UM LUGAR AO
SOL
A FORÇA DA POESIA DE ALBERTO DA CUNHA
MELO
(Gustavo
Felicíssimo)
“Uma das
principais vozes poéticas da literatura brasileira contemporânea, o
poeta Alberto da Cunha Melo faleceu nesse sábado (13), às 19h35, aos
65 anos, na UTI do Hospital Jayme da Fonte, onde deu entrada na
última quinta-feira, com infecção respiratória.”
Dessa forma eu
recebi via e-mail a notícia da morte desse esplendoroso poeta
pernambucano, autor de 16 livros, 13 de poesia, entre os quais
destacam-se Oração pelo poema, Recife: UFPE, separata da revista
Estudos Universitários, 1969, Yacala, Recife: Gráfica Olinda, 1999,
ambos republicados pela editora A Girafa em 2003 juntamente com os
inéditos de Meditação sob os lajedos, livro que foi considerado um
dos dez melhores publicados no Brasil em 2002, por um júri de 400
especialistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira,
em sua primeira versão de 2003 e O cão de olhos amarelos, Editora A
Girafa, prêmio de poesia 2007 da Academia Brasileira de Letras.
Pegou-me desprevenido essa notícia, pois, em recente mensagem a mim
enviada, sua esposa, a Sra. Cláudia Cordeiro, falava em “recuperação
milagrosa.” Chorei!
Depois das mortes de
Alberto da Cunha Melo e Bruno Tolentino o que fica é a sensação,
para não dizer certeza, da necessidade extrema de renovação ou
ampliação do cânone literário das universidades e escolas
brasileiras, pois estas pouco têm se mostrado capazes de
empreenderem tal incursão. Esse fato se dá por medo ou por
incompetência? Alberto deu a pista no poema Casa Vazia, inserido em
Meditação sob os lajedos, quando canta: “Poema nenhum, nunca mais,/
será um acontecimento:/ escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada
vez menos...”
E nossas
universidades e escolas são o reflexo desse “mundo cada vez menos”,
um mundo que perdeu sua função crítica, onde o homem nunca foi tão
pobre de reais valores como agora, onde letra de música é estudada
ao lado da obra de Camões ou Drummond apenas para que se mostrem
“antenadas” com seu tempo.
“Ao se interpor
letras de música toma-se o lugar já diminuto da verdadeira poesia
tradicional do país. Isso é um absurdo porque a música popular é
obsessiva e onipresente. Trata-se da hipertrofia de um gênero
usurpando o lugar do outro. Os cantores tomaram o lugar dos poetas
através da mídia eletrônica, o que é muito perverso”, diz o poeta
Ildásio Tavares.
Os professores que
assim procedem contribuem para essa pobreza de valores ao aderirem,
talvez sem noção ou por penúria espiritual, ao que é estabelecido
como padrão cultural pela indústria do entretenimento, restado-lhes,
agora, reproduzir o modelo econômico vigente.
O sociólogo francês
Pierre Bourdieu, em sua obra Esboços de auto-análise, diz que
“compreender é primeiro compreender o campo com o qual e contra o
qual cada um se fez”. Ora, se não nos esforçamos para entender o
descaminho do ensino da literatura em nossas universidades e
escolas, em pouco tempo não haverá mais santo que dê jeito. Ademais,
sendo a TV o principal meio de entretenimento das famílias, nosso
padrão estético-cultural está seriamente comprometido. Alberto da
Cunha Melo, que também era sociólogo, apontou essa problemática no
poema Neo-esteticismo, igualmente inserido em Meditação sob os
lajedos. O poema corre assim:
Chegamos ao tempo do corpo,
que nos humilha ou envaidece,
tempo do gesto e da ginástica
da nova tribo, em nova prece
dessa modelo seminua
que desnuda nossa feiúra:
ai de quem não tem medida
de altos apolos, nem as curvas
traiçoeiras dessas dalilas:
hoje, a beleza transitória,
se revezando, faz a História.
Alberto optou pelo
uso da métrica em seus poemas, pois, para ele "o mau uso do verso
livre terminou por colocar em risco a própria identidade social da
poesia." Ou seja: a falta de critério pode fazer um poema parecer-se
com tudo, menos com um poema.
Esse emprego da
forma fixa e do metro como plataformas para uma poesia extremamente
criativa e de rico conteúdo imagético alinha o poeta, numa primeira
abordagem, a Sheakespeare, pois a Retranca, forma fixa criada pelo
bardo pernambucano, esquematizada em quatro estrofes com a seguinte
disposição: 4,2,3,2, com oito sílabas métricas por verso, onde o
quarteto tem assonâncias no segundo e quarto versos; o primeiro
dístico com assonâncias aparelhadas; o terceto com assonâncias no
primeiro e terceiro versos da estrofe e um dístico final com rimas
consonontais, traz, ainda que remotamente, como afirma Alfredo Bosi
no prefácio ao Livro Yacala, um paralelo com o soneto inglês
(4,4,4,2), forma usada por Sheakespeare, com o dístico no final do
poema rimando entre si, como acontece com a retranca.
Mas enquanto a
poesia do poeta e dramaturgo Inglês nos remete a estados oníricos
amorosos, “a poesia de Alberto da Cunha Melo é instrumento para
breves reportagens poéticas – incursões pelo sociológico – todavia
plenamente conscientes de serem antes poesia que jornalismo,
portanto o sentido implícito, a insígnia, o palimpsesto”, diz o
escritor Walter Cabral de Moura.
