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O matador

 

 

ENTREVISTA DE ROGÉRIO SILVA PEREIRA A HENRIQUE PIMENTA ACERCA DO LIVRO O MATADOR (E OUTROS CONTOS)



ROGÉRIO SILVA PEREIRA é mineiro, radicado em Dourados-MS. Na condição de artista literário, expressa-se como contista, romancista, poeta e dramaturgo. É professor associado da Universidade da Grande Dourados (UFGD), onde ministra aulas de Literatura Brasileira.
 
Esta entrevista concentra-se no livro de estreia de Rogério: “O matador e outros contos”, publicado em 2022.
 
1. HENRIQUE PIMENTA – Rogério, o título “O matador e outros contos” já apresenta indícios do que o leitor vai encontrar ao abrir o livro. A maior parte das histórias é constituída por narrativas policiais, ou pelo menos flerta com o policialesco. Quando a morte não é fato, a morte é sugerida. Outro elemento digno de nota, nos seus contos há um destaque especial para o uso das armas brancas faca e punhal. Poderia comentar acerca dessas opções no seu livro: narrativa policial, armas brancas e mortes? Rubem Fonseca é, por acaso, seu autor de cabeceira?
1. ROGÉRIO SILVA PEREIRA – Henrique, meu amigo, primeiramente, obrigado pela oportunidade de refletir sobre esse meu livro. Obrigado pela leitura e obrigado pelas excelentes perguntas que dão a medida da importância que você, escritor virtuoso e leitor atento, dá para o livro. Oxalá, outros possam lê-lo com sua atenção e generosidade. Começo pelo fim, nessa pergunta. Fonseca está longe de ser meu escritor favorito. Pela ordem: Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, J. L. Borges e E. A. Poe. O “Grande Sertão: Veredas” é o melhor romance de todos. “Meu tio o Iawaretê”, “A terceira margem do rio” (Guimarães), “A forma da espada”, “As ruínas circulares” (Borges) e “O gato preto” (Poe) são os contos que me estimularam a escrever contos. Para ficar nessa temática dita fonsequiana: muito antes de Rubem Fonseca, estão Paulo Lins, de “Cidade de Deus” e o próprio filme homônimo de Fernando Meirelles e Kátia Lund. São decisivos. Para constar, diga-se o seguinte: sabe-se que o livro de Lins teve curadoria de Fonseca – então, há algo, por tabela, de R. Fonseca aqui. E só agora, a partir da sua pergunta, penso no seguinte: a temática policial está nos meus contos porque ela é o “outro lado da moeda”. Creio que os contos de “O matador e outros contos” não são “policialescos”. O enfoque principal está nos bandidos, pensados como marginais. Tenho certa atração pelos miseráveis marginais que são uma linhagem consolidada em literatura brasileira. O uso do cachimbo põe a boca torta. São anos lendo textos em que marginais são abordados. Sertanejos, retirantes, favelados, marginais urbanos; seus correlatos: cangaceiros, traficantes, etc. Seus algozes: os policiais. É daí talvez que venha, para mim, esse apego ao bandido (Meirelles), muito antes do policial (José Padilha, de “Tropa de Elite”). Riobaldo é o personagem modelar pra mim – um cangaceiro/bandido, não esqueçamos. Diadorim é outro/outra. A minha Martha, de “O manual”, primeiro conto de “O matador e outros contos”, é prima de Diadorim, a donzela guerreira, inspirada, como se sabe, na Joana D’Arc, personagem histórica, heroína francesa. Riobaldo é filho e neto de D. Quixote. Filho de Cervantes, portanto. Eis a máxima da vida deste escritor espanhol: primeiro viver, depois narrar. Riobaldo é correlato: ele é o cangaceiro que conta, já na velhice, sua vida que se deu na bandidagem. Guimarães, então, é o grande mestre. Sua força como narrador está em fundir essa vivência (falsa) de Riobaldo com o balanço de vida confessional (também falso) que o próprio Riobaldo faz de si. Magistral. Existe uma imagem clássica de Miguel de Cervantes, fácil de encontrar na internet, o escritor, idoso, sentado à mesa com a pena suspensa, parece que dá uma pausa na escrita. Na parede, o escudo e a espada. Ao fundo, uma estante com os grandes clássicos da tradição literária. É o modelo. Num resumo: as facas são antes de tudo de Borges. Para mim, facas são versões enfraquecidas e acanalhadas, suburbanas e marginais, das espadas (estas, épicas). A espada, por sua vez é metáfora das canetas e penas. Quem souber ler, sabe que, numa batalha dos velhos tempos, o que se tem são escritas com lanças e espadas feitas na carne humana. Cada golpe de espada é uma assinatura, uma rubrica. Como está na imagem citada de Cervantes, a pena é derivação da espada na parede.
 
