A
POESIA DE THIAGO MARTINS PRADO ENTRE A LUZ E A SOMBRA
(Gilfrancisco*)
O escritor F.R. Leavis, em “Novas
tendências da poesia inglesa”, publicado em 1938, no qual o autor
faz um estudo interessante e detalhado sobre a poesia de Thomas
Stearns Eliot (1888-1965), grande gênio poético que influenciou e
marcou a poesia universal contemporânea, começa o livro afirmando
que “A poesia pouco interessa ao mundo contemporâneo”. Este último,
em “A utilidade da poesia e da crítica”, escrevera cinco anos antes:
“De certo que a poesia não deva ser definida pelo seu emprego. Se
comemorar um acontecimento público ou celebra uma data festiva, se
ornamenta um rito religioso ou diverte um auditório, tanto melhor.
Pode operar revoluções na sensibilidade que periodicamente se tornam
necessárias; pode contribuir para o rompimento de modas
convencionais de percepção e apreciação de valores que continuamente
se estão a formar, permitindo às pessoas encararem o mundo com novos
olhos ou descobrirem nele novas facetas. De tempo em tempo, a poesia
pode-nos tornar mais conscientes dos mais profundos sentimentos
anônimos que constituem o substrato da nova maneira de ser, e no
qual raramente penetramos; porque as novas vidas são em grande parte
uma evasão constante de nós próprios e uma evasão do mundo visível e
sensível.”
Nesta última frase de Eliot, encontra-se
a resposta à afirmação de Leavis. De fato, se a poesia consegue
dar-nos esta profunda consciência dos novos sentimentos, terá
atingido a sua finalidade, interessando um número de pessoas
influenciadas, mesmo que seja relativamente pequeno. Portanto, “A
reutilização das pedras”, como toda boa poesia, é para poucos, mas
esses poucos, se bem contabilizados, talvez sejam muitos. Não há
qualquer necessidade de justificar a posição do poeta no mundo
moderno. A sua voz, apesar de ser freqüentemente uma voz baixa e
silente, não deixa de ser dotada de um poder de penetrabilidade e
duma insistência que não estão em relação com as leis usuais de
propaganda ou da publicidade.
Portanto, estamos com certeza diante de
um intérprete desse tempo, transformador do próprio tempo, dos
espaços e da vida em material poético. Nada escapa ao crivo de sua
reflexão, que se rende poeticamente para vislumbrar o porvir, aos
ritmos ternos, ásperos e rudes dos versos sinfônicos espelho de toda
paisagem do livro; como conseqüência natural dessa atitude,
pressupõe-se um eu-poético distanciado. De ressonâncias imprevistas
e sonoridades escondidas, “A reutilização das pedras” pertence a um
projeto de livro maior; é o segundo de uma série de seis que
reconduzem as interpretações sobre a memória.
Descartando disfarces e brilhos fáceis,
o autor constrói um alerta que abomina o óbvio: o destino do homem
cheio de espantos que persegue por toda sua existência. De um lado,
seu pensamento liberto viaja pela infinitude do cosmo; de outro, sua
memória é uma âncora que o prende as coisas de sua existência
terrena. É em torno desse tema que evolui “A reutilização das
pedras”, onde as facetas mais óbvias da vida se fundiram: sua
condição de poeta (vem confirmar seu espaço poético na literatura
sergipana) com absoluto domínio de seus meios e a paixão pela
literatura greco-latina, que nutriu desde menino e aprofundou por
ter sido graduado e mestre no curso de Letras. Tais eventos
contribuíram para que sua linguagem levasse a enriquecer o livro com
sua seleção vocabular, com a recorrência de palavras que percorre
todo o livro, dando ao mesmo sustentação e unidade.
Grata surpresa terá o leitor de “A
reutilização das pedras”, de Thiago Martins Prado, - 2º colocado no
Prêmio “Santo Souza, Poemas”, 2005, realizado pelo governo do Estado
de Sergipe, através da Secretaria do Estado da Cultura, - ao entrar
em contato com os versos místicos e simples que estão em suas
..... páginas. É um livro que fascina e surpreende, do primeiro
ao último verso, por diversas razões que aqui tentaremos analisar.
Escrito em suas mais profundas vísceras, este livro pungente é
dolorosa ascese. Nele, o poeta Thiago Martins Prado reanalisa a
trajetória da memória já empreendida em seu primeiro livro “A
inutilidade das (p)arcas”, dialogando e rebatendo as idéias deste.
Após quatro anos sem publicar poesia
(seu último livro “A inutilidade das (p)arcas”, Secretaria da
Cultura e Turismo; Fundação Cultural do Estado e Empresa Gráfica da
Bahia, através do selo “As Letras da Bahia”, 2002), intervalo que
foi preenchido pela pesquisa para dissertação de Mestrado “Linguagem
e Temporalidade na poesia de Mário Jorge”, trabalho original,
construído com metodologia adequada e tem o mérito de trazer à luz a
figura do poeta sergipano Mário Jorge (1946-1973), Thiago Martins
Prado retorna a cena literária com “A reutilização das pedras”.
Os poemas são frutos da reflexão que
brotam das profundezas – não de um cristalino mar -, mas da memória
e de antigas emoções. E os resultados são poemas habilmente
construídos, focalizando sua luz e sua sombra, numa segurança
artesanal/expressional. Esses cantares de amor e abismo desenvolvem
e cristalizam procedimentos próprios do autor, cujos assuntos
focalizados ganham um equilíbrio e profundidade à medida que o poeta
atinge o seu melhor momento de poesia; conciso e mais fluente, a
qualidade melódica de cada verso apresenta uma dicção segura, firme,
serena, a contrastar curiosamente com o tema desenvolvido.