É dessa forma que em
cento e quarenta poemas o poeta compõe o seu belíssimo e apoteótico
poema metafísico e simbolista Yacala, cujo nome traduzido do
quicongolês é Homem. Cento e quarenta poemas que narram a dor, a
luta, o sonho, a grandiosidade e a morte do personagem principal,
uma metáfora sobre a falta de valores da humanidade nos dias atuais.
E logo no primeiro poema dessa série o poeta dispara seu arsenal
reflexivo, acompanhem:
001 - EXÓRDIO
Levamos fogo, não esponjas,
ao trono sujo do excremento,
disputando o mesmo vazio
de uma estrela no firmamento;
jarros negros e estrelas, tudo
é uma busca de conteúdo;
ou somos renúncia ou cobiça,
atravessando esses planaltos
feitos de cinza movediça;
mas todos estamos em casa,
como os vôos dentro das asas.
Trinta anos antes
Alberto da Cunha Melo havia criado o seu não menos importante,
original e criativo Oração pelo poema que, distribuído em 600 versos
octossílabos, porém brancos, mostra-nos a força redentora da poiesis
a tocar-nos os sentidos. Nele o poeta ora pelo poema: Senhor,
protege meu poema/ e obscurece com tua sombra/ os versos mortos, as
palavras/ que sobram, o tempo perdido., e adianta que Nada em troca
receberás/ a não ser um outro pedido/ de palavras, de outras
palavras:/ matéria, prima do poema.
Confira uma das
passagens mais brilhantes do poema:
XXVI
A cem quilômetros por hora,
solto a direção do automóvel,
para escrever alguma coisa
mais urgente que minha vida.
Devo portanto utilizar
o vocabulário econômico
do Século: é proibido
amar, fumar, pisar na grama.
Mas gostaria que restasse
algum tempo para dizer
no poema as palavras súbitas
de recompensa e remissão.
Ó meu Deus, eu quero escrever
a minha vida, não teu Céu.
Eu estou só e enlouquecido
como as ovelhas mais longínquas.
Dá pelo menos a esperança
de terminar o doloroso
poema. Dá isso a teu filho,
caído, e coberto de sal.
Dois caminhos e uma
oração, nome dado ao compêndio que abriga os três volumes citados
até aqui foram publicados pela Editora A Girafa e são o retrato da
dor, beleza, força e resistência. Publicados e distribuídos em todo
Brasil, segundo o jornalista, poeta e escritor José Nêumanne,
“sobretudo, graças à maneira militante com que Bruno Tolentino, um
maledicente temido das letras brasileiras, batalhou pelo atrasado,
embora não tardio, reconhecimento do engenho do poeta maior e ao
passado de monge beneditino do editor responsável pelo feito. Este,
o carioca radicado na Paulicéia, Pedro Paulo de Sena Madureira, que
ao preparar os originais do livro viu-se definitivamente arrebatado
pela pungência dolorida de versos como “pelo temor da eternidade, /
perguntaste a teu confessor / por que a resistência sempre fora /
desperdício de tanta dor”, ou pela cadência de uma estrofe como
“Para os mais velhos, as escadas / vão ganhando novos batentes; / as
estradas, novos quilômetros; / as lembranças novos ausentes. Isso
seduziu o editor que lançou Adélia Prado, por recomendação de
Drummond, a ponto de fazê-lo exclamar ao fim da leitura: “Céus, um
poeta à altura de João Cabral!”.
O que é
perfeitamente aceitável.
O
CÃO DE OLHOS AMARELOS
Publicado em 2006,
também pela editora A Girafa, este livro, o último do poeta em vida,
é uma obra alquímica, desafiadora. Nela, o poeta desfila de maneira
absurdamente elegante por diversas configurações poéticas, inclusive
pela Renka, uma forma criada no Japão, considerada extinta e por
vanguardismos brasileiros.
É evidente que
Alberto da Cunha Melo, como todo autor, criava primeiramente para si
e tinha seu espelho interior que lhe servia de parâmetro, pois não
há escritor que verse a partir das experiências do outro sem
compreendê-las. Escrever para enxergar melhor o mundo e por
necessidade da alma, não por fetiche. Escrever para mostrar ao outro
o que o satélite do poeta capta, afinal, como bem disse Ezra Pound,
o poeta é a antena da raça.
Sobre essa
simplicidade, o poeta paraibano Astier Basílio, escreveu que "Na
lírica brasileira a família dos poetas que souberam trabalhar com a
simplicidade é bem pequena. Me lembro aqui de Manuel Bandeira, Mário
Quintana, Cecília Meireles. Todavia, nenhum deles abordou temas tão
repletos de miséria e de vida como faz o pernambucano. Escrever
quase ao rés da fala comum sem perder o senso do sublime é quase
impossível e Alberto da Cunha Melo faz isso com perfeição." O poema
Território Vital, reflete bem o que ele diz:
Somos os pássaros
mais sem garras da Terra;
nosso território está
onde sozinhos estamos:
nesta mesa de bar
se as garrafas bebidas,
nós pagamos;
nesta fila ou no banco
de praça em abandono;
nosso território é menor
do que o alcance das asas
de um passarinho com sono.
Gustavo Felicíssimo é nascido em Maio de 1971, na cidade de Marília,
interior de São Paulo. Poeta e Editor mora na Bahia desde 1993 onde
fundou em 2005, juntamente com outros escritores, o tablóide
literário SOPA - POESIA & AFINS do qual foi seu Editor. Organizou e
apresentou o Sarau Literário SOLTANDO O VERBO que aconteceu durante
os meses de Março e Abri de 2006 e reuniu 13 escritores em Salvador.
Atualmente é o Editor da revista POESIA & AFINS.
Site:
www.poesiaeafins.com
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