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Nicolau Saião

 

«Para enganar os mais sábios»

 

O Mercador de Veneza, Ricardo III

 

(René Girard)

 

A crítica do Mercador de Veneza tem sido desde sempre dominada por duas imagens de Shylock aparentemente inconciliáveis. O meu sentimento é que estas duas imagens fazem parte integrante da peça e que, longe de a tornar ininteligível, a sua conjunção é essencial para a compreensão da prática teatral shakespeariana.

 

 A primeira imagem é a do Judeu agiota, imagem popular do anti-semitismo tradicional e moderno. A simples evocação deste estereótipo implica a existência de um sistema poderoso de oposições binárias que não precisa de ser totalmente exposto para se impor ao nosso olhar. Opõem-se assim: a cupidez judaica e a generosidade cristã, a vingança e a compaixão, o humor difícil dos velhos e o encanto da juventude, o obscuro e o luminoso, o belo e o mal parecido, a suavidade e a dureza, o musical e o discordante, etc.

 

A segunda imagem é totalmente diferente uma vez que é dominada pela reciprocidade. Só aparece em segundo lugar quando o estereótipo já está bem implantado nos nossos espíritos. Não causa a princípio a impressão mais forte, mas vai-se fortalecendo com a continuação, à medida que a linguagem e o comportamento das personagens cristãs vêm confirmar os dizeres breves mas cruciais de Shylock que formulam o substrato teórico desta segunda perspectiva:

 

Se vocês nos fizerem cócegas, não havemos de rir? Se nos envenenarem, não havemos de morrer? E se nos ultrajarem, não nos vingaremos? Se somos como vocês  no resto, também nisto nos havemos de parecer. Se um Judeu ultrajar um cristão, qual é a caridade? Vingança. Se um Cristão ultrajar um Judeu, qual deverá ser a sua paciência segundo o exemplo cristão? Ora bem, a vingança. Essa infâmia que vocês me ensinam, hei-de pô-la em prática e farei todos os esforços para ultrapassar os meus mestres. (III, 1)

 

O texto chama a atenção para o espírito de vingança comum a todos os homens; não prepara a «reabilitação» de Shylock no sentido do revisionismo ingénuo, o qual gostaria pura e simplesmente de negar a presença do estereótipo anti-semita no Mercador de Veneza. Em contrapartida, descreve sem equívoco a simetria e a reciprocidade que governam as relações entre os cristãos e Shylock.

 

A simetria entre a venalidade explícita de Shylock e a venalidade implícita dos outros venezianos é certamente voluntária por parte do autor. A corte que Bassanio faz a Portia é apresentada como uma operação sobretudo financeira. Quando insiste junto de António para que este o ajude, Bassanio alude em primeiro lugar à riqueza da jovem herdeira, depois à sua beleza e em último lugar às suas qualidades de espírito. Os críticos que idealizam os venezianos fazem como se o próprio Shakespeare não tivesse introduzido na peça numerosos indícios que contradizem esse ponto de vista. Não há aqui nada de fortuito, é como encontrar uma factura na caixa do correio em vez da carta de amor que se esperava! A cada momento, Shakespeare sublinha as analogias entre a aventura amorosa de Bassanio e a empresa comercial de António – os seus negócios marítimos. Testemunha disto é o modo como Gratiano, no regresso de Belmont, ainda todo excitado com o bom sucesso de Bassanio, se dirige a Salerio:

 

A vossa mão Salerio… que novas dais de Veneza?

Como vai esse régio mercador o bom António?

Eu sei que ele vai ficar feliz com o nosso êxito.

Nós somos Jasões, conquistámos o velo.

 

SALERIO: Quem me dera que tivessem conquistado o velo que ele perdeu.

                                                                                           (III, 2)

 

Na verdade foi precisamente o que fizeram Bassanio e os seus amigos. Mesmo que as perdas de António se revelassem reais, a conquista de Portia faria mais do que compensar financeiramente os barcos perdidos pelo mercador veneziano.

 

Acto III, cena 2: Bassanio que quer recompensar o seu lugar-tenente pelos seus bons e leais serviços, anuncia a Gratiano e a Nerissa que estes se casarão ao mesmo tempo que ele próprio e Portia, numa mesma cerimónia nupcial (financiada, já se vê, por esta última): «a nossa cerimónia, diz ele, será muito honrada com o vosso casamento», ao que Gratiano, num transporte de alegria, diz à sua noiva: «Vamos apostar mil ducados em como fazemos o primeiro rapaz» ( III,2).

 

Estes jovens têm todas as razões para estarem contentes: graças à escolha hábil de Bassanio na prova dos cofres, o seu futuro está, a partir de agora, assegurado e a aposta parece ser inofensiva. Mas Shakespeare não costuma ter o hábito de propagar palavras inúteis. Devemos procurar saber a que preocupação respondem estas linhas, qual é o pensamento latente que elas tornam manifesto. O bebé de Gratiano valerá então dois mil ducados menos do que a libra de carne de António. Em Veneza a carne humana e o dinheiro são sempre mais ou menos intercambiáveis. O homem já não passa de uma mercadoria, um valor de troca entre outros. Não posso acreditar que a analogia entre a aposta de Gratiano e a libra de carne exigida por Shylock não seja intencional da parte de Shakespeare.

