Home Poesia Prosa Traduções Colaborações Arquivo Contatos

Bem-vindo à homepage de Renato Suttana.

Nicolau Saião

 

A POESIA DE THIAGO MARTINS PRADO ENTRE A LUZ E A SOMBRA

 

(Gilfrancisco*)

 

O escritor F.R. Leavis, em “Novas tendências da poesia inglesa”, publicado em 1938, no qual o autor faz um estudo interessante e detalhado sobre a poesia de Thomas Stearns Eliot (1888-1965), grande gênio poético que influenciou e marcou a poesia universal contemporânea, começa o livro afirmando que “A poesia pouco interessa ao mundo contemporâneo”. Este último, em “A utilidade da poesia e da crítica”, escrevera cinco anos antes: “De certo que a poesia não deva ser definida pelo seu emprego. Se comemorar um acontecimento público ou celebra uma data festiva, se ornamenta um rito religioso ou diverte um auditório, tanto melhor. Pode operar revoluções na sensibilidade que periodicamente se tornam necessárias; pode contribuir para o rompimento de modas convencionais de percepção e apreciação de valores que continuamente se estão a formar, permitindo às pessoas encararem o mundo com novos olhos ou descobrirem nele novas facetas. De tempo em tempo, a poesia pode-nos tornar mais conscientes dos mais profundos sentimentos anônimos que constituem o substrato da nova maneira de ser, e no qual raramente penetramos; porque as novas vidas são em grande parte uma evasão constante de nós próprios e uma evasão do mundo visível e sensível.”

 

Nesta última frase de Eliot, encontra-se a resposta à afirmação de Leavis. De fato, se a poesia consegue dar-nos esta profunda consciência dos novos sentimentos, terá atingido a sua finalidade, interessando um número de pessoas influenciadas, mesmo que seja relativamente pequeno. Portanto, “A reutilização das pedras”, como toda boa poesia, é para poucos, mas esses poucos, se bem contabilizados, talvez sejam muitos. Não há qualquer necessidade de justificar a posição do poeta no mundo moderno. A sua voz, apesar de ser freqüentemente uma voz baixa e silente, não deixa de ser dotada de um poder de penetrabilidade e duma insistência que não estão em relação com as leis usuais de propaganda ou da publicidade.

 

Portanto, estamos com certeza diante de um intérprete desse tempo, transformador do próprio tempo, dos espaços e da vida em material poético. Nada escapa ao crivo de sua reflexão, que se rende poeticamente para vislumbrar o porvir, aos ritmos ternos, ásperos e rudes dos versos sinfônicos espelho de toda paisagem do livro; como conseqüência natural dessa atitude, pressupõe-se um eu-poético distanciado. De ressonâncias imprevistas e sonoridades escondidas, “A reutilização das pedras” pertence a um projeto de livro maior; é o segundo de uma série de seis que reconduzem as interpretações sobre a memória.

 

Descartando disfarces e brilhos fáceis, o autor constrói um alerta que abomina o óbvio: o destino do homem cheio de espantos que persegue por toda sua existência. De um lado, seu pensamento liberto viaja pela infinitude do cosmo; de outro, sua memória é uma âncora que o prende as coisas de sua existência terrena. É em torno desse tema que evolui “A reutilização das pedras”, onde as facetas mais óbvias da vida se fundiram: sua condição de poeta (vem confirmar seu espaço poético na literatura sergipana) com absoluto domínio de seus meios e a paixão pela literatura greco-latina, que nutriu desde menino e aprofundou por ter sido graduado e mestre no curso de Letras. Tais eventos contribuíram para que sua linguagem levasse a enriquecer o livro com sua seleção vocabular, com a recorrência de palavras que percorre todo o livro, dando ao mesmo sustentação e unidade.