 
2. HP – Devido à qualidade estética com que seus contos foram construídos, é muito difícil escolher o melhor. Mas eu me atrevo a dizer que um de meus contos prediletos do seu livro é “Piedade”, porque, além de ser formalmente irretocável, apresenta múltiplas camadas semânticas, abordando um tema muitíssimo delicado, envolvendo sexualidade e maternidade, em doses tanto sombrias quanto solares. Eu creio que um autor deva ter muita coragem para escrever um texto tão denso quanto esse, desde o projeto, passando pela redação inicial, os ajustes e revisões, até chegar ao ponto final. Como foi a experiência de escrita de “Piedade”?
2. RSP – “Piedade” tem aproximadamente 18 anos. Tem como título inicial “Pietá”. Depois, achei que era muito engravatado e óbvio e deixei como está hoje. O que foi boa escolha. Uma moça real, negra, muito raquítica, andrógina, num sinal de trânsito de uma grande cidade me inspirou. Ela pedia esmola com um menino mulatinho, quase branco, que, desconfiava, não fosse filho dela. Da minha dúvida sobre a maternidade daquela moça surgiu o conto. Fiz a conexão: uma mãe com seu filho, mas não numa tragédia. Não numa cena cristã mítica e, ao mesmo tempo, idealizada, europeia e canônica. Não assim. A matriz era Michelangelo – como você acabou mostrando. A ideia inicial era fazer uma paródia disso. Numa feliz coincidência, a correspondência mais atual é a imagem de abertura das Olimpíadas deste ano, 2024. Uma imagem de Leonardo, pintada em Milão, tornada universal, pois que, além de tudo, calcada na Bíblia, “subvertida” pra afirmar a dita diversidade. Causou polêmica e bilhões de cliques. Fiz algo parecido, mas sem a deliberação final de ser paródia. Não queria atacar a cultura europeia. Antes, queria integrar aquela personagem na maternidade ocidental, na humanidade em geral e na vida brasileira. Os fundamentos são todos estéticos: o primeiro está na teoria milenar da tragédia. Produzir medo e piedade (pena). O conto tem ambos e tem também catarse. Ao fim, nos identificamos com essa personagem – ela é humana para nós. A pergunta inicial: é possível que nos identifiquemos com uma negra, trans, miserável, marginal? O conto se esforça para produzir essa identificação. Se esforça para confirmar que sim, é possível. Outro fundamento: achar o sublime no prosaico (que vemos em M. Bandeira e muito em R. Braga). No mais baixo e provinciano (um carpinteiro, nascido na Galileia, que talvez ame uma prostituta, etc.); neste baixo/provinciano encarna-se o mais alto, Deus Criador. Por outro lado, e em certa medida, essa mulher trans negra sou eu (!). É o meu medo de não ser amado pelas pessoas ao ponto de não quererem que eu viva. E a redenção dessa mulher é a minha própria, em vista da qual estou sempre distante. Penso sempre que a empatia será sempre uma pena de si mesmo; uma piedade de si mesmo. Ter pena de alguém é, antes de tudo, se identificar com esse alguém. Só assim há empatia e identificação na tragédia. Bem entendido, o conto flerta com a tragédia – sendo o final feliz o bom antídoto que nos livra da desgraça de fato. Este conto realiza, além disso, um outro fundamento que é o descontrole inerente à vida. Máxima: se quiser representar a vida em histórias (que escreve, encena ou filma), deixe o acaso agir. Os homens tentam controlar a vida; querem que tudo se dê conforme seus planos. Se há planos, desmanchar tudo, fazer tudo dar errado. É bom fundamento. Como é que, enfim, as coisas dão certas para Luana? A porta do banheiro estava aberta? Como o menino escapou dali? O menino podia ter simplesmente ficado ali quietinho – certo – imóvel no banheiro? Mas decidiu correr e abraçar Luana. Decidiu gritar, como todo filho, “Mamãe”, e abraçar Luana. Essa sucessão de acontecimentos é imponderável e inesperada. Se não fossem esses acidentes, Luana estaria morta pelo tiro de Hélio. E, além disso, o conto também pergunta: qual a autoridade que a criança tem? Nesse conto, ela tem toda autoridade – e no livro há outros momentos em que crianças, meninos, têm autoridades. O que vemos no nosso presente de pais e tios, no geral, são crianças com uma autoridade chocante. Verdadeiros reizinhos mimados. Nesse conto, a criança é uma autoridade que cala todos, que modifica as vontades e deliberações – uma autoridade positiva. Mas, em outros, nem tanto – ver, p. ex., “Latejando”. Há mais, mas talvez eu já esteja mistificando. Inserindo coisas que pensei depois do conto já pronto. Coisas que estou pensando só agora, em função das suas ótimas questões.
 