 

A libra de carne simboliza o comportamento veneziano mais do que o judaico, mas os venezianos não se apercebem disso, pois julgam-se, e em certa medida são-no, realmente diferentes de Shylock. As considerações financeiras tornaram-se para eles de tal modo naturais e tão arraigadas no fundo do seu psiquismo que deixaram de ser conscientes; passam portanto despercebidas. É impossível distinguir nelas um aspecto distinto do comportamento. Assim, por exemplo, o empréstimo de António a Bassanio é tratado como um acto de amor, não como uma transacção comercial.

 

Shylock odeia António pelo facto de que este empresta dinheiro sem cobrar juros (sem interesse). Agir assim, é a seu ver estragar o mercado financeiro. Isto pode ser interpretado de acordo com a imagem antijudaica; podemos ver aqui apenas o ressentimento de um ser vilmente cúpido em face de uma generosidade cheia de nobreza, mas podemos também orientar-nos para uma leitura mais subtil. Pode dar-se o caso de que a generosidade de António esconda uma perversão mais profunda do que a cupidez caricatural de Shylock. De maneira geral, quando Shylock empresta dinheiro, é também dinheiro que espera receber, muito mais dinheiro do que o que emprestou, mas somente dinheiro. O capital é suposto produzir capital. No espírito de Shylock não há confusão entre operação financeira e caridade cristã. E é por isso que, ao contrário dos venezianos, ele pode aparecer como uma encarnação cómica da cupidez.

 

Veneza é um mundo onde as aparências e a realidade não se dão bem. De todos os pretendentes à mão de Portia, Bassanio é o único que faz a escolha acertada entre os três cofres. Este veneziano subtil sabe de facto até que ponto é preciso desconfiar dos aspectos exteriores mais rutilantes. Ao contrário dos seus concorrentes estrangeiros, que vêm segundo parece de países onde as coisas permanecem mais ou menos conformes à sua aparência (de países, diríamos, menos avançados que Veneza), Bassanio sente instintivamente que na sua cidade natal o tesouro procurado por todos os concorrentes há-de apresentar-se sob o aspecto que mais lhe dissimule o valor.

 

O facto de que, ao contrário dos dois estrangeiros, ele opte pelo chumbo em vez do ouro ou da prata, tem uma significação simbólica essencial. Quando os dois pretendentes estendem avidamente a mão para os dois cofres de metal precioso, tal como faria Shylock, oferecem, também eles, a imagem da cupidez encarnada; na realidade antes será ingenuidade o que revelam, enquanto que a Bassanio se pode censurar muita coisa mas de modo algum o ser ingénuo. Não há nele nada de mais tipicamente veneziano do que o aparecer como a própria imagem do desinteresse no preciso momento em que os seus profundos cálculos frutificam e em que a formidável fortuna de Portia lhe entra no bolso.

 

A generosidade dos venezianos não é fingida. Ela torna o beneficiário dependente do benfeitor bem mais do que um empréstimo usurário de Shylock. Em Veneza reina uma nova forma de vassalagem que não se baseia em delimitações territoriais precisas, mas em vagos acordos financeiros. O facto de não se fazerem contas exactas dá à obrigação pessoal do devedor um carácter infinito. Fica claro que Shylock está longe de se ter tornado mestre nesta arte paradoxal de subjugar, uma vez que a própria filha o rouba e o abandona sem sombra de remorso. A elegância do cenário e a harmonia da música não significam de modo algum que tudo esteja bem no melhor dos mundos. O mal-estar é, em Veneza, universal, mas indefinível. Antonio está triste, mas é incapaz de dizer porquê. Para além do próprio António, esta tristeza inexplicada caracteriza a aristocracia veneziana em geral.

 

E, de repente, eis que também Shylock começa a misturar o dinheiro e os assuntos do coração. Há algo cómico na sua confusão, uma vez que está longe de ser perfeita e é, consequentemente, fácil de descobrir. Os elementos misturados mantêm a especificidade e combatem-se alegremente no discurso da personagem. Ouvimos coisas do género: «A minha filha! Ai os meus ducados! Ai a minha filha! / Fugiu com um cristão! Ai os meus ducados cristãos!» (II, 8) e outros dizeres demasiado ridículos e reveladores para poderem ser ouvidos na boca de um autêntico veneziano.

 

Mas há um outro caso em que Shylock mistura as duas ordens de paixão que normalmente consegue distinguir. Trata-se do empréstimo concedido a António. Preocupado apenas com a vingança, ou seja com a mimesis, Shylock não exige nenhum juro (interesse), nenhuma garantia concreta — nada, além da infame libra de carne que ele pretende debitar no corpo do seu devedor, António. Por trás da estranheza quase mitológica desta exigência, encontramos a interpenetração total das duas esferas, a financeira e a existencial, à partida menos típica de Shylock do que dos outros venezianos. Assim sendo, o momento em que Shylock mais escandaliza os venezianos é aquele em que mais se parece com eles e menos consigo próprio. O espírito de vingança leva-o a imitar os  seus inimigos mais fielmente do que nunca ao ponto de se tornar o duplo grotesco de António, ao mesmo tempo que se esforça por lhe dar uma boa lição. É isto que ele já anunciava no seu texto capital sobre a vingança, e que eu citei em primeiro lugar.

