A INUTILIDADE DAS (P)ARCAS
(Gilfrancisco)
são treis sorte são treis sina
ai pobre cantadô
são treis irmã firina
a Morte a Saudade a Dô
Elomar
Vejo a poesia como uma manipulação de
fósseis, de sentimentos encobertos, do ser humano. O poeta tem uma
grande responsabilidade de não gerar presença negativa de uma
síndrome através dessa manipulação de sentimentos que já existem
entre outras pessoas. Acredito que o poeta não deva brincar com
esses tesouros ancestrais porque ele acaba envolvendo seus leitores
nos riscos que a própria poesia produz.
Thiago Martins Prado
Os poetas são seres muito especiais que,
através da vida, conseguem manter a capacidade de se encantar com as
coisas mais simples. O poeta Thiago Martins Prado, que no momento
atravessa os rios da memória, corta correntezas para levar consigo
seus poemas, cuja beleza cativante enaltece a criação poética não só
de Sergipe, mas da literatura brasileira do nosso tempo. Thiago vive
inventando miragem de palavras para fazer a vida da gente mais feliz
e ficar cada vez mais viva, afinada, harmoniosa, como a voz humana.
Thiago Martins Prado, aracajuano da
safra de 1979, foi meu aluno na disciplina de literatura em 1996, no
Colégio de Ciências Pura e Aplicada – CCPA, e nos reencontramos três
anos depois no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia
– UFBA, quando este cursava a graduação. Em 2003, reencontrei-o mais
uma vez na condição de professor e colega, na Universidade Estadual
Vale do Acaraú – UVA, ministrando aulas no Curso de Pedagogia em
Regime Especial, no município de Nossa Senhora da Glória (SE), onde
juntos permanecemos durante todo o mês de janeiro.
Lançado no apagar das luzes do ano de
2002 no Enta’s House, Aracaju, e na Berinjela, Salvador, A
inutilidade das (p)arcas, Salvador, Secretaria da Cultura e
Turismo / Fundação Cultural do Estado e Empresa Gráfica da Bahia,
através do Selo Editorial Letras da Bahia, 2002, reúne as primeiras
produções desse jovem poeta sergipano.
Contendo prefácio de Antonia Torreão
Herrera, professora doutora de Teoria Literária, Literatura
Dramática e Criação Literária do Instituto de Letras da Universidade
Federal da Bahia, esta edição de 72 páginas, cuja estrutura é
dividida em sete partes, contendo cada uma das partes seis poemas,
totalizando 42 peças, merece ser saudada com simpatia.
Mitos
São relatos ou narrativas de origens
remotas e significação simbólica, que têm como personagens deuses,
seres sobrenaturais, fantasmas coletivos. Os mitos não têm autor;
são narrações passadas de geração para geração pela tradição oral, e
apresentam versões mais ou menos diferenciadas.
Presentes em todas as culturas, os mitos
situam-se entre a razão e a fé, mas são considerados sagrados. Os
principais tipos de mito referem-se à origem dos deuses, do mundo e
ao fim das coisas. Também há mitos que procuram explicar a origem da
sociedade, a posição de um povo em relação dos deuses, o pecado
original, etc.
As explicações mitológicas têm, na maior
parte das vezes, um caráter fantástico, como exemplo, podemos citar
o mito da criação do homem: os deuses haviam destruído a primeira
geração da humanidade e preservado apenas um casal – Deucalião e sua
mulher, Pirra. Querendo repovoar o mundo, os dois foram informados
de que deviam atirar, por cima dos ombros, os ossos de sua mãe.
Deucalião e Pirra, inicialmente, não souberam como agir, mas depois
concluíram que sua mãe era a terra e que as pedras correspondiam a
seus ossos. Começaram, então, a jogar pedras por sob seus ombros.
Aquelas arremessadas por Deucalião transformaram-se em homens; as
atiradas por Pirra deram origem à mulheres.
Na mitologia greco-romana, as Parcas
eram três divindades irmãs, donas da vida e da sorte dos homens.
Cloto, a que tecia, no momento dos nascimentos, os fios da vida de
cada um; Láquesis, a que colocava nesses fios a boa ou má sorte que
acompanharia cada mortal; Átropos, a que vigiava a vida dos mortais
e que, em determinado momento, cortava-lhes os fios da vida.
Portanto, cada povo tem a sua coleção de
lendas e mitos: a sua mitologia. Dentre diversas mitologias, a
greco-romana tem especial importância para o mundo ocidental, do
qual somos parte. Como o poeta Konstantino Kaváfis (1863-1933), um
dos mais célebres e estranhos casos da literatura contemporânea,
podemos dizer que o mundo grego foi o grande referencial de nossa
civilização.
As artes, a ciência e até a própria
língua vão buscar na cultura helênica elementos para os seus labores
específicos. A inutilidade das (p)arcas, do poeta Thiago
Martins Prado, retoma o velho tema, sempre novo, costurando com
versos aparentemente casuais e despretensiosos, um dos mais belos
mitos gregos.