 

Grata surpresa terá o leitor de “A reutilização das pedras”, de Thiago Martins Prado, - 2º colocado no Prêmio “Santo Souza, Poemas”, 2005, realizado pelo governo do Estado de Sergipe, através da Secretaria do Estado da Cultura, - ao entrar em contato com os versos místicos e simples que estão em suas .....   páginas.  É um livro que fascina e surpreende, do primeiro ao último verso, por diversas razões que aqui tentaremos analisar. Escrito em suas mais profundas vísceras, este livro pungente é dolorosa ascese. Nele,  o poeta Thiago Martins Prado reanalisa a trajetória da memória já empreendida em seu primeiro livro “A inutilidade das (p)arcas”, dialogando e rebatendo as idéias deste.

 

Após quatro anos sem publicar poesia (seu último livro “A inutilidade das (p)arcas”, Secretaria da Cultura e Turismo; Fundação Cultural do Estado e Empresa Gráfica da Bahia, através do selo “As Letras da Bahia”, 2002), intervalo que foi preenchido pela pesquisa para dissertação de Mestrado “Linguagem e Temporalidade na poesia de Mário Jorge”, trabalho original, construído com metodologia adequada e tem o mérito de trazer à luz a figura do poeta sergipano Mário Jorge (1946-1973), Thiago Martins Prado retorna a cena literária com “A reutilização das pedras”.

 

Os poemas são frutos da reflexão que brotam das profundezas – não de um cristalino mar -, mas da memória e de antigas emoções. E os resultados são poemas habilmente construídos, focalizando sua luz e sua sombra, numa segurança artesanal/expressional.  Esses cantares de amor e abismo desenvolvem e cristalizam procedimentos próprios do autor, cujos assuntos focalizados ganham um equilíbrio e profundidade à medida que o poeta atinge o seu melhor momento de poesia; conciso e mais fluente, a qualidade melódica de cada verso apresenta uma dicção segura, firme, serena, a contrastar curiosamente com o tema desenvolvido.

 

A força poética de Thiago Martins Prado é baseada na musical, lembrando o poema uma sonata em seis andamentos. Há a mesma repetição dos motivos e uma mistura constante de temas, precisamente como uma composição musical, sendo a atmosfera a mesma. A beleza inédita e estranha de “A reutilização das pedras” dá-nos primeiramente a idéia de fragmentação e uma confusão de idéias, contudo um exame mais atento revela-nos a reserva e retraimento que o jovem poeta imprimiu à sua obra. Não saem da memória os versos de abertura:

 

            E, mesmo sendo uma pedra

            Abandonada à beira duma qualquer lagoa,

            Elas três vieram

            Como os seus renovados cachos-sementes.

 

            Reuniram-se em torno de mim,

            Mesmo sendo uma pedra,

            E os sulcos das suas peles foram desaparecendo.

            Círculos múltiplos de três

            Redistribuindo os ciprestes, os frutos, as flores,

            Frenéticas danças de histéricas relembradas diversas crianças.

 

O livro, dividido em seis partes, apresenta, em cada uma delas, epígrafes de poetas sergipanos como Enoch Santiago Filho, Santo Souza, Maria Lúcia Dal Farra, Marcos Vieira, Garcia Rosa e Mário Jorge como uma retomada de motivos literários mistos que a arte sergipana já versou. Vejamos estes:

 

Reminiscências clássicas –  Nessa primeira parte, o clássico apresenta-se por meio de inscrições que são simbolizadas pelas pedras como uma reutilização de ruínas culturais. Aqui o autor fala da permanência do clássico na vida atual, como, por exemplo, o poema “Recordação Icárica”, e da eternidade dele em qualquer época, como, por exemplo, “A reutilização das parcas”. Note como Thiago Martins Prado reinterpreta o mito do destino referindo-se às parcas, entidades da mitologia greco-romana responsáveis pelo traçado da vida dos homens, indicando a permanência de um sentido renovado do clássico.

 

          Deixaram-me ainda à beira daquela lagoa,

          Pois sou uma pedra,

          Permaneço no contínuo espaço dos seus inevitáveis retornos.