 

António e Shylock são descritos como velhos rivais. Deste género de pessoas costuma dizer-se que «está cada um na sua», acampado na sua diferença, mas a expressão é enganadora. Um conflito trágico (ou cómico) produz sempre uma dissolução paradoxal de tudo aquilo que separa os antagonistas; paradoxal porque contrária ao objectivo pretendido. Os indivíduos implicados neste tipo de processo procuram acentuar as suas diferenças. Em Veneza, como já vimos, cupidez e generosidade, orgulho e humildade, compaixão e ferocidade, dinheiro e carne humana tendem a confundir-se. Esta indiferenciação impede que se possa definir o que quer que seja com precisão e que se possa atribuir uma causa particular a este ou aquele acontecimento particular. E no entanto é a mesma obsessão que em toda a parte prevalece: a de exibir e acentuar uma diferença que, na realidade, cada vez mais se esbate. Assim, Shylock, acto II, cena 5: «Tu vais ver, vais poder julgar com os teu próprios olhos / A diferença entre o velho Shylock e Bassanio». Os cristãos também estão ansiosos por demonstrar que são diferentes dos judeus. Durante a cena do processo, é a vez do duque reivindicar a diferença veneziana: «Para que vejas, Shylock a diferença que há entre as nossas almas…» Até as palavras são as mesmas. Toda a gente fala ao mesmo tempo de diferença, mas à medida que cresce a obsessão diferencial, a realidade esvai-se.

 

Há uma alusão precisa a este processo de indiferenciação num verso célebre do Mercador de Veneza. Ao entrar no tribunal, Portia pergunta: «Quem é o Mercador? E quem é o Judeu» (IV,1). Mesmo não tendo nunca encontrado Shylock, como é que ela pode hesitar um segundo que seja entre o elegante aristocrata veneziano e o judeu arquetípico, o horrível usurário semita que nos foi apresentado no primeiro acto? A prova de que Shakespeare não leva a sua diferença muito a sério é que ele recorre aqui a uma das suas expressões favoritas no contexto da crise sacrificial. O original inglês é: «Which is the Merchant and which is the JewÉ muitas vezes sob a forma de um Which is which que se apresenta a questão da diferença perdida num naufrágio mimético. Na Noite de Verão, por exemplo, a canção das estações catastroficamente confundidas acaba na impossibilidade de determinar which is which. Já na Comédia dos Erros Shakespeare recorre a esta expressão a propósito dos gémeos impossíveis de distinguir um do outro.

 

O que constatamos através da linguagem da «psicologia» pode igualmente exprimir-se em termos religiosos. Em Shylock, a relação entre o comportamento e o discurso não consegue chegar ao ponto de se tornar ambígua. Este judeu interpreta a Lei de maneira estreita e picuinhas, mas não consegue esquecer o que ela distingue e, mesmo quando a infringe conserva ainda visível a sua marca. Na sua tirada sobre a vingança, Shylock afirma de maneira negativa uma verdade que os cristãos pretendem viver de maneira positiva, quando na realidade não respiram senão vingança e castigo. De facto, a caridade não reina em Veneza, mas está suficientemente presente nos discursos para poder suscitar efeitos bastante notáveis. A vingança veneziana, a vingança de Portia revela-se como mais subtil, mais hábil e felina do que a vingança de Shylock. Os maus cristãos não têm nenhuma dificuldade em arrasar este adversário, mas continuarão a viver num mundo «triste» sem saber porquê, um mundo onde até entre a vingança e caridade se encontra abolida a diferença.

 

Afinal de contas, não temos de escolher entre uma imagem favorável e uma imagem desfavorável de Shylock. Os críticos tradicionais compreenderam-no como uma entidade distinta, uma maneira de ser caracteristicamente judaica em oposição a uma outra que seria caracteristicamente cristã. A profundeza do Mercador de Veneza nasce, na realidade, de uma tensão que opõe entre si não duas imagens estáticas, mas diversos dados textuais que, num nível superficial, reforçam e, num nível mais profundo, subvertem a ideia de uma diferença insuperável entre judeus e cristãos.

 

Por um lado Shylock é descrito como um patife perfeitamente diferenciado; mas por outro, é ele que nos diz que não há nem patifes nem heróis, que todos os homens se assemelham, sobretudo quando se vingam uns dos outros. Todas as diferenças que os separavam até então se dissolvem na reciprocidade das represálias. Qual é o objectivo de Shakespeare? Os indícios são demasiado numerosos para que reste alguma dúvida: o judeu caricatural só ali está para distrair a multidão. Mas a peça também não é uma crítica moderna do anti-semitismo. Shylock só é reabilitado na medida em que os cristãos ainda são piores do que ele. A «honestidade» dos seus vícios faz dele uma personagem quase refrescante face à ferocidade moralizadora dos venezianos puro-sangue.