 
3. HP – Em vários contos, você trabalha de forma espetacular com as seguintes opções discursivas, o diálogo e o monólogo, com incursões, por vezes, no fluxo de consciência. Com isso, estou afirmando que o contista Rogério Silva Pereira é um hábil manipulador de falas e de pensamentos de seus personagens e de seus narradores. Para ficarmos com apenas dois exemplos, no conto monologal “Pessoas”, assim como no conto dialogal “Tiro de misericórdia”, as tramas são desveladas aos poucos, de acordo com as falas e/ou os pensamentos dos personagens. Tudo é construído (ou desconstruído?) por meio de estratégias discursivas milimetricamente calculadas. Agora, explique, se for capaz, como aprendeu a manipular tão bem as estratégias discursivas da narrativa breve? Você tem consciência de seu poder no uso de diálogos e monólogos?
3. RSP – Henrique, primeiro, preciso agradecer os elogios. Não sei se uso “estratégias milimetricamente calculadas”. Então, não sou capaz de explicar. O que posso dizer é que o trabalho é sempre de copiar pacientemente o que já foi escrito por outros, imitando, porém, modificando. Como a personagem Martha de “O manual”. O narrador de “Pessoas” é uma mescla de “Meu tio o Iauaretê” (Guimarães Rosa) e de “Passeio noturno, parte I” (Rubem Fonseca). A ideia é colocar juntos um algoz e uma vítima para “dialogarem”. Porém, a vítima está calada e o “serial” fala. No final, a ideia é que o leitor se identifique com aquele ouvinte calado – que é uma vítima. Entramos no conto como meros leitores; ao final, somos a própria vítima. É uma armadilha. A pista está numa fala do “serial” feita, quase no final: “Calma. Não adianta tentar se soltar. Os nós estão bem atados. O máximo que pode acontecer é o arame cortar mais fundo os seus pulsos” (p. 39). Um pouco presunçoso, mas divertido. “Os nós estão bem atados”, isto é: a trama do conto está bem amarrada, não adianta fugir. Se isso é verdade, já era! Como se diz por aí: “você caiu que nem um patinho”. Aos poucos vamos lendo e, de repente, saímos da condição passiva de leitor – somos a vítima que vai ser sangrada, sacrificada com uma faca(!). Em “Passeio noturno, parte I” temos o pensamento de um “serial killer”. Entramos na cabeça dele via monólogo interior – que (querendo ou não, modernista, “joyceano”, genial ou não) é artificial. Para contraste, vamos a Guimarães Rosa. Este não tem nada de joyceano, com alguns dizem. No seu romance mais importante, “Grande Sertão: veredas”, a forma narrativa não é o monólogo interior ou mesmo o fluxo de consciência. Aquilo que temos em ao menos três obras dele (o citado “Grande sertão: veredas”, o “Meu tio o Iauaretê e “A terceira margem do rio”) é outra coisa, totalmente diversa e original. É artificial? Um pouco. Uma vez que ali há histórias em que temos três homens narrando, em voz alta, mas uma voz que chega até nós via escrita. Ou seja: narrativa falada, mas representação escrita. É, sim, artificial. Na contramão, há um narratário, que participa, em certa medida, da história, que está dentro da história. E registre-se: esses textos de G. Rosa são, antes de tudo, confissão. Alguém cala enquanto alguém fala. Nesse sentido, “Pessoas” também é uma confissão. Rosa, propositalmente, constrói uma narrativa em que silencia as manifestações verbais de seus narratários. O que dizem não importa para o desenvolvimento da história – então, suas falas são silenciadas. Em “Pessoas”, tento replicar esse recurso de Rosa que foi pouco usado até agora. Uso numa história urbana que fala do consumo, da psicopatia, da solidão. – ao modo de Fonseca, diga-se. E G. Rosa usa-o em histórias rurais. Que bom que você leu o “Tiro de misericórdia”. Dou uma dica: é uma profecia e é uma partida de futebol. Uma pena que não coloquei uma data. Mas é de 1998, depois da derrota (0 X 3) do Brasil para a França, em St. Denis, cidade/estádio francês. Os nomes todos dos personagens estavam naquela partida (Ro-Naldo, Denilson, Sampaio, Mario Jorge – Lobo Zagallo). Profecia: resolvi colocar o matador ali como “Alemão” – mudados os nomes, eis a derrota para os alemães no Mineirão (1 X 7), em 2014. Tentei desenvolver uma frase que aparece em “Cidade de Deus”. “Falha a fala, fala a bala”, logo nas primeiras páginas. Uma pena que não coloquei a epígrafe. Os travessões com “zim, zim” são os sons dos tiros zunindo – as balas falando. Também as reticências querem ser tiros – munição traçante. Obrigado pela pergunta!
 
