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Nicolau Saião

 

A INUTILIDADE DAS (P)ARCAS

 

(Gilfrancisco)

 

 

são treis sorte são treis sina

ai pobre cantadô

são treis irmã firina

a Morte a Saudade a Dô

Elomar

 

Vejo a poesia como uma manipulação de fósseis, de sentimentos encobertos, do ser humano. O poeta tem uma grande responsabilidade de não gerar presença negativa de uma síndrome através dessa manipulação de sentimentos que já existem entre outras pessoas. Acredito que o poeta não deva brincar com esses tesouros ancestrais porque ele acaba envolvendo seus leitores nos riscos que a própria poesia produz.

Thiago Martins Prado

 

 

Os poetas são seres muito especiais que, através da vida, conseguem manter a capacidade de se encantar com as coisas mais simples. O poeta Thiago Martins Prado, que no momento atravessa os rios da memória, corta correntezas para levar consigo seus poemas, cuja beleza cativante enaltece a criação poética não só de Sergipe, mas da literatura brasileira do nosso tempo. Thiago vive inventando miragem de palavras para fazer a vida da gente mais feliz e ficar cada vez mais viva, afinada, harmoniosa, como a voz humana.

 

Thiago Martins Prado, aracajuano da safra de 1979, foi meu aluno na disciplina de literatura em 1996, no Colégio de Ciências Pura e Aplicada – CCPA, e nos reencontramos três anos depois no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia – UFBA, quando este cursava a graduação. Em 2003, reencontrei-o mais uma vez na condição de professor e colega, na Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, ministrando aulas no Curso de Pedagogia em Regime Especial, no município de Nossa Senhora da Glória (SE), onde juntos permanecemos durante todo o mês de janeiro.

 

Lançado no apagar das luzes do ano de 2002 no Enta’s House, Aracaju, e na Berinjela, Salvador, A inutilidade das (p)arcas, Salvador, Secretaria da Cultura e Turismo / Fundação Cultural do Estado e Empresa Gráfica da Bahia, através do Selo Editorial Letras da Bahia, 2002, reúne as primeiras produções desse jovem poeta sergipano.

 

Contendo prefácio de Antonia Torreão Herrera, professora doutora de Teoria Literária, Literatura Dramática e Criação Literária do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, esta edição de 72 páginas, cuja estrutura é dividida em sete partes, contendo cada uma das partes seis poemas, totalizando 42 peças, merece ser saudada com simpatia.

 

 

Mitos

 

São relatos ou narrativas de origens remotas e significação simbólica, que têm como personagens deuses, seres sobrenaturais, fantasmas coletivos. Os mitos não têm autor; são narrações passadas de geração para geração pela tradição oral, e apresentam versões mais ou menos diferenciadas.

 

Presentes em todas as culturas, os mitos situam-se entre a razão e a fé, mas são considerados sagrados. Os principais tipos de mito referem-se à origem dos deuses, do mundo e ao fim das coisas. Também há mitos que procuram explicar a origem da sociedade, a posição de um povo em relação dos deuses, o pecado original, etc.

 

As explicações mitológicas têm, na maior parte das vezes, um caráter fantástico, como exemplo, podemos citar o mito da criação do homem: os deuses haviam destruído a primeira geração da humanidade e preservado apenas um casal – Deucalião e sua mulher, Pirra. Querendo repovoar o mundo, os dois foram informados de que deviam atirar, por cima dos ombros, os ossos de sua mãe. Deucalião e Pirra, inicialmente, não souberam como agir, mas depois concluíram que sua mãe era a terra e que as pedras correspondiam a seus ossos. Começaram, então, a jogar pedras por sob seus ombros. Aquelas arremessadas por Deucalião transformaram-se em homens; as atiradas por Pirra deram origem à mulheres.

 

Na mitologia greco-romana, as Parcas eram três divindades irmãs, donas da vida e da sorte dos homens. Cloto, a que tecia, no momento dos nascimentos, os fios da vida de cada um; Láquesis, a que colocava nesses fios a boa ou má sorte que acompanharia cada mortal; Átropos, a que vigiava a vida dos mortais e que, em determinado momento, cortava-lhes os fios da vida.

 

Portanto, cada povo tem a sua coleção de lendas e mitos: a sua mitologia. Dentre diversas mitologias, a greco-romana tem especial importância para o mundo ocidental, do qual somos parte. Como o poeta Konstantino Kaváfis (1863-1933), um dos mais célebres e estranhos casos da literatura contemporânea, podemos dizer que o mundo grego foi o grande referencial de nossa civilização.

 

As artes, a ciência e até a própria língua vão buscar na cultura helênica elementos para os seus labores específicos. A inutilidade das (p)arcas, do poeta Thiago Martins Prado, retoma o velho tema, sempre novo, costurando com versos aparentemente casuais e despretensiosos, um dos mais belos mitos gregos.