 

A cena do processo revela a implacável habilidade desta vingança que se arvora em caridade. Nesta estranha paródia da justiça, o papel da defesa é entregue a António e o da acusação a Shylock. No final da sessão os papéis invertem-se; Shylock faz figura de culpado e toda a gente se assanha virtuosamente contra ele. O homem não fez, na verdade, mal a ninguém. Pelo contrário é a ele que todos os felizes do final da peça devem a sua felicidade. De facto, sem ele, sem o seu dinheiro, os dois casamentos não se poderiam ter realizado. Mas quando os seus inimigos triunfantes regressam a Belmont enriquecidos com um espólio que inclui a própria filha de Shylock, ainda têm o desplante de se considerarem, em contraste com o seu miserável adversário, como seres cheios de compaixão e bondade.

 

Quando atentamos na sorte injusta reservada a Shylock, dizemos: é um bode expiatório. Mas a expressão é ambígua. Pode significar duas coisas muito diferentes. Pode significar que a condenação é levada a cabo pelas personagens mas que o autor não se lhes associa. A vítima é inocente e o autor condena os que a condenam. Neste primeiro caso pode dizer-se que o motivo ou o tema do bode expiatório está presente na peça em questão. Mesmo que a expressão «bode expiatório» não apareça na peça, seria possível que aparecesse uma vez que o conceito lá está.

 

A ideia de que uma personagem seja um bode expiatório pode ter um outro sentido. Pode significar que a personagem é condenada pelo próprio autor, mas, segundo o nosso parecer de leitores críticos, a condenação é injusta. A multidão que condena a vítima é apresentada como racional pelo autor (que na realidade faz parte desta multidão); a multidão e o autor só são injustos aos olhos do crítico.

 

Desta feita o bode expiatório está longe de ser um motivo ou um tema; o fenómeno não é explicitado pelo escritor, mas, caso as alegações do crítico sejam justas, deve existir na origem da peça um «efeito de bode expiatório», um efeito com certeza colectivo e no qual o autor toma parte. O crítico pode considerar, por exemplo, que um dramaturgo que cria uma personagem como Shylock, decalcada a partir do estereótipo do agiota judeu, terá de partilhar pessoalmente o anti-semitismo da sociedade onde este estereótipo está presente.

 

Quando dizemos simplesmente que tal ou tal personagem é um bode expiatório, ainda não sabemos com o que estamos a lidar. E nada avançamos enquanto não especificarmos se se trata do primeiro ou do segundo sentido, do bode expiatório como tema ou como estrutura, do bode expiatório como objecto de indignação e sátira para o próprio Shakespeare, ou como preconceito anti-semita partilhado e sustentado por um autor cúmplice.

 

Antes de responder à questão levantada no começo do capítulo, será conveniente reformulá-la em função deste problema. O fenómeno do bode expiatório é o sujeito da estrutura dramática elaborada por Shakespeare, ou é um dos seus objectos, um verdadeiro tema no interior de uma estrutura diferente? Toda a gente concorda emdizer que Shylock é um bode expiatório, mas será que ele é o bode expiatório da criação shakespeariana, a  chave do seu «sistema de representação», ou será ele o bode expiatório dos venezianos somente, tal como Shakespeare os representa para denunciar a «boa consciência» da sua crueldade?

 

Para os críticos revisionistas, o bode expiatório Shylock não é uma força estruturante, mas sim um tema satírico. Para os tradicionalistas é o contrário. Para estes últimos, quer nos agrade quer não, Shakespeare é um homem do seu tempo, e a sua peça faz forçosamente parte do anti-semitismo característico da sociedade elizabetina. Os ridículos de Shylock mostram-no bem. Não devemos deixar que a nossa devoção shakespeariana nos cegue quanto a este ponto.

 

Quanto a mim, penso que, no Mercador, o bode expiatório é ao mesmo tempo estrutura e tema e que a peça, pelo menos sob este ângulo essencial, responde àquilo que o leitor, seja ele qual for, quiser fazer dela. Se isto é assim, não é porque Shakespeare seja tão vago como nós quando empregamos a expressão bode expiatório sem lhe especificar o sentido, mas precisamente pelo contrário: ele domina de tal modo o carácter paradoxal das reacções miméticas e das atitudes de grupo, que pode fazer de Shylock um bode expiatório perfeitamente convincente para os que não querem mais do que ser convencidos, mas, ao mesmo tempo, subverte o efeito vitimário (sacrificial) através de pinceladas de ironia dirigidas somente àqueles espectadores que possam compreender. Assim se explica que ele seja capaz de satisfazer tanto os públicos mais vulgares como os mais refinados. Aos que não quiserem pôr em causa o seu próprio mito anti-semita, o Mercador de Veneza, aparecerá sempre como uma confirmação do seu preconceito. Aos que recusam estas crenças, a recusa do mito por parte do próprio Shakespeare tornar-se-á evidente. A peça funciona um pouco como um objecto a rodar continuamente sobre si próprio e que, através de um processo misterioso, apresentasse sempre ao espectador a face mais favorável ao seu ponto se vista.