 
4. HP – Estava dia desses conversando com o nosso amigo Luciano Serafim, também escritor, e falávamos acerca do tempo que você gastou compondo a sua estreia literária. Salvo engano, foram consumidos cerca de 30 anos trabalhando o que viria a ser “O matador e outros contos”. Até o Luciano comentou: “Como ele segurou a ansiedade, demorando tanto a publicar, numa época em que as pessoas têm pressa em publicar e ser lidas, muitas vezes em detrimento do amadurecimento do texto? Isso é um verdadeiro ato de heroísmo...”. Pois bem, Rogério, esses 30 anos foram de heroísmo, ou de receio, ou de perfeccionismo, ou de tudo isso, ou de “nada a ver”?
4. RSP - Não ia publicar esses contos. Tenho muito amor por eles, mas não tinha certeza sobre a qualidade em si. Eram, antes de tudo divertimentos, etc. Mas precisava de uma promoção na universidade e, como a nossa carreira exige publicações, decidi publicá-los. Não desagradei da edição. Os contos estavam empoeirados – como se diz, “na gaveta”. Não há perfeccionismo, mas reconheço que fui ajustando-os ao longo dos anos. Houve, sim, receio. Sempre fui, por ser professor de literatura, crítico literário. Leitor profissional de literatura. Como já disse o Luciano Serafim, a “transição” sempre é difícil – e foi o que retardou tudo. Foi difícil sair do armário. Porém, se uma coisa define o conto (tradicional) na sua essência é o seguinte: O conto, ao contrário do romance, é obra do tempo. O romance, como a crônica, é “panfleto”. Produto de “hoje para hoje”. Se deixar para amanhã, corre-se o risco de ficar velho. Se bobear, se não for publicado de uma vez – já era. O romance quer intervir no seu tempo, no agora. Por sua vez, o “verdadeiro” conto, o conto tradicional, passa de mão em mão, não tem dono (é anônimo), é contado aqui e ali, como os contos das “Mil e uma noites”, por séculos, de avós para netos, sempre úteis, sempre servindo ao aconselhamento. O conto é como o seixo no rio do tempo: vai girando, atritando-se, aperfeiçoando-se, arredondando-se. Se o conto moderno (escrito do século 19 para cá) tem algo que o faz aparentado com este conto tradicional que descrevo acima é isso – o tempo que “vemos” condensado nele. Assim, se o meu conto ambiciona algo do conto tradicional é a sua modéstia de ficar aí rolando como seixo, sem dono, até ser útil pra alguma coisa. Como diz o Chico Buarque: “não se afobe não que nada é pra já”.
 
