O POETA SOSÍGENES COSTA
(Gilfrancisco*)
Ler Sosígenes Costa é beber numa das
mais belas fontes humanas de conhecimentos e sentimentos, cujo
talento está em sua capacidade excepcional de nos envolver
totalmente no mundo que cria. É leve, elegante e extremamente
revelador. Sua produção poética, uma espécie de álbum de fotografias
de sua afetividade, na realidade "um álbum irresistível", uma busca
inconsciente e involuntária da verdade que se opõe.
Na verdade, sobre o poeta ainda sabemos
muito pouco. Vamos à obra. Sosígenes Costa nos seduz pelo canto e
pela palavra. Palavra que invade a si mesma, o outro e o mundo, à
medida que constrói o real, a segui-lo na aventura do "autoconhecimento".
Um poeta do nosso tempo, nosso tempo partido, da partida
humanização.
O poeta grapriúna legou-nos uma obra
poética que ainda hoje perturba e se impõe pelo arrojo com que soube
criar o seu verbo próprio e inconfundível. É ele a história de uma
alma que sofria por coisas estranhas e requintadas, sobretudo pela
tão estranha sensibilidade, só poderia dar-nos versos estranhos e,
antes de tudo, impressionantemente belos.
Muito já se disse sobre o fato de ter
usado de linguagem nova, rebuscada, sem preocupar em renovar as
formas tradicionais de que se servia. Uma alma tão tragicamente sem
suporte, incapaz de se adaptar a um meio onde se considerava
intruso, inadaptado, lutando para não se perder, para se encontrar e
construir sua realidade, numa transfiguração das coisas, numa
alucinante e alucinatória viagem, num delírio de cores.
A pureza e elegância dos versos diz
respeito à temática, visto que seu itinerário poético, os mitos que
se entrelaçam começam na infância temporal, situada e datada em
Belmonte, cidade do seu apego sentimental, e a ela dedicou seu único
livro publicado em vida, mesmo depois de abandoná-la aos 25 anos de
idade, para nunca mais voltar.
Entre estas características, no tocante
à forma, estruturação e linguagem, se insere também o desejo de não
conseguir objetivar eficientemente, e essa ânsia de subjetividade em
desvendar, essa inquietude de saber, nos leva a uma esfera mágica
num reino de sombras, de transformação dos elementos e de
aprisionamento.
Sosígenes Marinho Costa nasceu a 14 de
novembro de 1901, em Belmonte, cidade litorânea da zona do cacau no
sul da Bahia, onde fez os primeiros estudos e seria mais tarde
mestre-escola, e lá viveu até 1926, quando se transferiu para
Ilhéus, onde passou a maior parte da vida, vivendo sem ser
percebido, e escreveu quase toda a sua obra.
Sosígenes trabalhou na Associação
Comercial, foi redator do Diário da Tarde-Ilhéus, fundado em 10 de
fevereiro de 1928, dirigido por Carlos M. Monteiro, no qual iniciou
desde o primeiro número uma coluna diária, intitulada Diário de
Sósmacos, assinada com o pseudônimo de Príncipe Azul, a qual
permaneceu até março de 1929.
Aposentando-se em 1954 como telegrafista
do DCT – Departamento de Correios e Telégrafos –, passou a residir
no Rio de Janeiro, época em que participou, em Buenos Aires, de um
Congresso de Cultura, e no ano seguinte viajou à Europa e à Ásia,
demorando-se na China.
Seus poemas começam a aparecer
ocasionalmente em jornais e revistas a partir de 1922, em pleno
fervor modernista; e, motivado pela literatura, ligou-se mais tarde
ao grupo modernista de Pinheiro Viegas (1865-1937), Academia dos
Rebeldes, da qual faziam parte Alves Ribeiro, Clovis Amorim,
Dias da Costa, Da Costa Andrade, E. Assemany, Édison Carneiro,
Guilherme Dias Gomes, Jorge Amado, José Bastos, José Evangelista
Oliveira, João Cordeiro, Otávio Moura, Walter da Silveira, dentre
outros, que tentavam renovar a literatura baiana ao lado dos grupos
de Samba e Arco & Flexa.
