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Nicolau Saião, Mariana 1

 

O POETA SOSÍGENES COSTA

 

(Gilfrancisco*)

 

 

Ler Sosígenes Costa é beber numa das mais belas fontes humanas de conhecimentos e sentimentos, cujo talento está em sua capacidade excepcional de nos envolver totalmente no mundo que cria. É leve, elegante e extremamente revelador. Sua produção poética, uma espécie de álbum de fotografias de sua afetividade, na realidade "um álbum irresistível", uma busca inconsciente e involuntária da verdade que se opõe.

 

Na verdade, sobre o poeta ainda sabemos muito pouco. Vamos à obra. Sosígenes Costa nos seduz pelo canto e pela palavra. Palavra que invade a si mesma, o outro e o mundo, à medida que constrói o real, a segui-lo na aventura do "autoconhecimento". Um poeta do nosso tempo, nosso tempo partido, da partida humanização.

 

O poeta grapriúna legou-nos uma obra poética que ainda hoje perturba e se impõe pelo arrojo com que soube criar o seu verbo próprio e inconfundível. É ele a história de uma alma que sofria por coisas estranhas e requintadas, sobretudo pela tão estranha sensibilidade, só poderia dar-nos versos estranhos e, antes de tudo, impressionantemente belos.

 

Muito já se disse sobre o fato de ter usado de linguagem nova, rebuscada, sem preocupar em renovar as formas tradicionais de que se servia. Uma alma tão tragicamente sem suporte, incapaz de se adaptar a um meio onde se considerava intruso, inadaptado, lutando para não se perder, para se encontrar e construir sua realidade, numa transfiguração das coisas, numa alucinante e alucinatória viagem, num delírio de cores.

 

A pureza e elegância dos versos diz respeito à temática, visto que seu itinerário poético, os mitos que se entrelaçam começam na infância temporal, situada e datada em Belmonte, cidade do seu apego sentimental, e a ela dedicou seu único livro publicado em vida, mesmo depois de abandoná-la aos 25 anos de idade, para nunca mais voltar.

 

Entre estas características, no tocante à forma, estruturação e linguagem, se insere também o desejo de não conseguir objetivar eficientemente, e essa ânsia de subjetividade em desvendar, essa inquietude de saber, nos leva a uma esfera mágica num reino de sombras, de transformação dos elementos e de aprisionamento.

 

Sosígenes Marinho Costa nasceu a 14 de novembro de 1901, em Belmonte, cidade litorânea da zona do cacau no sul da Bahia, onde fez os primeiros estudos e seria mais tarde mestre-escola, e lá viveu até 1926, quando se transferiu para Ilhéus, onde passou a maior parte da vida, vivendo sem ser percebido, e escreveu quase toda a sua obra.

 

Sosígenes trabalhou na Associação Comercial, foi redator do Diário da Tarde-Ilhéus, fundado em 10 de fevereiro de 1928, dirigido por Carlos M. Monteiro, no qual iniciou desde o primeiro número uma coluna diária, intitulada Diário de Sósmacos, assinada com o pseudônimo de Príncipe Azul, a qual permaneceu até março de 1929.

 

Aposentando-se em 1954 como telegrafista do DCT – Departamento de Correios e Telégrafos –, passou a residir no Rio de Janeiro, época em que participou, em Buenos Aires, de um Congresso de Cultura, e no ano seguinte viajou à Europa e à Ásia, demorando-se na China.

 

Seus poemas começam a aparecer ocasionalmente em jornais e revistas a partir de 1922, em pleno fervor modernista; e, motivado pela literatura, ligou-se mais tarde ao grupo modernista de Pinheiro Viegas (1865-1937), Academia dos Rebeldes, da qual faziam parte  Alves Ribeiro, Clovis Amorim, Dias da Costa, Da Costa Andrade, E. Assemany, Édison Carneiro, Guilherme Dias Gomes, Jorge Amado, José Bastos, José Evangelista Oliveira, João Cordeiro, Otávio Moura, Walter da Silveira, dentre outros, que tentavam renovar a literatura baiana ao lado dos grupos de Samba e Arco & Flexa.

 

A influência da época em sua poesia pode ser constatada aqui e ali, a começar pela adoção do soneto, uma forma que fora destruída estrofe por estrofe, verso por verso, pelos revolucionários de 22. Sosígenes Costa confessa que somente em 1930 conseguiu ler vários números atrasados da Klaxon, revista modernista dirigida por Mário de Andrade, visto que ele encontrava-se longe, "isolado" dos centros irradiadores da revolução modernista.