 

Porque é que se hesita perante esta possibilidade? Recuamos perante a ideia de que a estrutura do bode expiatório possa ser ao mesmo tempo subvertida e perpetuada por Shakespeare. Quando um autor moderno vê a injustiça da perseguição colectiva, assume o dever de a combater e desencorajar. Tem o dever de denunciá-la abertamente, explicitamente. Reescrito por um Arthur Miller, um Jean-Paul Sartre ou um Bertold Brecht, o Mercador seria sem dúvida muito diferente. Mais diferente seria um Mercador de Veneza que se contentasse com reflectir o anti-semitismo do ambiente social: se não estiverem convencidos, comparem a peça de Shakespeare com a de Marlowe, o Judeu de Malta, esta sim, realmente anti-semita.

 

Quando examinamos de perto a cena do processo, deixamos de ter dúvidas acerca do facto de que Shakespeare desfaz os «efeitos de bode expiatório» tão habilmente como os produz. Há algo assustador na própria habilidade desta manipulação. Ela supõe uma compreensão que transcende não somente a eterna ignorância do preconceito, mas também o moralismo estreito dos seus adversários que não se apercebem da sua própria participação no inconsciente vitimário nem do seu desejo de confundir publicamente os perseguidores, ou seja, do seu desejo de vingança em segundo grau. Não há nada disto na comédia de Shakespeare.

 

Vejamos como Shakespeare pode sugerir simultaneamente duas perspectivas incompatíveis. Por muito anti-anti-semitas que sejam, os espectadores não podem deixar de se sentir aliviados, ou até rejubilantes, com o fracasso de Shylock. A razão é, claro está, a terrível ameaça que paira sobre a vida de António, e esta ameaça está completamente ligada à teimosia sinistra deste judeu, Shylock, que exige insistentemente a libra de carne a que tem direito por contrato.

 

Ora a libra de carne é um tema mítico. É, como acabei de dizer, o símbolo ou a alegoria de um mundo onde os seres humanos e o dinheiro são perfeitamente intercambiáveis e nada mais. É possível imaginar um contexto puramente mítico no qual Shylock cortaria a sua libra de carne deixando António diminuído, humilhado mas vivo. No Mercador de Veneza, esse tema é poderosamente inflectido e ensombrado por meio de um desvio imperceptível em direcção ao realismo moderno. Este desvio consiste em evocar a violência física da operação e fazer dela uma cirurgia improvisada ou até uma tarefa de carniceiro da qual é difícil imaginar que António possa sair vivo. Mas, se este ponto de vista realista é o correcto, como é que vai ser possível a Shylock, sobretudo em presença de Veneza inteira, efectuar a dita operação. Se Shylock é suposto conseguir decepar a sangue frio o corpo de António, esta suposição assenta unicamente no preconceito. Na sua qualidade de judeu e agiota, passa por ser um homem se rara ferocidade. É esta ferocidade suposta que se encontra no fundo do preconceito anti-semita.

 

Para ser eficaz, Shakespeare sabe-o, uma matança colectiva tem de ser unânime, e, de facto, nenhuma voz se levanta em favor de Shylock. A presença dos Magníficos silenciosos, elite da comunidade, dá ao processo um carácter de unanimidade social. As únicas personagens que não estão fisicamente presentes são a filha de Shylock e o seu criado, mas não deixam de estar em uníssono com todos os carrascos: foram os primeiros a abandonar Shylock, depois de lhe terem roubado o dinheiro. Como uma autêntica vítima bíblica, Shylock é traído «até pelos da sua própria casa».

 

Quanto mais indivíduos um efeito vitimário contamina, mais convincente se torna e, em suma, mais tende para a unanimidade. Apesar da sua abstrusidade lógica e jurídica, a cena do processo é dramaticamente eficaz. Os espectadores e os leitores da peça são «sacudidos» por esta cena e não conseguem deixar de sentir a derrota de Shylock como a sua própria vitória. A multidão que enche o teatro une-se à multidão que está no palco e tornam-se uma só multidão. O efeito contagioso propaga-se junto do público. No Mercador de Veneza, mas também em muitas outras peças, a catharsis aristotélica é de facto a fabricação de um bode expiatório.

 

Enquanto encarnação da justiça veneziana, o duque deveria mostrar-se imparcial, mas, logo na abertura do processo, ele exprime o seu desprezo pelo queixoso, e lança-se numa violenta diatribe contra Shylock:

 

Tenho muito pena… vieste responder

A um adversário de pedra, um desgraçado inumano,

Incapaz de piedade, vazio, sem

O mais pequeno vestígio de misericórdia.

                                                           (IV,1)

 

Estas palavras dão o tom à cena inteira. A virtude cristã por excelência, a misericórdia, torna-se aqui a arma absoluta, capaz de, à sua passagem, reduzir tudo a pó. Os cristãos utilizam-na de uma maneira tão perversa que ela acaba por lhes justificar a sede de vingança e a cupidez sem jamais lhes retirar a boa consciência. Consideram-se quites em relação à misericórdia pelo simples facto de repetirem a palavra a torto e a direito. A misericórdia deles não tem «nada de constrangido» ( «The quality of mercy is not strained», IV,1) é o mínimo que se pode dizer; ela é extraordinariamente desenvolta. Quando o duque lança com voz severa: «De que misericórdia estás à espera quando não dás mostras de nenhuma?» (IV,1), Shylock responde-lhe com uma lógica impecável: «Que sentença posso eu temer se não fiz mal nenhum?» (IV,1).