A influência da época em sua poesia pode
ser constatada aqui e ali, a começar pela adoção do soneto, uma
forma que fora destruída estrofe por estrofe, verso por verso, pelos
revolucionários de 22. Sosígenes Costa confessa que somente em 1930
conseguiu ler vários números atrasados da Klaxon, revista
modernista dirigida por Mário de Andrade, visto que ele
encontrava-se longe, "isolado" dos centros irradiadores da revolução
modernista.
A modernidade é uma das marcas de sua
arte poética desta fase, apesar de não ser um poeta militante, em
termos de avaliação das suas idéias e do seu significado, da sua
experiência ficcional dentro do modernismo baiano, e ainda está por
ser levantada toda a sua contribuição.
Sobre ele, disse o crítico Agripino
Grieco (1888-1973), um dos mais atuantes desde o Pré-Modernismo:
"Um dos melhores poetas do norte do
país é Sosígenes Costa. Solteirão, esquisito. O vocábulo
‘cegonhento’ apesar de um pouco preciso, como que foi fabricado para
ele. Está no mundo com um ar de pernalta pensante. Funcionário dos
Telégrafos e escriturário de uma associação comercial, desforra-se
dos seus magríssimos ordenados em esbanjamentos poéticos de
pedrarias e sedas, como raros dos seus confrades se permitem. Na
imaginação desse asceta há sempre um pecaminoso rumor de saias
proibidas. Qualquer mulher se lhe afigura ‘princesa, atriz e gata’.
Vinga-se do seu isolamento e da sua imobilidade em visões como as
não tiveram Sardanapalo e Sindbad o Marítimo. Recorda sempre os
belos dias que passou em Belmonte e fala dessa cidadezinha do
interior da Bahia como se falasse do Oriente, acendendo todas as
gambiarras, fazendo faiscar todas as ourivesarias, compondo todas as
decorações florais. É um admirável ornamentista de frades.
Modernista, ainda crê na rima rica e um excesso de luz que lhe torna
certas passagens obscuras, numa espécie de névoa de ouro. Esse filho
da roça pensa nas Vênus de Paris e alude constantemente a pavões e
castelos. Sente-se perdido numa Taiti que fosse cheia de duquesas
enjoalhadas pelo francês Lalique. Muito justo o que escreveu dele,
em famoso artigo, Édison Carneiro, especialmente ao acentuar que
Sosígenes transfigura tudo isso, em matéria nossa sente tudo isso
brasileirissimamente. Ainda meio simbolista, diz-se ele ‘pagem da
Musa e príncipe da Morte’, mas é um panteísta bem vivo ao
inebriar-se na gama de amarelos do sol dos trópicos. Sua amada tem
‘trinta anéis de pérolas ovais’, mas o seu noturno de Ilhéus a
‘descrição’, é algo de bem contemporâneo".[1][1]
Arredio à publicidade, tímido e
acanhado, nunca quis reunir sua produção em livro, mas, devido à
insistência de amigos, consentiu que fosse reunida parte desta
produção poética (noventa e nove poemas), que finalmente aparece em
1959.
[2][2]
Apesar da pequena edição de mil
exemplares e mal distribuída, hoje raríssima, mesmo assim obteve
dois prêmios literários, um no Rio de Janeiro (Paula Brito) e outro
em São Paulo (Jabuti), que mereceu vários artigos louváveis.
Sosígenes Costa é o mais estranho de
todos os poetas baianos, um poeta tranqüilo na aparência, infenso a
exterioridades, mas profundamente inquieto no fazer literário.
Possuía uma maneira toda peculiar de compor e transmitir sua visão
de mundo e do ser humano, dando-nos uma lição de coerência aliada a
uma profunda sensibilidade, fruto do amor que transborda em toda sua
produção. Um jogo bem elaborado para recriar um momento que fica,
utilizando-se de palavras-chaves que se intercomunicam, ou seja,
cada palavra tem um peso, um volume, uma medida justa.