 

A modernidade é uma das marcas de sua arte poética desta fase, apesar de não ser um poeta militante, em termos de avaliação das suas idéias e do seu significado, da sua experiência ficcional dentro do modernismo baiano, e ainda está por ser levantada toda a sua contribuição.

 

Sobre ele, disse o crítico Agripino Grieco (1888-1973), um dos mais atuantes desde o Pré-Modernismo:

 

"Um dos melhores poetas do norte do país é Sosígenes Costa. Solteirão, esquisito. O vocábulo ‘cegonhento’ apesar de um pouco preciso, como que foi fabricado para ele. Está no mundo com um ar de pernalta pensante. Funcionário dos Telégrafos e escriturário de uma associação comercial, desforra-se dos seus magríssimos ordenados em esbanjamentos poéticos de pedrarias e sedas, como raros dos seus confrades se permitem. Na imaginação desse asceta há sempre um pecaminoso rumor de saias proibidas. Qualquer mulher se lhe afigura ‘princesa, atriz e gata’. Vinga-se do seu isolamento e da sua imobilidade em visões como as não tiveram Sardanapalo e Sindbad o Marítimo. Recorda sempre os belos dias que passou em Belmonte e fala dessa cidadezinha do interior da Bahia como se falasse do Oriente, acendendo todas as gambiarras, fazendo faiscar todas as ourivesarias, compondo todas as decorações florais. É um admirável ornamentista de frades. Modernista, ainda crê na rima rica e um excesso de luz que lhe torna certas passagens obscuras, numa espécie de névoa de ouro. Esse filho da roça pensa nas Vênus de Paris e alude constantemente a pavões e castelos. Sente-se perdido numa Taiti que fosse cheia de duquesas enjoalhadas pelo francês Lalique. Muito justo o que escreveu dele, em famoso artigo, Édison Carneiro, especialmente ao acentuar que Sosígenes transfigura tudo isso, em matéria nossa sente tudo isso brasileirissimamente. Ainda meio simbolista, diz-se ele ‘pagem da Musa e príncipe da Morte’, mas é um panteísta bem vivo ao inebriar-se na gama de amarelos do sol dos trópicos. Sua amada tem ‘trinta anéis de pérolas ovais’, mas o seu noturno de Ilhéus a ‘descrição’, é algo de bem contemporâneo".[1][1]

 

Arredio à publicidade, tímido e acanhado, nunca quis reunir sua produção em livro, mas, devido à insistência de amigos, consentiu que fosse reunida parte desta produção poética (noventa e nove poemas), que finalmente aparece em 1959. [2][2]

 

Apesar da pequena edição de mil exemplares e mal distribuída, hoje raríssima, mesmo assim obteve dois prêmios literários, um no Rio de Janeiro (Paula Brito) e outro em São Paulo (Jabuti), que mereceu vários artigos louváveis.

 

Sosígenes Costa é o mais estranho de todos os poetas baianos, um poeta tranqüilo na aparência, infenso a exterioridades, mas profundamente inquieto no fazer literário. Possuía uma maneira toda peculiar de compor e transmitir sua visão de mundo e do ser humano, dando-nos uma lição de coerência aliada a uma profunda sensibilidade, fruto do amor que transborda em toda sua produção. Um jogo bem elaborado para recriar um momento que fica, utilizando-se de palavras-chaves que se intercomunicam, ou seja, cada palavra tem um peso, um volume, uma medida justa.

 

O poeta traça um quadro lírico-amargo de um mundo mitológico entre dois mundos antagônicos, ao mesmo tempo em que amplia seu universo ficcional, mantendo uma fidelidade inarredável com o folclore baiano, como os temas bíblicos, que pode ser rasteada através da totalidade de sua obra.

 

Antes de tudo, Sosígenes Costa é um poeta moderno, onde a poesia baiana completa sua perfeita evolução histórica, do simbolismo ao modernismo, com seus "Sonetos Pavônicos", todos rigorosamente rimados e metrificados, com reminiscências parnasianas, mas sobretudo com um discreto traço simbolista, onde, através do disfarce simbólico, transluz a figura cúmplice dos êxtases, dos dores de amores do poeta.

 

Apesar de possuir uma obra reduzida, nela se traduz como em poucas a perplexidade e a angústia de um poeta que legou ao patrimônio de nossas letras. Na verdade, sua poesia, tal como ele via, moderna, sofrida, vivida com o ardor e a paixão de quem pouco sobreviveria neste mundo, lhe assegurou permanência entre os maiores poetas brasileiros.

 

Por ser uma poesia ainda muito pouco conhecida e que raramente aparece em antologias, o poeta grapiúna continua desconhecido da crítica mais alerta ou do leitor de poesia mais bem informado. Seus versos versam motivos do folclore afro, do folclore brasileiro, misturando temas bíblicos e históricos, tratando com habilidade o recurso da linguagem coloquial.

