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O
ETERNO RECOMEÇO DA CRÍTICA
(Renato
Suttana)
Parece
ser de domínio público a idéia de que, para dizer coisas difíceis,
se deve usar uma linguagem difícil. A ninguém ocorreria pensar,
por exemplo, que o conceito de quantum ou a noção existencialista
de dasein se acomodem facilmente em linguagem infantil. Com um pouco
de esforço, talvez, pode ser até que o arranjássemos, dada também
a noção concorrente, esposada por certos filósofos, de que tudo o
que pode ser pensado pode ser dito de alguma maneira (supondo-se,
evidentemente, que as noções de quantum e de dasein sejam pensáveis).
Entretanto,
existe uma diferença entre empregar a linguagem e tomá-la como
objeto de estudo. Deste ponto de vista, é possível supor que a
linguagem infantil se tornará, ela mesma, suficientemente complexa
quando tentarmos explicá-la numa linguagem qualquer ou convertê-la
em “objeto” de linguagem. Um pensador menos perseverante se
sentiria tentado a parar neste ponto, concluindo que boa linguagem
é aquela que não precisa ser explicada por nenhuma outra e que se
deixa compreender sem o auxílio de traduções. Mas, no domínio
das coisas (e a própria linguagem das crianças se converte numa
“coisa” quando precisamos explicá-la e, não, simplesmente usá-la
para falar), não podemos fugir à necessidade de explicar. Quem
nunca terá vivido aquela experiência simples de ter de dar orientações
de trânsito a alguém, valendo-se de expressões como “vire à
direita” ou “siga em frente até...”, que, em certas situações,
diante da profusão labiríntica de ruas de uma grande cidade,
parecem surgir como as mais inoperantes do mundo? De qualquer
maneira, ainda poderíamos dizer que, sempre, é mais fácil fazer
alguém chegar ao hospital no outro extremo do bairro (desde que
saibamos o caminho) do que fazê-lo penetrar, com espírito lúcido,
nas complexidades do mundo subatômico. (Mas isso é, suspeitamos,
apenas outro preconceito, favorável à física em detrimento da
vida cotidiana, que talvez não fosse compartilhado por um cachorro
ou por um cavalo, se se encontrassem na mesma situação.)
Lembramo-nos
de uma não muito antiga polêmica, que freqüentou por algum tempo
os jornais brasileiros, acerca da linguagem de certo livro de Gilles
Deleuze traduzido para o português. Acusou-se o filósofo de abusar
da linguagem difícil – e difícil não tanto porque fosse difícil
o assunto tratado, mas, sobretudo, porque, difícil por si mesma,
impunha dificuldades voluntárias ao que já era difícil o
suficiente. A julgar pela polêmica, pensaríamos que o jornalista
que acusou Deleuze de obscuridade estaria a esperar do filósofo a
conhecida façanha de verter um assunto intrincado em linguagem
escorreita. De um lado estaria o tema – vasto, alambicado e
repleto de meandros – e do outro a suposição de que, por mais
abstruso, conteria qualquer coisa de racional, a qual, uma vez
compreendida, fundamentaria a suposição de sua inteligibilidade. E
haveria também, pairando no ar, a pressuposição de que, sendo a
linguagem um instrumento manejável e bastante adaptável a qualquer
situação, e dada a inteligibilidade do tema (por mais obscura), se
poderia então convertê-lo em palavras. A polêmica adviria da
constatação de que, reconhecida a complexidade do tema, a
linguagem do filósofo a teria acompanhado. E outra vez nosso
pensador poderia perguntar-se: mas como é que ficou provada a
dificuldade do assunto? Não seria a dificuldade uma mera conseqüência
de se empregar as palavras de modo inadequado? Um observador externo
teria dito que tanto a noção de que os objetos complexos podem ser
descritos numa linguagem corriqueira quanto a de que a complexidade
dos temas deve ser acompanhada pela equivalente complexidade da
linguagem que os descreve nada mais são que preconceitos. E que o
melhor é não empregar palavras rebuscadas em circunstância
alguma, porque simplesmente não vale a pena empregá-las. E
concluiria que o fato de elaborarmos a descrição de temas
complexos numa linguagem complexa não comprova nenhuma vantagem de
nossa parte, desde que mais cedo ou mais tarde teremos de retornar
ao linguajar comum, que é aquele em que permanecemos por mais tempo
do que nas estratosferas da complexidade.
No
que diz respeito aos livros da assim chamada literatura e à crítica
em particular, existe uma agravante, que vem do fato de que toda
tentativa de explicá-los tem qualquer coisa de uma subestimação.