 

Shylock confia demasiado na lei veneziana. Como é que esta pode assentar na misericórdia, como é que pode aparentar-se à «regra de ouro» evangélica, a partir do momento em que dá aos venezianos o direito de possuir escravos e nega aos escravos o direito de possuir venezianos? É o que constata com fineza Shylock. Como não ver que Shakespeare, tendo fabricado tão habilmente o seu «efeito de bode expiatório», não se deixa iludir por ele nem sequer um segundo? O jogo duplo de Shakespeare parece-me indubitável, mas não pode ser submetido a uma verdadeira demonstração. Se a ironia se pudesse demonstrar, deixaria de ser ironia. Ela não se pode tornar explícita a ponto de prejudicar a eficácia da máquina vitimária no espírito dos seus destinatários. A ironia é forçosamente menos palpável do que o objecto ao qual se aplica.

 

***

 

Na breve intervenção de Bassanio durante o processo, vejo um outro indício do duplo jogo shakespeariano. Assim que Shylock começa a fraquejar sob o efeito das habilidades de Portia, Bassanio declara-se pronto a reembolsar o seu credor que está agora disposto a aceitar esta solução. Desejando acabar rapidamente com a situação desagradável, Bassanio dá mostras de um pouco de misericórdia, mas Portia mantém-se inflexível. Sentindo Shylock preso nas garras, espeta-as cada vez mais profundamente: também ela vai buscar a sua libra de carne. O compromisso de Bassanio fracassa, mas o facto de ser sugerido naquele preciso momento é significativo. Shakespeare é um dramaturgo demasiado esperto para poder desiludir os espectadores nesta conclusão, e a única vítima satisfatória é Shylock. Mas ele quer também mostrar a injustiça desta catharsis que as obrigações da sua arte lhe impõem. É por esta razão que faz os possíveis para que o desfecho humano e razoável seja claramente formulado algures no interior da peça.

 

Será que vamos longe de mais, se virmos no bode expiatório do Mercador de Veneza um tema explícito? Na minha opinião, de modo algum. O motivo está ali bem visível mas, ironia suprema, não na boca da verdadeira vítima mas da falsa, António, o qual acredita que foi feito para desempenhar este papel:

 

Sou o carneiro marcado do rebanho,

Sou o que vai morrer. O fruto mais frágil

É o primeiro a cair: e assim eu seja.

Não poderás ser mais bem empregado, Bassanio,

Do que em viver para escrever o meu epitáfio.

                                                (IV,1)

 

Será que a minha tese enfraquece pelo facto de estas palavras serem de António e não de Shylock? Penso que não, uma vez que o ódio que têm um pelo outro faz deles duplos perfeitos. O ódio recíproco torna qualquer (re)conciliação impossível (não há nada de palpável que separe os antagonistas, nenhum problema verdadeiramente concreto que possa ser arbitrado ou resolvido amigavelmente), mas a indiferenciação gerada por este ódio abre caminho à resolução vitimária, a única que é susceptível de poder acabar com este tipo de conflito.

 

Nestes versos. António responde a Bassanio que acaba de afirmar que jamais deixará o seu amigo e benfeitor morrer em seu lugar. Antes queria morrer ele mesmo. Nem um nem outro morrerão, claro está, nem sofrerão o mais pequeno mal. Nesta cidade de Veneza nenhum António nem nenhum Bassanio sofrerá enquanto houver um Shylock que possa sofrer em vez deles.

 

Nesse instante, contudo, António pode considerar-se como um bode expiatório em gestação. Shakespeare consegue então designar o mecanismo sobre o qual assenta o drama sem designar directamente a pessoa de Shylock, o «verdadeiro» bode expiatório. Nada mais shakespeariano do que este deslocamento metafórico (sendo que o bode expiatório é a própria essência de qualquer deslocamento metafórico). Há também em António uma certa presunção romântica, uma espécie de satisfação masoquista. Pode ver-se neste veneziano exemplar o homem da tristeza sem causa, uma imagem da subjectividade moderna marcada por uma forte tendência para a autovitimação, quer dizer pela interiorização crescente de um processo vitimário demasiadamente bem compreendido para que possa reproduzir-se como acontecimento real no mundo real. O processo vitimário tende a virar-se contra si próprio e tornar-se uma atitude reflexiva. Donde acaba por advir este apiedar-se de si próprio, masoquista e teatral, que anuncia a sensibilidade romântica. Compreende-se assim que António anseie por ser sacrificado na presença de Bassanio.

 

A ironia, repito, não é demonstrável e não deve sê-lo para não perturbar a catharsis daqueles que só apreciam a peça ao nível catártico. A ironia é anticatártica. Quando a sentimos é num lampejo de cumplicidade com aquilo que o escritor tem de mais subtil, e em contraste com a maior e mais rude parte do público que permanece cega a estas subtilezas. A ironia é a vingança por procuração do escritor contra uma primeira vingança por procuração. Se a ironia fosse demasiadamente visível e pudesse ser compreendida por todos, seria contrária ao seu objectivo; já não teria nada para subverter.