Inutilidade das parcas
Segundo o autor Thiago Martins Prado,
entre 1992/1994, escrevia uma poesia como qualquer adolescente,
poemas emotivos para desafogar seus sentimentos. Durante o período
de 1994/1999, começou a relê-los e descobriu a ingenuidade na
construção desses textos. Angustiado pela ingenuidade, passou a
reconstruí-los, de modo que o passado daquele jovem promissor fosse
substituído, apagado por esses novos poemas. Na verdade, é um livro
sobre um livro que nunca existiu, mas que sempre permaneceu em sua
mente.
O livro faz uma releitura do mito do
destino, mito criado pelo próprio homem. Uma poesia nutrida, no
entanto, da inesgotável substância do passado, ou seja, do tempo
futuro contido no tempo passado. O poeta Thiago Martins Prado trata
deste mito como a não aceitação da transformação da memória do
homem, ou seja, transformar seu “eu” do passado sempre virando uma
fluição, entendimento, projeção não como você imaginou no passado.
A inutilidade das (p)arcas é uma
tentativa de esquecer esse passado prisioneiro e individual; ao
mesmo tempo, ele retrata esses desejos de um futuro que são herdados
do passado. Na verdade, é uma viagem de desconstruir esse patrimônio
individual do passado. Aqui, o poeta expõe conscientemente o que
deve mudar em si mesmo, sem se perder jamais. Deseja libertar o
homem das prisões que ultrapassam a memória para criar uma nova
memória que venha a construir um ser em processo, em movimento:
antimonumento de ruínas.
O livro tenta desligar a memória do
passado, mas não consegue, porque, ao mesmo tempo em que você nega o
que já viveu, você acaba se anulando. Por isso, o esquecimento do
passado individual acaba sendo uma utopia tão grande de libertação
de dor quanto a utopia do mito do destino.
Revelação
Poucos poetas jovens sergipanos, nesses
últimos anos, me proporcionaram um prazer comparável ao que me
produziu A inutilidade das (p)arcas, primeiro livro de poesia
de Thiago Martins Prado. Buscando romper com a barreira da palavra,
a obra de Thiago Martins registra uma tendência poética pautada na
oralidade mitológica, onde caligrafa cada verso que escreve com
rigor e fino acabamento.
O que mais surpreende na poesia de
Thiago Martins Prado, conhecida do público pela primeira vez, é o
vigor vocabular e a riqueza imagística. Mas nesse complexo universo
poético, verso e reverso da realidade mitológica, presente em nosso
passado, há muito mais por trás dessa poesia em que poucas
concessões levam ao referencial íntimo do autor.
Esta volta à Grécia antiga mostra-nos,
de maneira simplificada, como os deuses e semideuses transitam em
nossa memória. Como muitos povos, os gregos acreditavam em diversos
deuses e deusas, associando-os às forças da natureza e aos
sentimentos humanos. Julgavam existir divindades maiores e menores,
governadas por um deus supremo, Zeus.
Numa linguagem rebuscada, olhando o
passado para enxergar o futuro, próprio de quem conhece e domina
profundamente a matéria de que se ocupa, a leitura e releitura do
livro A inutilidade das (p)arcas, de Thiago Martins Prado,
será um sempre renovado prazer.
A Inutilidade das parcas
Algum tempo após,
Tudo mostrou-se desvalido.
A coroa de frutos depositou-se num
prato,
A coroa de ciprestes noutro,
E a desajustada balança não suportou
a medida;
A esfera despedaçou-se ao solo,
Mãos e traçados apagaram-se,
Avulsos rolos manchados.
O pudor perante o quadrante solar,
Ineficaz construção para as leituras
umbrais.
As parcas petrificavam os tempos,
Reduziam-nos como uma previsível
espiral;
E perceberam a velhice humanamente
histórica
Inscrita em seus rostos de caveira.
Heraclitiano
A paciência na lareira
Subia serpente à poltrona,
Enroscava nas canelas
E os pêlos queimavam
E as mantas chamuscavam.
A paciência na lareira
Controlava, pois, se alguma neve
havia,
O senhor agasalhado e o seu livro,
Esta era negra.
O fogo mercúrio brada
A incendiar os pomos das virgens,
Os céus dos mundos,
As madeiras casas distantes . . .
É natimorto, o fogo,
Sempre, na lareira, a se repetir
Ao mesmo desfocado ancião.
Transmemorar
Enramalhar pontes desfraldadas,
Privadas do perfectivo pretérito
artesão,
Perigo inculto – angustioso vácuo
duma ponta,
Busca do pélago marginal aludido pelo
peito difuso.
O ornamentar presentifica a
indiferente seiva duma planta,
Permite o enlaçar natalício doutra
poesia.
Em suspensão, quedam ânsias diurnas
E, numa noite incerta, o passageiro
impossível das recordações.
* Jornalista, pesquisador e professor
universitário.
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