A força poética de Thiago Martins Prado
é baseada na musical, lembrando o poema uma sonata em seis
andamentos. Há a mesma repetição dos motivos e uma mistura constante
de temas, precisamente como uma composição musical, sendo a
atmosfera a mesma. A beleza inédita e estranha de “A reutilização
das pedras” dá-nos primeiramente a idéia de fragmentação e uma
confusão de idéias, contudo um exame mais atento revela-nos a
reserva e retraimento que o jovem poeta imprimiu à sua obra. Não
saem da memória os versos de abertura:
E, mesmo sendo uma pedra
Abandonada à beira duma
qualquer lagoa,
Elas três vieram
Como os seus renovados
cachos-sementes.
Reuniram-se em torno de
mim,
Mesmo sendo uma pedra,
E os sulcos das suas
peles foram desaparecendo.
Círculos múltiplos de
três
Redistribuindo os
ciprestes, os frutos, as flores,
Frenéticas danças de
histéricas relembradas diversas crianças.
O livro, dividido em seis partes,
apresenta, em cada uma delas, epígrafes de poetas sergipanos como
Enoch Santiago Filho, Santo Souza, Maria Lúcia Dal Farra, Marcos
Vieira, Garcia Rosa e Mário Jorge como uma retomada de motivos
literários mistos que a arte sergipana já versou. Vejamos estes:
Reminiscências clássicas – Nessa
primeira parte, o clássico apresenta-se por meio de inscrições que
são simbolizadas pelas pedras como uma reutilização de ruínas
culturais. Aqui o autor fala da permanência do clássico na vida
atual, como, por exemplo, o poema “Recordação Icárica”, e da
eternidade dele em qualquer época, como, por exemplo, “A
reutilização das parcas”. Note como Thiago Martins Prado
reinterpreta o mito do destino referindo-se às parcas, entidades da
mitologia greco-romana responsáveis pelo traçado da vida dos homens,
indicando a permanência de um sentido renovado do clássico.
Deixaram-me ainda à beira
daquela lagoa,
Pois sou uma pedra,
Permaneço no contínuo
espaço dos seus inevitáveis retornos.
Mineralizantes – Aqui são
cobrados do homem a serenidade, a dureza e a eternidade das fontes
minerais para que ele possa refazer suas próprias memórias
ancestrais. A mudez das pedras dá uma lição substanciosa de
sabedoria ao homem, que, por meio da linguagem, tenta capturar seus
atributos.
Braços, inquebráveis
extensões de bronze.
Pensamentos, pedestais de
móveis armaduras.
Remonumentalizar – Tal verbo
significa reconstruir a memória individual (resistência), coletiva
(antítese aos mestres) ou memórias seqüestradas (ductilidade). A
seção “Antíteses aos mestres” representa um dos pontos mais
magistrais do livro realizando releituras de poemas consagrados da
literatura sergipana. “Quase canção para embalar José”, “Menino
insone” e “Pássaro de pedra e sono”, de Santo Souza, “Nós acendemos
estrelas”, de José Sampaio, e “O marginauta”, de Mário Jorge, são
alguns dos poemas relidos pela ótica da pedra. Ótica essa que aponta
o oposto complementar de cada uma dessas poesias agora revividas.
Observe a justa homenagem que Thiago Martins Prado presta ao poeta
Santo Souza, misturando a memória de sua vivência pessoal com a
memória da cultura sergipana.
Uma visão anunciava o
findar da infância. Olhos azuis
Da cor do céu entoavam
melódicas canções em inglês,
Vanessa: Blue eyes. Baby-sky. Blue eyes. Coração contraído.
Nós
Inventados: paixão e
insegurança (portas da poesia).
Um sábio de Riachuelo, com
um estilo antigo, comovia.
Eu, um homem tentando ser
santo sem ter sido José;
Aracaju emprestando cores
às crianças anacrônicas.
Vigilantes Condicionais – Nesta
quarta parte, o poeta Thiago Martins Prado enfoca o aspecto da
convivência com a autocensura. Ou seja, trata da adequação ou
deformação das construções das memórias que rodeiam os
comportamentos e atitudes humanas:
Perguntará se isto
deformado é você
(Seus amigos a suspender
páginas em seu caminho),
Se isso foi seu
(Sua filha a reclamar
abrigos no escuro dos bosques),
Se algum dia aquilo já
lhe pertencera
(Seus amantes voltando a
ativar antigas luas presenciadas).
Ritualizáveis – Os rituais são a
representação da passagem do tempo enfocando o amadurecimento de um
indivíduo no meio de uma sociedade. Nessa seção, a construção da
passagem do tempo é simbolizada pela eleição de rituais pessoais
para que o homem controle seu próprio amadurecimento. Através do
disfarce da linguagem do sagrado, o homem busca amadurecer suas
vontades e seus desejos, fortalecendo-se entre rituais originais por
ele criados e rituais desgastados por ele reinterpretados.
Armo fúnebres poços de querosene.
Os seus famintos ímpetos por chegar a
mim
Ou em me negar
– Caminhares em desequilíbrio –
São a mordida atordoante e ardente do
meu desejo.
Finalizando a última parte, o autor
coloca duas percepções opostas sobre a arte: a arte como farsa e a
arte como revelação. O título do último bloco O Peso dos disfarces
advém da conseqüência em cegar o caráter revelador da arte,
transformando-a apenas em elemento da farsa. Ou seja, é uma
sinalização dada àqueles que não apontam a arte como instrumento da
verdade; esses acabarão sendo punidos por uma maldição. Dessa
dualidade, o poeta decide apresentar a dimensão reveladora da arte
elegendo a pedra como símbolo desse aprendizado. Observe os versos
do poema final do livro:
Pois a pedra fora tudo,
E também seria a chave da Passagem.
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