 
5. HP – Existe uma pergunta para escritores que é “batata”, a pergunta acerca de suas influências. Eu não posso fugir a essa “batatalogia”, portanto. Ao ler os seus contos, percebi nas linhas e entrelinhas alguma coisa de, além do já citado Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Luiz Vilela. A minha percepção confere? Fale um pouco de suas influências na área do conto, por favor.
5 – RSP – Essa eu já respondi logo no início, na sua primeira pergunta. Adendo: nada de Luiz Vilela que li muito pouco (infelizmente).
 
 
6. HP – Você escreveu contos tanto na cidade em que está radicado hoje, Dourados (MS), como em Brasília (DF), Belo Horizonte e Coronel Fabriciano (MG), conforme está anotado no livro. Isso ocorreu, provavelmente, devido a seus deslocamentos por motivação profissional. Gostaria de saber se a geografia específica de cada região – em que você viveu e escreveu – foi determinante para compor algum aspecto importante de seus contos.
6. RSP – A geografia em si, não. Certo regionalismo que ali ocorre é do gênero. Elementos que estão mais na literatura do que na vida real. Mas a vivência urbana de Belo Horizonte, cidade em passei mais tempo da minha vida, formadora, por assim dizer – está muito presente nesses contos. Fui a Corumbá recentemente. O contato com a vegetação do Pantanal, e mesmo com a geologia (que lindos que são os Maciços Urucum!), os jacarés onipresentes do Pantanal. – tudo isso me fez ver o quanto sou ignorante, o quanto o meu canavial é “fake”, o quanto a minha selva é “fake” – meros clichês. Lamentavelmente, não sei o nome de um mero ipê. Não sei diferenciar um jacaré de um crocodilo – se, por acaso, encontrar ambos. Agora: vai ler o “Grande sertão: veredas”. A geografia, a flora, a fauna, o coração do homem do sertão, está tudo documentado ali. Mesmo a invenção explícita (lembrar, p. ex., do Liso Sussuarão, que não existe de fato) dá a impressão do “in loco”, da vivência tornada experiência, saber, etc. G. Rosa é um documentador. O texto dele é vivo de coisas concretas. Ainda que, como se sabe, o conteúdo de seu texto se composto a partir de elementos retirados de catálogos e de enciclopédia, fruto da erudição poderosa do escritor – é texto cheio de vida concreta. Mas ali há, por outro lado, a vivência do lexicólogo, etnólogo, entomólogo, botânico, psicólogo, que foi o G. Rosa. Tudo, entretanto, como eu disse, sendo cheio de concretude. Graciliano Ramos fala muito, refletindo-se em seus personagens. Ele diz mais ou menos o seguinte: “a palavra escrita me deixou cego para o mundo” (ainda que “S. Bernardo” seja um prodígio de ditados interioranos coletados ao modo de Mário de Andrade – veja lá). Sinto exatamente isso. Muita palavra e pouca vida. Algo parecido, com o que diz Bento Santiago: “Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres”.
 
 
7. HP – Outra curiosidade acerca de seu processo de escrita é o seguinte: Você confia a alguém a leitura de seus originais, alguém que leia e que opine? Ou você é do tipo autossuficiente e que detesta que deem "pitacos" na sua obra?
7. RSP – Sim. Ao longo da vida, minhas esposas foram minhas leitoras – a atual e a ex. Agradeço muito a elas pelas leituras – que, contudo, não são muitas. Não detesto pitacos, ao contrário. Mas eles foram poucos ao longo da vida. Sempre acho que incomodo alguém se peço para lerem meus textos. Outro crédito: sempre fui muito lido pela minha orientadora, profa. Ivete Walty, da PUC-Minas, muito generosa e gentil. Mas sempre leitora dos textos acadêmicos – nunca os textos ficcionais. 
 