 

Mineralizantes Aqui são cobrados do homem a serenidade, a dureza e a eternidade das fontes minerais para que ele possa refazer suas próprias memórias ancestrais. A mudez das pedras dá uma lição substanciosa de sabedoria ao homem, que, por meio da linguagem, tenta capturar seus atributos.

 

            Braços, inquebráveis extensões de bronze.

           Pensamentos, pedestais de móveis armaduras.

 

Remonumentalizar – Tal verbo significa reconstruir a memória individual (resistência), coletiva (antítese aos mestres) ou memórias seqüestradas (ductilidade). A seção “Antíteses aos mestres” representa um dos pontos mais magistrais do livro realizando releituras de poemas consagrados da literatura sergipana. “Quase canção para embalar José”, “Menino insone” e “Pássaro de pedra e sono”, de Santo Souza, “Nós acendemos estrelas”, de José Sampaio, e “O marginauta”, de Mário Jorge, são alguns dos poemas relidos pela ótica da pedra. Ótica essa que aponta o oposto complementar de cada uma dessas poesias agora revividas. Observe a justa homenagem que Thiago Martins Prado presta ao poeta Santo Souza, misturando a memória de sua vivência pessoal com a memória da cultura sergipana.

 

            Uma visão anunciava o findar da infância. Olhos azuis

           Da cor do céu entoavam melódicas canções em inglês,

            Vanessa: Blue eyes. Baby-sky. Blue eyes. Coração contraído. Nós

            Inventados: paixão e insegurança (portas da poesia).

           Um sábio de Riachuelo, com um estilo antigo, comovia.

           Eu, um homem tentando ser santo sem ter sido José;

           Aracaju emprestando cores às crianças anacrônicas.           

 

Vigilantes Condicionais – Nesta quarta parte, o poeta Thiago Martins Prado enfoca o aspecto da convivência com a autocensura. Ou seja, trata da adequação ou deformação das construções das memórias que rodeiam os comportamentos e atitudes humanas:

 

            Perguntará se isto deformado é você

            (Seus amigos a suspender páginas em seu caminho),

            Se isso foi seu

            (Sua filha a reclamar abrigos no escuro dos bosques),

            Se algum dia aquilo já lhe pertencera

            (Seus amantes voltando a ativar antigas luas presenciadas).

 

Ritualizáveis – Os rituais são a representação da passagem do tempo enfocando o amadurecimento de um indivíduo no meio de uma sociedade. Nessa seção, a construção da passagem do tempo é simbolizada pela eleição de rituais pessoais para que o homem controle seu próprio amadurecimento. Através do disfarce  da linguagem do sagrado, o homem busca amadurecer suas vontades e seus desejos, fortalecendo-se entre rituais originais por ele criados e rituais desgastados por ele reinterpretados.

 

Armo fúnebres poços de querosene.

Os seus famintos ímpetos por chegar a mim

Ou em me negar

 –  Caminhares em desequilíbrio –

São a mordida atordoante e ardente do meu desejo.

 

 Finalizando a última parte, o autor coloca duas percepções opostas sobre a arte: a arte como farsa e a arte como revelação. O título do último bloco O Peso dos disfarces advém da conseqüência em cegar o caráter revelador da arte, transformando-a apenas em elemento da farsa. Ou seja, é uma sinalização dada àqueles que não apontam a arte como instrumento da verdade; esses acabarão sendo punidos por uma maldição. Dessa dualidade, o poeta decide apresentar a dimensão reveladora da arte elegendo a pedra como símbolo desse aprendizado. Observe os versos do poema final do livro:

 

            Pois a pedra fora tudo,

E também seria a chave da Passagem.


 


*Jornalista, pesquisador e professor universitário. Autor de “Gregório de Matos: o boca de todos os santos”, “Crônicas e poemas recolhidos de Sosígenes Costa” e “Flor em Rochedo Rubro: Enoch Santiago Filho”.

 

Retorna ao topo da página

Outros escritos de Gilfrancisco