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Nicolau Saião

 

A LÍRICA AMOROSA DE MARIZE CASTRO

 

(Gilfrancisco*)

 

Marize Lima Castro nascida em Natal (1962), formada em  Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como jornalista trabalhou na editoria durante vários anos do jornal cultural, O Galo, publicação da Fundação José Augusto. Personalidade da vida social, política, intelectual e das artes em geral, Marize Castro é considerada uma das melhores poetas contemporâneas norte-rio-grandense, ganhadora de vários prêmios literários, dentre os quais  Prêmio de poesia FJA (1983) e o Prêmio Othoniel Menezes (1998). A conheci na cidade do Sol, em 1989, época em que colaborei com alguns ensaios no jornal natalense, O Galo, e travei os primeiros contatos com a literatura local: Guia Poético da Cidade do Natal, de Manoel Onofre Jr., presente da professora Maria Bethânia Soares, uma preciosidade que me introduziu no universo potiguar.    

 

Pareceu-me na época, um tipo de pessoa invulgar, polida, discreta com certas características de gente do interior, qual normalista silenciosa  de algum internato religioso. Espirituosa na arte de dizer e falar, encantadora com o seu humor e suas atitudes espontâneas, para não falar do olhar esperançoso verdejante e aquele coração confrangido e cauteloso. Amante das madrugadas, da mesa de bar em companhia de amigos, do bom vinho, da boa prosa e das peixadas bem condimentadas do bar/restaurante “Qualquer Coisa” situado na Via Costeira, centro de reunião de notívagos inveterados, de intelectuais, de políticos, de artistas, de agiotas e de sedutoras mariposas da noite.

 

Foi a partir da sua amizade que conheci João da Rua, J. Medeiros, Francisco Ivan, Anchieta Fernandes, Eulício Farias de Lacerda e reencontrei com o amigo Veríssimo de Melo, de quem havia sido apresentado na Bahia pelo escritor Nélson de Araújo. De suas  mãos recebi um exemplar do seu livro de estréia, “Marrons crepons marfins”, com uma dedicatória singela: “eis uma poesia possível. Com carinho e admiração”. Hoje, passado mais de dois decênios, recebo sua mais recente publicação “Esperado ouro”, Natal, edições UNA, (set) 2005, 119 páginas, 52 poemas curtos em sua maioria, capa de Wellington Dantas, com uma  inscrição afetuosa: Querido Gilfrancisco, que este ouro te emocione. Com abraço e carinho”.

 

Desde Homero a literatura do Ocidente se tem desenvolvido não por recomeços absolutos, mas por reaproveitamento do material do passado. Esse reaproveitamento contínuo pode ser ilustrado com a figura de um facho que vai sendo sucessivamente carregado por atletas numa corrida. Mesmo as poéticas chamadas de vanguarda, por seu radical projeto de novidade, buscam nas poéticas do passado elementos de inspiração. A esse fenômeno de reimitação e reaproveitamento de uma época por outra se tem dado o nome de tradição literária.

 

De maneira  mais geral, toda sua poesia que fala do amor e seus atropelos, é o ponto culminante de uma tradição que surge no final da Idade Média e que Camões renovaria, influenciando direta ou indiretamente a poesia amorosa de língua portuguesa. Seu impacto ecoou no Barroco, no Arcadismo, no Romantismo e até no Modernismo. Poetas como Vinicius de Morais e Carlos Drummond de Andrade, manifestam a herança camoniana. O lirismo é sobretudo a expressão artística das vivências emotivas de um eu manifesto ou implícita que busca exprimir a duração e os contornos de um processo emotivo, principalmente a experiência amorosa.

 

De fato, na relação amorosa as palavras amor, desejo, ternura, coração, alma e mulher apresentam incidência muito forte, freqüenta sua poesia com assombrosa assiduidade e, pode-se dizer, são elas que dão ênfase para a definição do ato amoroso: o amor e atração dos corpos têm seu próprio sentimento de completude. O amor é desejo de algo que se quer e não se tem, como se vê em Platão, ao buscar a definição de amor: Amor é falta, carência, uma espécie de vazio impossível de preencher. Na verdade, o amor e suas várias formas de manifestação percorrem todo o livro “Esperado Ouro”, ora de modo velado, ora de modo ostensivo, multiplicando-se em imagens e figuras de linguagem que lhe dão consistência e permitem descortinar as reações e posições com as quais a poeta Marize Castro constrói; sua visão de mulher e do sentimento amoroso.