 

***

 

Haverá quem considere a minha leitura demasiado «paradoxal». Mas porque excluir a priori a hipótese de um Shakespeare extraordinariamente paradoxal? Sobretudo se repararmos que o paradoxo que afirmamos estar na origem da peça é claramente formulado no seu interior. Shakespeare continuamente nos diz e torna a dizer que as aparências mais brilhantes, nomeadamente as da bela linguagem, são:«O semblante de verdade que envergam os tempos ardilosos / para enganar os mais sábios» (III,2). Shakespeare escreve também, e não é sem intenção, que destilados por uma voz que encanta os piores sofismas conseguem decidir um processo a seu favor e que o comportamento mais irreligioso pode dar-se ares de piedade se souber empregar as palavras que convêm. Ouçamos com atenção as razões que Bassanio dá para explicar a sua preferência pelo chumbo em detrimento do ouro e da prata e veremos que estas definem a perspectiva real do autor acerca da sua peça:

 

O mundo deixa-se sempre enganar pelo ornamento.

Perante a lei, que causa haverá, por mais suja e corrupta que seja

Que apimentada por uma voz cheia de graça,

Não esconda a aparência do mal? Em religião

Que erro danado, que uma fronte austera

Não bendiga e caucione com um texto,

Escondendo-lhe a baixeza sob ricos ornamentos?

Não há vício tão puro que não mostre

Algum sinal de virtude exterior.

                                                         (III,2)

 

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A leitura que proponho poderá, creio, encontrar um reforço se a compararmos com outras peças, nomeadamente com Ricardo III. Quando Shakespeare escreveu esta tragédia, o rei em questão era assimilado a um bandido. Shakespeare reproduz a visão popular, sobretudo no começo. Na primeira cena, Ricardo apresenta-se a si próprio como uma espécie de monstro. O seu corpo deformado reflecte a fealdade da sua alma, complacentemente exibida. Encontramos aqui o estereótipo do mau rei, que releva da instituição monárquica do mesmo modo que o seu contrário, também ritualizado. Este estereótipo tem a sua origem no mecanismo de expulsão colectiva, devidamente reproduzido por Shakespeare no último acto.

 

Se esquecermos por um instante o começo e o desfecho para nos concentrarmos no próprio drama, veremos aparecer uma imagem diferente de Ricardo. Encontramo-nos num mundo de competição política sanguinária. Todas as personagens adultas da peça cometeram ou tiraram partido de pelo menos um homicídio. Segundo Murray Krieger e Ian Kott, a guerra das Duas Rosas funciona como um sistema político de rivalidade e vingança onde os participantes são ora tirano ora vítima, cada qual comportando-se e exprimindo-se em função do lugar que ocupa em tal ou tal momento no seio do sistema dinâmico global. Por ser o último anel desta espiral infernal, Ricardo mata mais gente que os seus antecessores, e fá-lo mais rapidamente, mas não difere deles fundamentalmente. Para dar maior presença dramática a toda esta violência recíproca, Shakespeare recorre à técnica da maldição. Cada uma das personagens passa o tempo a amaldiçoar todas as outras, e de um modo tão intenso e veemente que a impressão global é trágica... ou quase cómica, segundo o estado de espírito do espectador. Todas estas maldições se vão anulando mutuamente até ao momento em que convergem sobre Ricardo e provocam a sua derrota final, a qual marca também o regresso da paz.

 

Duas imagens do rei tendem a dominar alternativamente a peça, uma fortemente diferenciada, e outra indiferenciada. No caso do Mercador de Veneza e de Ricardo III, compreende-se facilmente porquê. Tanto numa peça como na outra, o objectivo real da sátira não é este ou aquele indivíduo, mas todo um sistema social e político, Veneza num dos casos, a aristocracia inglesa no outro. Shakespeare não podia atacar esta última demasiado abertamente. O método que imaginou permitia-lhe produzir uma sátira indirecta, mas altamente eficaz junto da elite dos conhecedores — e completamente indetectável pela multidão dos espectadores comuns, aqueles que não procuram além da catharsis grosseira que Shakespeare nunca deixa de lhes fornecer.

 

O grande teatro joga necessariamente com a diferenciação e a indiferenciação. Para suscitar o interesse do público popular, as personagens devem ser tais que possamos ora identificar-nos cegamente com elas ora rejeitá-las com horror. Por outras palavras, é preciso que sejam muito diferenciadas, mas esta diferenciação é necessariamente sincrónica e estática. Ora uma peça, para ser boa tem de ser dinâmica. A dinâmica teatral não é senão a dinâmica dos conflitos humanos, a reciprocidade das represálias. Quanto mais intenso é o processo, mais a acção se torna simétrica e mais tudo se torna idêntico de um lado e doutro do antagonismo descrito pelo dramaturgo.