É como se disséssemos ao autor explicado que o que ele disse em
seu livro não pode ser dito de modo conveniente ou, pelo menos, não
pode ser dito da maneira como o disse, precisando portanto de
adendos e esclarecimentos. Muitos escritores se sentem incomodados
com isso, e os mais conscienciosos, para se manterem em paz com sua
consciência, tendem a passar o incômodo por alto ou a não lhe dar
mais que uma atenção moderada. Os críticos modestos (modéstia que
a cada dia nos convence menos), numa tentativa que não deixa
de ser conciliatória, costumam admitir que o que fazem é apenas
acessório e que suas intenções são as melhores possíveis.
Argumentam, em favor da concórdia, que tudo o que querem é prestar
serviço ao leitor, encurtando-lhe um caminho que de outra forma
seria penoso. Com efeito, certos livros estão mesmo a exigir tal
serviço. Quem poderia, atualmente, ler a Divina comédia ou
Os lusíadas
sem recorrer às incontáveis notas de rodapé e aos apartes que
comumente acompanham as edições desses livros? Mas se pode
argumentar que escrever notas de rodapé não é exatamente fazer crítica
literária, isto é, não é fazer aquela crítica que acarreta
reconhecimento para quem a pratica. Ou que, se a atividade dos críticos
se reduzisse a isso, o mundo se tornaria mais simples; ou, pelo
menos, o volume de páginas impressas todos os dias, seja em livros,
jornais ou revistas, se reduziria consideravelmente. A atividade dos
críticos, não se restringindo à mera explicação erudita de
textos, ou à elaboração de notas esclarecedoras, deve ter, pois,
outras implicações, que provavelmente recobrem uma intenção
secreta de exercer no teatro dos livros um papel mais proeminente
que o de simples coadjuvantes. Os críticos querem, de algum modo,
mostrar que participam do espetáculo, o que faz pensar que a crítica
seja – tal como se pensou da linguagem de Deleuze em relação a
seus temas – não só um modo de tornar inteligíveis os assuntos
tratados, mas também de se incorporar a eles, numa fusão cujo
sentido talvez jamais se desvende.
Todo
leitor que apanha um livro numa estante e o abre na primeira página
– satisfeita a condição de que conheça a língua em que está
escrito – pressupõe, inconscientemente, a sua inteligibilidade.
Ressalvados os livros de conteúdo técnico ou científico, que
exigem de quem lê algum conhecimento prévio do assunto, os livros
de “literatura” – incluindo-se os romances e os livros de
poesias – são postulados como compreensíveis a qualquer leitor
que não disponha de um conhecimento especializado de seus assuntos.
(E quem levaria a sério um leitor que se recusasse a ler romances
ou poesias por não ter estudado a crítica e a teoria literária?)
Não é à toa, portanto, que costumam ser classificados nas
livrarias entre as obras de interesse geral: supõe-se,
simplesmente, que sejam acessíveis a todos os leitores cuja idade não
seja baixa demais para que se iniciem na leitura. Mas o que é a
grandeza e a universalidade? Como se pode medir o interesse de um
livro, calculando sua exata posição na vasta estante do leitor
comum? Por um instante, tenderíamos a associá-las à noção de
importância. E, no entanto, quem pensaria em colocar, no mesmo nível
de interesse, a Odisséia de Homero (que todos lêem) e, digamos, os
livros de Copérnico ou de Newton (que só os especialistas lêem)?
Sabemos a importância real desses autores, mas aqui é como se
imaginássemos que o universal não dissesse respeito tanto à posição
da Terra no Sistema Solar ou à lei da gravitação, mas às façanhas
de Ulisses entre criaturas lendárias, ditas com arte inigualável
– o que mostra, pelo menos, conforme supunha um filósofo, que
ainda vivemos numa época “literária”.
