitar, escava ainda mais o fosso, como se soubesse que o pode fazer
impunemente. Longe de prejudicar a sua credibilidade de artista criador de
«caracteres», isto não faz senão aumentar o impacto dramático do seu teatro
em geral e tornar cada uma das suas peças naquele objecto dinâmico e
inesgotável que os críticos desde sempre comentam infatigavelmente sem nunca
conseguirem pôr o dedo na verdadeira causa desta ambiguidade.
Ricardo III
é um exemplo desta prática não menos impressionante do que o Mercador de
Veneza. Anne e Elisabeth, as duas mulheres que Ricardo mais fez sofrer,
não conseguem resistir à tentação do poder — ainda que o preço seja uma
aliança com o seu carrasco, logo firmada assim que este, com
cintilações diabólicas, lhes fornece a perspectiva de dominação. Depois de o
ter abundantemente amaldiçoado, libertando-se assim de todas as suas
obrigações morais, Anne pisa literalmente o corpo de seu pai para ir ter com
Ricardo. Um pouco depois, Elisabeth pisa, pelo menos simbolicamente, o
cadáver de dois dos seus filhos com o único objectivo de entregar o terceiro
às mãos sangrentas do assassino.
Estas duas cenas são
estruturalmente muito próximas uma da outra. As duas mulheres são ainda mais
vis do que Ricardo que é a única personagem a reparar e a sublinhar a sua
vileza; então é ele que aparece naquele instante como a única voz moral da
peça. O seu papel, mutatis mutandis, é comparável ao de Shylock
no Mercador de Veneza.
Aqui o verdadeiro génio de Shakespeare consiste
na justaposição de cenas deste tipo. Assim, intensifica a ironia e reforça a
eficácia dramática da peça. Exibindo a vilania dos inimigos de Ricardo,
igual ou até mesmo superior à sua, porque mais hipócrita, Shakespeare
provoca um sentimento incómodo no espectador e submete-o a uma pressão da
qual o espectador se alivia, na maior parte das vezes, por meio de um bode
expiatório, à custa do próprio Ricardo que, evidentemente tudo faz para
agravar a corrupção universal. O nosso apetite de vingança é paradoxalmente
reforçado pela igualdade efectiva que triunfa entre a vítima e os executores
da «justiça» colectiva, os próprios factores que tornam esta expulsão
arbitrária.
Tratando-se de peças como Ricardo III ou
O
Mercador de Veneza, existe, admito, um grande número de leituras possíveis,
e o que determina esta multiplicidade é «o jogo do significante». Em
contrapartida, não creio que este jogo seja gratuito, e que esteja na
própria natureza do significante, enquanto significante, o permitir um tal
«jogo». O significante literário está destinado a tornar-se vítima. É vítima
do significado, pelo menos metaforicamente, no sentido em que o seu «jogo»
ou a sua «différance» (pouco importa o termo) é quase inevitavelmente
sacrificado à unilateralidade de uma estrutura fixa, estilo Lévi-Strauss. O
significante sacrificado desaparece atrás do significado. Esta matança
colectiva do significado encerra uma relação, não tão misteriosa como possa
parecer, com o bode expiatório propriamente dito. Mergulha as suas raízes no
espaço ritual onde o significante principal é uma vítima, não, desta vez,
em sentido metafórico, mas no sentido em que Ricardo ou Shylock são
verdadeiras vítimas. O jogo do significante, arbitrariamente interrompido, e
dando origem a uma estrutura diferenciada, funciona exactamente como o
processo ritual, com a sua indiferenciação conflitual resolvida de repente e regressando, graças à eliminação de uma vítima, à «stase» da
diferenciação. O processo de significação identifica-se à resolução
vitimária da crise na qual todas as significações se dissolvem e depois
renascem, refiro-me à
crise do Degree. O sentido da peça depende do
sentido que damos à perseguição da vítima. Se ali virmos o quanto tem de
arbitrário, apreendemos os efeitos miméticos e acedemos à peça «profunda»,
verdadeiramente shakespeariana. Se não virmos nada disso, ficamo-nos pela
peça superficial e popular.
(Tradução de Sephi Alter)
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