O poeta traça um quadro lírico-amargo de
um mundo mitológico entre dois mundos antagônicos, ao mesmo tempo em
que amplia seu universo ficcional, mantendo uma fidelidade
inarredável com o folclore baiano, como os temas bíblicos, que pode
ser rasteada através da totalidade de sua obra.
Antes de tudo, Sosígenes Costa é um
poeta moderno, onde a poesia baiana completa sua perfeita evolução
histórica, do simbolismo ao modernismo, com seus "Sonetos Pavônicos",
todos rigorosamente rimados e metrificados, com reminiscências
parnasianas, mas sobretudo com um discreto traço simbolista, onde,
através do disfarce simbólico, transluz a figura cúmplice dos
êxtases, dos dores de amores do poeta.
Apesar de possuir uma obra reduzida,
nela se traduz como em poucas a perplexidade e a angústia de um
poeta que legou ao patrimônio de nossas letras. Na verdade, sua
poesia, tal como ele via, moderna, sofrida, vivida com o ardor e a
paixão de quem pouco sobreviveria neste mundo, lhe assegurou
permanência entre os maiores poetas brasileiros.
Por ser uma poesia ainda muito pouco
conhecida e que raramente aparece em antologias, o poeta grapiúna
continua desconhecido da crítica mais alerta ou do leitor de poesia
mais bem informado. Seus versos versam motivos do folclore afro, do
folclore brasileiro, misturando temas bíblicos e históricos,
tratando com habilidade o recurso da linguagem coloquial.
Sosígenes revela em sua obra uma
preocupação com o homem em sociedade. Ainda antes de ter livro
publicado, seus poemas esparsos por jornais e revistas serviram como
motivo para vários artigos como: Um Poeta com P maiúsculo
[3][3]
; Um Poeta
[4][4]
e Sosígenes Costa, de Édison Carneiro, que se utilizou do
longo poema “Negro Sereio”, de 1932, no livro Religiões Negras.
[5][5]
Sua poesia se tornou mais difundida e
admirada com a publicação dos livros Obra Poética, edição
revista e ampliada, acrescentando setenta novos poemas,
[6][6]
Pavão, Parlenda, Paraíso (uma
tentativa de descrição crítica da poesia de Sosígenes Costa)[7][7]
e finalmente a publicação do
longo poema narrativo escrito em 1933, Iararana
[8][8],
livro que se filia à mesma linha primitivista de Macunaima
(1928), de Mário de Andrade, e Cobra Norato (1931), de Raul
Bopp. A edição de Iararana é enriquecida com um texto de
Jorge Amado e com ilustrações especiais, do artista plástico,
Aldemir Martins.
Sua obra sem nenhuma dúvida a melhor, a
mais viva, uma das mais belas, com poemas nos quais a terra se impôs
com vigor, esplendor, uma verdade que raramente encontramos na
poesia brasileira. Por fim, renovação, maturidade e maestria formam
uma constelação pavônica da obra sosigenesiana, pela passagem dos 41
anos de sua publicação em livro, que continua desafiando leitores e
críticos, numa simbiose altamente criadora, e 32 anos de sua morte,
a 5 de novembro de 1968, no Rio de Janeiro.
Bibliografia de Sosígenes Costa
Obra Poética. Rio, Leitura, 1959
(Desta primeira edição foram tirados 200 exemplares em papel
westerpost, fora do comércio e numerados pelo autor).
Obra Poética. São Paulo, Cultrix
/ INL (Edição Aumentada), 1978. (Texto de José Paulo Paes)
Iararana. São Paulo, Cultrix,
1979. (Desta primeira edição foi feita uma tiragem especial de mil e
cem exemplares numerados, fora do comércio, dos quais mil reservados
à Compahia Produtora de Alimentos e cem à Editora Cultrix – Texto de
José Paulo Paes e Jorge Amado)
Crônicas & Poemas Recolhidos de
Sosígenes Costa. Fundação Cultural de Ilhéus, 2001. (Textos:
Gilfrancisco e Hélio Pólvora)
Poesia Completa. Salvador,
Conselho Estadual de Cultura, 2001. (Textos: Valdomiro Santana, José
Paulo Paes e Hélio Pólvora)
Leia também
Sosígenes Costa: Novos textos esparsos
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