 
8. HP – Algo que me intrigou bastante em seu livro, Rogério, foi que um conjunto significativo de suas narrativas se sustenta à base de uma busca. Há busca por drogas, por criminosos, por ousadia para matar, por uma foto incriminadora, por um passado, por um fantasma, por um beijo, por uma joia rara, por um amor, pela resolução de um trauma, pelo reatamento de uma amizade...  A busca é a presença que falta? A sua ficção pode ser reduzida a intervalos entre buscas e prováveis encontros, ou prováveis desencontros?
8. RSP – Não pensei nisso – a busca. Obrigado por apontar esse aspecto. Mas, note-se, a carência é um dos fundamentos que desencadeia as narrativas (os contos tradicionais), a se pensar com os teóricos (W. Propp, p. ex.). Falta alguma coisa ao herói – dá-lhe a procura! A falta é fundamental pra mim. É na falta que há a substituição. Um exemplo: em muitos contos de “O matador”, a vontade é de “substituir” o pai. Não no sentido de colocar outro no lugar dele. Mas no sentido de “se colocar” no lugar dele. É a inveja do pai, do poder do pai, mas também a sua falta, certo desamparo que advém de sua ausência – que motiva alguns contos. E, aqui, uma lembrança: o Édipo freudiano. Não necessariamente o mito e a tragédia gregos. Mas essa tensão entrevista na tríade do Édipo (ciúmes entre filho/filha, mãe e pai) que Freud propõe como espécie de modelo para explicar a vida humana (que, já sabemos, é ambicioso e falso). Estendo – de modo muito livre e solto, me apropriando –, esse “modelo” para alguns contos. Não se pode deixar de pensar que a chamada tradição literária se articula em algo que pode ser análogo a isso. Ou seja: “pais”, voluntariamente legando aos “filhos” seus “manuais” e estes aprendendo nestes mesmos manuais meios de aniquilar, de superar, de influenciar (isso mesmo!) esses pais. Daí uma metáfora, algo óbvia: facas são espadas acanalhadas, abastardadas; facas são canetas, são penas; facas são pênis… nessa tradição que exclui as mulheres (mas elas existem, claro, dentro desta mesma tradição), algo homoafetivo, homoerótico se insinua. Por isso, as facas que se cruzam e se tocam. Nessa luta de canetas/facas/pênis, há afetos (ódios e amores) familiares. Nesse sentido, as armas de fogo serão nos textos, meros desvios...
 