 

Para ser boa , uma peça deve assentar tanto quanto possível na reciprocidade e na indiferenciação, mas é preciso também que seja extremamente diferenciada sob pena de que os espectadores se desinteressem pela solução do conflito. Estas duas exigências são incompatíveis, mas um autor dramático que não satisfaça as duas simultaneamente não será grande dramaturgo. Produzirá peças demasiado diferenciadas que qualificaremos de peças de tese, falhas de dinamismo, ou então peças demasiado indiferenciadas, cheias de acção ou suspense mas que nos hão-de parecer demasiado pobres em conteúdo moral ou intelectual para poderem merecer a nossa atenção.

 

O bom dramaturgo é aquele que consegue responder simultaneamente às duas exigências em causa e que aparentemente transcende o seu carácter contraditório. Como é que ele procede? Em muitos casos, age, ao que parece, sem saber exactamente o que faz; certamente que escreve com o mesmo impulso instintivo do espectador quando este se identifica apaixonadamente com um dos antagonistas. Mesmo que a diferença suposta entre os dois implique sempre reciprocidade e indiferenciação, a visão que se tem do conflito tende, ainda assim, a ser estática e diferenciada.

 

Não é difícil ver que este não era o caso de Shakespeare. Este dramaturgo está plenamente consciente do hiato que separa qualquer diferenciação estática do carácter indiferenciado da acção trágica. As sua peças estão cheias de alusões irónicas a este hiato e Shakespeare, sem hesitar, escava ainda mais o fosso, como se soubesse que o pode fazer impunemente. Longe de prejudicar a sua credibilidade de artista criador de «caracteres», isto não faz senão aumentar o impacto dramático do seu teatro em geral e tornar cada uma das suas peças naquele objecto dinâmico e inesgotável que os críticos desde sempre comentam infatigavelmente sem nunca conseguirem pôr o dedo na verdadeira causa desta ambiguidade.

 

Ricardo III é um exemplo desta prática não menos impressionante do que o Mercador de Veneza. Anne e Elisabeth, as duas mulheres que Ricardo mais fez sofrer, não conseguem resistir à tentação do poder — ainda que o preço seja uma aliança com o seu carrasco, logo firmada assim que este, com cintilações diabólicas, lhes fornece a perspectiva de dominação. Depois de o ter abundantemente amaldiçoado, libertando-se assim de todas as suas obrigações morais, Anne pisa literalmente o corpo de seu pai para ir ter com Ricardo. Um pouco depois, Elisabeth pisa, pelo menos simbolicamente, o cadáver de dois dos seus filhos com o único objectivo de entregar o terceiro às mãos sangrentas do assassino.

 

Estas duas cenas são estruturalmente muito próximas uma da outra. As duas mulheres são ainda mais vis do que Ricardo que é a única personagem a reparar e a sublinhar a sua vileza; então é ele que aparece naquele instante como a única voz moral da peça. O seu papel, mutatis mutandis, é comparável ao de Shylock no Mercador de Veneza.

 

Aqui o verdadeiro génio de Shakespeare consiste na justaposição de cenas deste tipo. Assim, intensifica a ironia e reforça a eficácia dramática da peça. Exibindo a vilania dos inimigos de Ricardo, igual ou até mesmo superior à sua, porque mais hipócrita, Shakespeare provoca um sentimento incómodo no espectador e submete-o a uma pressão da qual o espectador se alivia, na maior parte das vezes, por meio de um bode expiatório, à custa do próprio Ricardo que, evidentemente tudo faz para agravar a corrupção universal. O nosso apetite de vingança é paradoxalmente reforçado pela igualdade efectiva que triunfa entre a vítima e os executores da «justiça» colectiva, os próprios factores que tornam esta expulsão arbitrária.

 

Tratando-se de peças como Ricardo III ou O Mercador de Veneza, existe, admito, um grande número de leituras possíveis, e o que determina esta multiplicidade é «o jogo do significante». Em contrapartida, não creio que este jogo seja gratuito, e que esteja na própria natureza do significante, enquanto significante, o permitir um tal «jogo». O significante literário está destinado a tornar-se vítima. É vítima do significado, pelo menos metaforicamente, no sentido em que o seu «jogo» ou a sua «différance» (pouco importa o termo) é quase inevitavelmente sacrificado à unilateralidade de uma estrutura fixa, estilo Lévi-Strauss. O significante sacrificado desaparece atrás do significado. Esta matança colectiva do significado encerra uma relação, não tão misteriosa como possa parecer, com o bode expiatório propriamente dito. Mergulha as suas raízes no espaço ritual onde o significante principal é uma vítima, não, desta vez, em sentido metafórico, mas no sentido em que Ricardo ou Shylock são verdadeiras vítimas. O jogo do significante, arbitrariamente interrompido, e dando origem a uma estrutura diferenciada, funciona exactamente como o processo ritual, com a sua indiferenciação conflitual resolvida de repente e regressando, graças à eliminação de uma vítima, à «stase» da diferenciação. O processo de significação identifica-se à resolução vitimária da crise na qual todas as significações se dissolvem e depois renascem, refiro-me à crise do Degree. O sentido da peça depende do sentido que damos à perseguição da vítima. Se ali virmos o quanto tem de arbitrário, apreendemos os efeitos miméticos e acedemos à peça «profunda», verdadeiramente shakespeariana. Se não virmos nada disso, ficamo-nos pela peça superficial e popular.

 

(Tradução de Sephi Alter)

 

 

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