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EU
MESMO
(Renato
Suttana)
Vago,
como uma idéia é vaga ao nascer, como um labirinto é vago quando
se está dentro dele – assim o que sou nesta hora, a suportar o
fardo de ser eu: janela, porta, a passagem que conduz para
fora, como se houvesse lá fora, como se estar aqui não fosse
estar aprisionado para aquém de tudo o que se assemelha a um
estar lá fora, vago, como uma neblina é vaga quando se
procura encontrar na noite a senda perdida, quando se tem de lidar
com os fantasmas que vagueiam na noite e saltam de repente de seus
nichos e se assanham para assombrar os nossos pensamentos, como se
pode ser vago ao dar uma resposta que deveria ter sido decisiva e no
entanto nos traiu, nos saltou da boca e se revelou contrária ao que
gostaríamos de ter dito ou se revelou simplesmente insatisfatória,
imprecisa, como tudo é vago quando se tem de atingir a nitidez ou
como o vento é vago atravessando a copa folhuda de uma árvore, ou
quando cessa e resta apenas a ramagem, a noite, o telhado, a nuvem,
a cumeeira contra a qual assobiou, o sono do pássaro, o silêncio,
o anel perdido no escuro, o calçamento silencioso, o ter pisado
ali, tamanqueado ali, e já não se ouvirem mais os passos – em
silêncio, vago como um silêncio entre duas coisas, dois sons, duas
palavras, dois assobios, dois acordes, duas ilhas, dois pensamentos,
ou onde não há nenhum pensamento –, como se pode ser vago ao
supor o que há por dentro, ao tentar imaginar o núcleo oculto,
quando não há transparência, quando não há nitidez, nem lâmina,
nem gume, nem a luz que nos previne do desastre, nem o desastre, nem
o cortar dessa lâmina, como afundar numa água salobra, numa névoa,
numa confusão de águas e névoas, assim como estou agora, a
imaginar o exterior – eu mesmo, eu todo, a diluir-me neste
vago em que me afogo, em que me perco, em que me abismo.
(In:
O livro da noite)
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