 

Vejamos o poema “Com vertigem e perícia” um dos mais significativos de sua obra lírica, onde Marize Castro desvendando-nos toda a sua força expressiva, nos dá uma poesia calcada em elementos de natureza fortíssima, a  imagística de seu lirismo amoroso.

 

 

Sob as torres de Gaudí,

Acredito no amor como acredito em Deus

-  com vertigem e perícia.

Caminho pelos subterrâneos e revejo lendas

- fábulas que negros olhos me mostraram.

A beleza permanece com as faces lanceadas.

Como lhe falar da estupidez humana?

Tenho comigo o sudário marinho.

È com ele que sou puta e sagrada.

Celebro nesta noite

uma vida de pontiagudas adagas.

Porque estou só nestas ramblas

consigo contemplar certos mares

e certas sedes escandalosas.

 

 

Cultora do verso livre, apesar de travar combate explícito com o pensamento, Marize Castro escreve em linguagem fluente e solta. Extremamente rica, variada e surpreende, muitas vezes, o leitor com profundidade à primeira vista insuspeitada. Suas aspirações, conquistas e desenganos, sempre em busca da autenticidade criativa foram aos poucos se rarefazendo em minha vida, deixando as marcas de sua passagem. Esta poesia que me tocou nas primeiras leituras, continua desafiando a crítica, apaixonando intelectuais e leitores, aprimorando sua obra na luta diurna com as palavras.

 

Como toda criação humana o poema é um produto histórico, filho de um tempo e de um lugar. E graças ao tempo cresceu sua obra, lançando-se no espelho da modernidade todos os componentes para elevar à comunicação total, objeto de sua criação poética. Deixando-se arrastar por sua corrente de consciência, a porta-âncora de Esperado Ouro, reinterpreta suas vivências próximas e longínquas, imagens de pessoas e lugares, de tempo que se desdobram em outros tantos tempos, num fascinante jogo de espelhos. Pela totalidade de sua expressão, manifestação de solidariedade (mais que isso:amor) pela vida, a poeta se despe de seus véus espessos com suas zonas de silêncio e ternura, fazendo um contraponto entre a voz autêntica e permanente, para reivindicar para si o que prioritariamente lhe pertence, elevando fatos novos a estado de linguagem poética segundo as suas próprias exigências de configuração.

           

A poeta cresceu infinitamente na estima e na admiração de todos os que lutam pela  edificação de um mundo melhor, mais livre e mais justo, onde não haja explorador e explorado. Sua criação poética não se prende às próprias condições humanas, às suas limitações, à sua humanidade niilizada. Em busca da luz, não a luz crua dos recriadores de vida, senão a luz mais forte e mais cegante, dos criadores,  como a luz do sol sendo a luz da gente, sendo a luz do dia, ou seja aquela luz que irradia a verdade oriunda da arte: “a verdade em beleza” da qual se referiu o crítico Haroldo de Campos, ao comentar sua obra “Marrons crepons marfins”.

 

O livro  abre com esses belos versos do poema “Muralha”, com um desafio para os que procuram acompanhar a trajetória atual da poesia brasileira:

 

Porque me abasteci, estou de volta.

Trago comigo coisa abandonadas.

Coisas que os homens jogaram fora:

placentas, gânglios, guislandas, guelras.

 

     Retorno alimentada. Perigosa.

    Mais mar. Mais aberta.

 

Marize Castro tem o poder de levar consigo o leitor para dentro do seu universo poético, para o mundo de sonhos onde o princípio da realidade é dominado pelo princípio do prazer, ganho não previsto. E nessa viagem cada um desses leitores, terá o prazer de descobrir situações e problemas que conduzem direto ao âmago do ser humano. Sempre se renovando e adicionando novas dimensões a sua obra, Esperado Ouro é um livro essencialmente dinâmico, com suas  inúmeras estações.

 

 Poucos poetas brasileiros conseguiram, como ela, ultrapassar a pauta puramente individual ou local e transformar-se numa intérprete universal do homem. Do homem onde quer que esteja agora, consciente da sua existência, do seu amor existencial, da revalorização totalizante desse próprio homem. Porque o amor se apura com o tempo, sem dúvida o principal motivador de sua poesia. Portanto, estamos, na verdade, em presença de uma poeta de carreira, haja vista que há poetas que não faz da poesia um exercício contínuo, uma atividade intelectual permanente. Daí a poeta potiguar abrir as suas formas expressivas para formar o cume significacional e modernizador: o que se quer agora é ir além disso, com a autonomia de cada poema. O que Marize Castro diz só ela diz da forma por que diz.

 

* Jornalista, pesquisador e professor universitário

 

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