 

Sosígenes revela em sua obra uma preocupação com o homem em sociedade. Ainda antes de ter livro publicado, seus poemas esparsos por jornais e revistas serviram como motivo para vários artigos como: Um Poeta com P maiúsculo [3][3] ; Um Poeta [4][4] e Sosígenes Costa, de Édison Carneiro, que se utilizou do longo poema “Negro Sereio”, de 1932, no livro Religiões Negras. [5][5]

 

Sua poesia se tornou mais difundida e admirada com a publicação dos livros Obra Poética, edição revista e ampliada, acrescentando setenta novos poemas, [6][6] Pavão, Parlenda, Paraíso (uma tentativa de descrição crítica da poesia de Sosígenes Costa)[7][7] e finalmente a publicação do longo poema narrativo escrito em 1933, Iararana [8][8], livro que se filia à mesma linha primitivista de Macunaima (1928), de Mário de Andrade, e Cobra Norato (1931), de Raul Bopp. A edição de Iararana é enriquecida com um texto de Jorge Amado e com ilustrações especiais, do artista plástico, Aldemir Martins.

 

Sua obra sem nenhuma dúvida a melhor, a mais viva, uma das mais belas, com poemas nos quais a terra se impôs com vigor, esplendor, uma verdade que raramente encontramos na poesia brasileira. Por fim, renovação, maturidade e maestria formam uma constelação pavônica da obra sosigenesiana, pela passagem dos 41 anos de sua publicação em livro, que continua desafiando leitores e críticos, numa simbiose altamente criadora, e 32 anos de sua morte, a 5 de novembro de 1968, no Rio de Janeiro.

 

 

Bibliografia de Sosígenes Costa

 

Obra Poética. Rio, Leitura, 1959 (Desta primeira edição foram tirados 200 exemplares em papel westerpost, fora do comércio e numerados pelo autor).

Obra Poética. São Paulo, Cultrix / INL (Edição Aumentada), 1978. (Texto de José Paulo Paes)

Iararana. São Paulo, Cultrix, 1979. (Desta primeira edição foi feita uma tiragem especial de mil e cem exemplares numerados, fora do comércio, dos quais mil reservados à Compahia Produtora de Alimentos e cem à Editora Cultrix – Texto de José Paulo Paes e Jorge Amado)

Crônicas & Poemas Recolhidos de Sosígenes Costa. Fundação Cultural de Ilhéus, 2001. (Textos: Gilfrancisco e Hélio Pólvora)

Poesia Completa. Salvador, Conselho Estadual de Cultura, 2001. (Textos: Valdomiro Santana, José Paulo Paes e Hélio Pólvora)

 

  

Leia também Sosígenes Costa: Novos textos esparsos

 

 

[1][1] Gente Amiga (Sosígenes Costa, Otavio Moura e outros), Agripino Grieco. Ilhéus, Diário da Tarde, 13. mar.1935.

[2][2] Obra Poética, Sosígenes Costa. Rio de Janeiro, Leitura, 1959. Foram tirados duzentos exemplares em papel westerpost, fora do comércio. numerados e rubricados pelo autor.

[3][3] Um Poeta com P maiúsculo, Alves Ribeiro. Salvador, O Jornal, 11.jan.1930. Republicado com o título Do Jardim Suspenso. Ilhéus, Diário da Tarde, 17. jan. 1930.

[4][4] Um Poeta, Dias da Costa. Salvador, O Momento n. 6, 15, dez. 1931.

[5][5] Sosígenes Costa, Édison Carneiro. Salvador, ETC, 31, jul, 1931.

  Religiões Negras, notas de etnografia religiosa, Édison Carneiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1936.

[6][6] Obra Poética, Sosígenes Costa. São Paulo, Cultrix, 2. ed., 1978.

[7][7] Pavão, Parlenda, Paraíso (uma tentativa de descrição crítica da poesia de Sosígenes Costa), José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix/PACCE, 1978.

[8][8] Iararana, Sosígenes Costa. São Paulo, Cultrix, 1978. (Desta primeira edição de Iararana foi feita uma tiragem especial de mil e cem exemplares numerados, fora do comércio, dos quais mil reservados à Companhia Produtora de Alimentos e cem à Editora Cultrix.)

 

 

* Jornalista, pesquisador e professor universitário. Publicou: Gregório de Mattos, o boca de todos os santos; Crônicas & poemas recolhidos de Sosígenes Costa; Flor em Rochedo Rubro: Enoch Santiago Filho, Poemas de Enoch Santiago Filho; Godofredo Filho & o Modernismo na Bahia, dentre outros.

 

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