 

 

Inutilidade das parcas

 

Segundo o autor Thiago Martins Prado, entre 1992/1994, escrevia uma poesia como qualquer adolescente, poemas emotivos para desafogar seus sentimentos. Durante o período de 1994/1999, começou a relê-los e descobriu a ingenuidade na construção desses textos. Angustiado pela ingenuidade, passou a reconstruí-los, de modo que o passado daquele jovem promissor fosse substituído, apagado por esses novos poemas. Na verdade, é um livro sobre um livro que nunca existiu, mas que sempre permaneceu em sua mente.

 

O livro faz uma releitura do mito do destino, mito criado pelo próprio homem. Uma poesia nutrida, no entanto, da inesgotável substância do passado, ou seja, do tempo futuro contido no tempo passado. O poeta Thiago Martins Prado trata deste mito como a não aceitação da transformação da memória do homem, ou seja, transformar seu “eu” do passado sempre virando uma fluição, entendimento, projeção não como você imaginou no passado.

 

A inutilidade das (p)arcas é uma tentativa de esquecer esse passado prisioneiro e individual; ao mesmo tempo, ele retrata esses desejos de um futuro que são herdados do passado. Na verdade, é uma viagem de desconstruir esse patrimônio individual do passado. Aqui, o poeta expõe conscientemente o que deve mudar em si mesmo, sem se perder jamais. Deseja libertar o homem das prisões que ultrapassam a memória para criar uma nova memória que venha a construir um ser em processo, em movimento: antimonumento de ruínas.

 

O livro tenta desligar a memória do passado, mas não consegue, porque, ao mesmo tempo em que você nega o que já viveu, você acaba se anulando. Por isso, o esquecimento do passado individual acaba sendo uma utopia tão grande de libertação de dor quanto a utopia do mito do destino.

 

 

Revelação

 

Poucos poetas jovens sergipanos, nesses últimos anos, me proporcionaram um prazer comparável ao que me produziu A inutilidade das (p)arcas, primeiro livro de poesia de Thiago Martins Prado. Buscando romper com a barreira da palavra, a obra de Thiago Martins registra uma tendência poética pautada na oralidade mitológica, onde caligrafa cada verso que escreve com rigor e fino acabamento.

 

O que mais surpreende na poesia de Thiago Martins Prado, conhecida do público pela primeira vez, é o vigor vocabular e a riqueza imagística. Mas nesse complexo universo poético, verso e reverso da realidade mitológica, presente em nosso passado, há muito mais por trás dessa poesia em que poucas concessões levam ao referencial íntimo do autor.

 

Esta volta à Grécia antiga mostra-nos, de maneira simplificada, como os deuses e semideuses transitam em nossa memória. Como muitos povos, os gregos acreditavam em diversos deuses e deusas, associando-os às forças da natureza e aos sentimentos humanos. Julgavam existir divindades maiores e menores, governadas por um deus supremo, Zeus.

 

Numa linguagem rebuscada, olhando o passado para enxergar o futuro, próprio de quem conhece e domina profundamente a matéria de que se ocupa, a leitura e releitura do livro A inutilidade das (p)arcas, de Thiago Martins Prado, será um sempre renovado prazer.

 

 

 

A Inutilidade das parcas

 

Algum tempo após,

Tudo mostrou-se desvalido.

A coroa de frutos depositou-se num prato,

A coroa de ciprestes noutro,

E a desajustada balança não suportou a medida;

A esfera despedaçou-se ao solo,

Mãos e traçados apagaram-se,

Avulsos rolos manchados.

 

O pudor perante o quadrante solar,

Ineficaz construção para as leituras umbrais.

 

As parcas petrificavam os tempos,

Reduziam-nos como uma previsível espiral;

E perceberam a velhice humanamente histórica

Inscrita em seus rostos de caveira.

 

        

 

 

Heraclitiano

 

A paciência na lareira

Subia serpente à poltrona,

Enroscava nas canelas

E os pêlos queimavam

E as mantas chamuscavam.

 

A paciência na lareira

Controlava, pois, se alguma neve havia,

O senhor agasalhado e o seu livro,

Esta era negra.

 

O fogo mercúrio brada

A incendiar os pomos das virgens,

Os céus dos mundos,

As madeiras casas distantes . . .

 

É natimorto, o fogo,

Sempre, na lareira, a se repetir

Ao mesmo desfocado ancião.

 

 

 

 

 

Transmemorar

 

Enramalhar pontes desfraldadas,

Privadas do perfectivo pretérito artesão,

Perigo inculto – angustioso vácuo duma ponta,

Busca do pélago marginal aludido pelo peito difuso.

 

O ornamentar presentifica a indiferente seiva duma planta,

Permite o enlaçar natalício doutra poesia.

Em suspensão, quedam ânsias diurnas

E, numa noite incerta, o passageiro impossível das recordações. [1]

 

 

* Jornalista, pesquisador e professor universitário.


 


[1] Aracaju. Jornal da Cidade, 15.abr.2003.

 

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