A
DAMA SOB O VIADUTO E OUTROS POEMAS
(Geraldo Maia)
FOME ZÉ
pra Miguel Carneiro
Há fome, Zé!
Há fome, Zé!
E o beijo reclama
Me lambe
Me lambe
A fome abunda
No prato afunda
Farinha de cana
Banana aérea
É fome séria
Há fome é grave
Extermínio suave
Fácil fascínio
Há séculos
De alimentar cemitérios
A fome bacana
Não leva em conta
Aquilo que come
em excesso
Há fome que brinda
Ao consumo eterno
É chique moderno
Fome de chilique
Ah, fome, Zé!
Ah, fome, Zé!
Há fome nem tanta
É um nome
Que encanta
Quando se passa
Na boca do verbo
Mas quando grassa
A esmo
Não passa
De salvo conduto
Pro inferno
Há fome Zé!
Há fome Zé!
A DAMA SOB O VIADUTO
Pra
Júlia Barata
A
dama sob o viaduto
Troca miúdos com a escada
Enquanto torce a calçada
E
dobra o parceiro
No
fogo
Limpa com rigor o canto
Onde o amor despeja
O
seu ocaso
Está feliz com a manhã
Que
se esparrama lícita
Aos
pés da praça
Então puxa do fundo do dedo
Um
fumo torto
Que
o moço aperta
No
corte da palha
A
cidade de um trago
Acaricia o rastro
do
gato
que
bate o lero e vaza
Agora quem sabe é a noite
A
casa fica entulhada
De
fantasmas de memória
Enquanto o dia decora
A
sandália e o batom
E
se arrasta na caça
De
algo bom de bagulho
Uma
taça de risada
O
barulho do sonho
Na
largada
do
papelão ao sol
Sim
Estava feliz
naquela manhã de vento
lilás
Apesar das farpas
nas
paredes
Tinha fiapos de amizade
O
abrigo das vozes
No
aço das madrugadas
O
corpo aceso
de
cinza e palavra
o
coração de reza
a
vontade tesa
na
cola do taco
buraco de espera
num
longo intervalo
aí
dava o troco
na
caça de um grego
pela metade
que
sobra café
na
baga
do
bote
o
travo do pinote
que
o amor é risco
no
papel da sorte
só
dá gosto
se
rola dopado
de
paixão
Então puxava o papelão pro canto
Invadia os trapos
E
deixava a garoa dos passos
Embalar
o
preparo
da
manhã
ALUGADO
O
alugado é gado ou boneco
É à
prova de choque ou tem brevê
Seguro mamadeira e fralda carnê
Se
trabalha dobrado tem o dobro de quê
O
alugado é bebê ou benesse
Precisa de fiador ou depósito
com
desconto à vista
Ou
à vista de todos o preço é banal
É
legal alugar o normal de vários
Ou
só pode por quilo ou faixa etária
Tem
turista na lista ou é só carregar
desde a barriga que aluga fácil sem burocracia
E a
mais valia tem taxa
E o
fiscal tem hora fixa
Ou
dá um perdido pra não encontrar
Em
qualquer esquina ou beira
Pode expor na feira, na porta da igreja
Não
precisa de alvará se deus dará
Algum por fora
dentro da lei
Da
ilegalidade
E
se der defeito a quem devolver
Ou
trocar por um de outra raça
tem
que pagar ágio
se
o modelo é mais belo
Pergunto porque aluguei cinco
No
paralelo e quero devolver dois
Um
pra reparo no tanque
Um
com defeito na pele
Mas
quero registrar
Com
veemência
Que
dos outros só aproveitei
O
baço, um rim,
E
um pedaço
De
inocência
CAPUZ
A
sombra férrea
invade a madrugada
Com
seu capuz impune
E
um apetite de morte
Na
calçada dormem
Sobras de egoísmo
Montes de usura
Pedaços de descaso
Pontas de abandono
Farpas de caridade
Trapos de vaidade
Restos de intolerância
Lixo de almas
Coletado rápido
Antes que a vida
Ponha tudo a perder
CORDEL DO QUERUBIM AFOGADO
O
mar da cor do amor à brisa aderna
E
então se põe atento à chama média
segue sem rédeas ao estertor dos ventos
sem
os lastros da espera onde fubentos
Sóis tentam incendiar o nauta
Que
se utiliza de uma flauta
Para romper a tempestade, o lacre
Da
revolução: gozar àlacre
E
carmim em nua festa de cordel
Peleja de abismo com bordel
e
um beijo de festim na vidraça
Sonho de prazer no convés da teia
de
paixão incita o mar que corcoveia
galopa as ondas, querubim talassa
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