Se
pensarmos em alguns dos melhores livros que já lemos, poucos de nós
concordaríamos com a noção de que o leitor comum seja o leitor
universal. À parte a questão das idades (e não obstante o fato de
que, se fôssemos convocados a expor nosso conceito de grandes
livros, pensaríamos exatamente nos livros da literatura, mesmo que
não os tivéssemos lido), uma espécie de defasagem ocorre quando
calculamos a distância que vai, hoje em dia, da idéia de que sejam
livros de interesse comum à capacidade de compreendê-los do leitor
comum. Assim, quanto à idéia de que os grandes livros não cumpram
hoje, adequadamente, sua missão, que é a de serem universais e,
com isso, acessíveis a todos os leitores, certamente advirá dela não
só o impulso que põe a crítica em movimento, mas, também, o
vasto frêmito que a perpassa e lhe dá a vitalidade que todos
conhecemos. Insatisfeitos com as aparências ou certos de que aquilo
que torna os livros universais é função de uma qualidade que
ainda não se descreveu totalmente, lançamo-nos à crítica, na
esperança de que seremos nós os primeiros a descrevê-la. E
criamos não só uma formidável bateria de noções e conceitos
como também o correspondente número de termos especiais para
designá-los, que daria ao leigo (ou a quem nunca dedicou mais do
que quinze minutos de reflexão ao assunto) a impressão de que,
finalmente, a crítica literária chegou lá. E de onde surgem os
conceitos e termos, para não falar da função que exercem? A
resposta mais grosseira seria: surgem da tentativa de explicar com
exatidão aquilo que os grandes livros querem dizer. A outra
resposta, mais específica, seria: surgem da tentativa de mostrar o
modo como os grandes livros são escritos, ou o modo como se deve
entendê-los ou, ainda, o que se pode depreender deles, na
eventualidade de que realmente queiram dizer alguma coisa. Só não
se pode ficar indiferente, já que, dada a incontestável importância
da questão, mereceria a tacha de leviano quem a considerasse
meramente bizantina ou destituída de sentido.
Mas
o fato de que a crítica literária – que antigamente era uma
atividade erudita, exercida por indivíduos circunspectos – tenha
desenvolvido conceitos especializados para tratar de
imponderabilidades tais como a da poesia ou dos efeitos de estilo é
motivo para grande admiração. Quem precisar de uma prova pode
abrir qualquer revista dedicada ao assunto, como as que as
universidades publicam, e saberá do que estamos falando. A questão
será, sempre, neste caso, descobrir o motivo pelo qual devemos
considerar as obscuridades da crítica como melhores ou mais
esclarecedoras do que as dos livros tratados. Será, também,
entender o modo como livros que até ontem nos pareciam claros,
“legíveis” no mais amplo sentido da palavra – como as Memórias
póstumas de Brás Cubas ou São Bernardo –, podem dar origem a
escritos tão complexos, obscuros e não raro impenetráveis como os
que encontramos nas revistas. Termos como “intertextualidade”,
“dialogismo” e “metalinguagem” (para ficarmos nos mais
familiares) nos tornam melhores e mais perspicazes como leitores de
romances ou apenas nos propõem novos quebra-cabeças para decifrar?
Com efeito, pode ser que o crítico ou o aspirante a crítico se
sinta mais seguro, depois que aprendeu a manejá-los. Não se trata
apenas de dominar a linguagem dos professores. Em tempo de
profissionalização e de conversão de todos os ramos do saber em
especialidades eruditas, parece ser grande a urgência de que também
nos recessos da crítica se demarque um território. E que o façamos
por meio de termos, conceitos e códigos que nenhum escritor se
atreveria a empregar em sua própria literatura sem o risco do ridículo
demonstra que não se trata só de entender livros, de falar sobre
eles com adequação. Trata-se de estar um passo à frente deles
(seja isso o que for), passo que dá a todos a impressão de que, não
raro, as obras não se tornaram mais do que pretextos para o exercício
de uma atividade em que os críticos se especializaram.
Se
não se pode provar a idéia de que objetos complexos devem ser
descritos em linguagem complexa, menos ainda lograríamos fazê-lo
nos domínios da literatura. Nossa experiência com a leitura de
poemas e romances tende, neste particular, e ao contrário do que
gostaríamos de supor, a estacionar nos objetos, rejeitando como
impróprias as tentativas de descrevê-los por meio de conceitos e
noções que não são eles e que, ao que tudo indica, só os
tangenciam por fora (se é que os tangenciam), tornando-se rudes
como se tentássemos manusear as engrenagens de um relógio com uma
chave inglesa. Como na tentativa de descrever um espelho sem nunca
ter visto um, só o que fazemos é supor essa descrição, desde que
não podemos provar que entre o poema descrito e a crítica que se
escreve a seu respeito existem relações de necessidade. Mas é
característico da crítica recomeçar nesse ponto, onde suas
esperanças tomam corpo e seus sonhos adquirem asas. Paremos, porém,
e não nos deixemos levar. Pensemos apenas que é característico
dela avançar para novos começos, como se, indiferente ao círculo,
realizasse aquele progresso que se postula em todas as áreas
do saber e com o qual, também no universo da crítica, é
necessário sonhar.
(In Adendos e
Espinhos - livro eletrônico) |