 
9. HP – Quase todos os narradores, em seus contos, são, retoricamente, não confiáveis. Não confiáveis porque tergiversam demais, ou porque vivem em estado alterado de consciência, ou porque remontam a passados a partir de memórias cambiantes; enfim, por esses e outros motivos. É o que acontece já em “Manual”, o primeiro conto do livro, em que a história é narrada em primeira pessoa pela personagem Martha, por meio de uma carta. Ou seja, trata-se de um conto epistolar, expresso em forma de monólogo. Martha, em sua carta, tenta entender situações do presente remontando a situações, algumas trágicas, vivenciadas no passado, junto a seus familiares. Sabendo-se que Martha é adepta de uma boa talagada de uca e é considerada, por vezes, louca, somos levados a desconfiar o tempo todo do que está sendo escrito/narrado. Uma das belezas de “Manual” está exatamente no manejo dessas artimanhas narrativas; em especial, de uma narradora não confiável. Mas, eu me pergunto, com uma espécie de medo, se o leitor, em nossos dias, tão adepto de mensagens curtas (em tamanho e em sentido), está capacitado a entrar nesse jogo literário, que lhe exige muita atenção e alguns pressupostos essenciais de leitura de livro e de mundo... Será que o leitor viciado apenas nas chamadas “mídias sociais”, acostumado a mensagens curtas, simplórias e tolas, tem a capacidade de “interagir” com seus narradores não confiáveis? Fique à vontade para criticar a minha exposição; inclusive, o meu (suposto) preconceito contra os “leitores midiáticos”.
9. RSP – O seu olhar sobre a querida Martha é ótimo. Sim, o texto é uma carta para a irmã, Heliana, a quem Martha vai explicitando seu amor de décadas. Amor que, provavelmente, Heliana já sabe. Amor que nunca se realizou – são muitos obstáculos, afinal. Muitos tabus. No momento em que esta carta é escrita, estão ambas maduras – 40, 50 anos? São opostas. Heliana, solar, bela, sensual, submetendo a todos com seus encantos. Martha, talvez miúda, feia, noturna. Uma que é plena mulher logo cedo; outra que hesita entre sexualidades e gêneros – não consegue ser mulher, não consegue ser um homem! Uma “do lar”, a que ficou; a outra, do sertão, das cavalgadas, da jagunçagem. Dentre os obstáculos eis o pai, verdadeiro tabu – morto, contudo, “vivo”. Um pai que resta na cabeça de Martha como algo a ser substituído – e ela até que se sente à altura de substituí-lo, de se colocar no lugar dele. E ele ainda não virou lembrança, não é símbolo inerte, ainda – é um zumbi que ronda. Está presente. Porém é uma ronda que só Martha vê. Talvez desequilibrada, talvez alucinando – mas quem vai saber?  – ela quer matar esse pai definitivamente. Acabar com ele, substituí-lo. Ao longo dos anos, veio treinando para matá-lo. Aos poucos, avalia se pode fazê-lo. Há dúvidas profundas. Não pode – não deve – compartilhar isso com a irmã. É uma pergunta que nós próprios fazemos para nós mesmos: como ficar insistindo, com nossas mulheres e parentes, numa obsessão sem que estes nos mandem para o psicólogo, nos internem ou nos rejeitem pra sempre? A carta, por sua vez, é a síntese dessas inquietações. Martha está indo para a batalha da vida dela – matar o pai. Se vencer, volta e obtém o troféu: Heliana. Caso contrário, deixa suas palavras, seu relato. Heliana vai saber o que, afinal, houve. Moral da história: se estamos lendo esta carta, é por que o fantasma do pai venceu e Martha não voltou. E um ponto importante: a carta é marca linguística da ambiguidade que atravessa Martha. Exemplo: só perto do fim ela consegue se articular como a mulher que é. Só ali, seu leitor sabe que quem fala é uma mulher. Porém, tendo tentado imitar o pai em boa parte de sua vida, não terá ido longe demais em querer ser homem – como retornar? Muita coisa me fez escrever esse texto. Lembro de “Sonata de outono”, do Ingmar Bergman (pra citar uma “influência” – se é que é mesmo…). Filme com Liv Ulman e Ingrid Bergman. Filha e mãe. A mãe é grande pianista, renomada, reconhecida, rica por isso – controladora, soberana, autoritária. A filha, por sua vez, é uma pianista fracassada que não soube ser grande como a mãe – melhor do que a mãe. O filme é o “duelo” (visto pelo marido daquela filha, de longe) entre estas duas mulheres. Tento repetir isso neste conto das facas. E veja-se a tragédia: fracasso da filha (penso) é uma homenagem, é uma declaração de amor à superioridade daquela mãe – a quem ela, afinal, ama e admira. É muito difícil escrever e publicar contos depois de G. Rosa ou J. L. Borges. Meu livrinho é uma brincadeira em torno disso. A se levar essa dificuldade ao pé da letra, eu me permitiria até escrever esses contos, como fiz – publicá-los, de jeito nenhum! Tenho sofrido com esse atrevimento que é o “Matador e outros contos” publicado.
 
 
10. HP – Na infância, eu gostava muito da brincar com os amigos na rua de “polícia e ladrão”. A brincadeira consistia basicamente em dividir os participantes em dois grupos, um de policiais e outro de ladrões. Os policiais capturavam os ladrões e os ladrões ainda estavam soltos tentavam libertar os capturados. Nessa brincadeira, estavam definidos em “cláusula pétrea” os papéis do bem e do mal. Hoje, eu tenho quase 60 anos de idade e percebo que na “brincadeira” de seus contos é impossível de se definir papéis, se policiais são do bem, se ladrões são do mal. Você cria personagens que são ambíguas, que se movimentam ardilosamente na bivalência ética. Parece que suas personagens, no final das contas, se recusam a atender a regras. Por acaso, Rogério, você está projetando em sua ficção personagens de carne e osso?
10. RSP – Obrigado pela pergunta. Na verdade, não pensei nisso antes. Mas aproveito a pergunta para refletir, tendo em vista meus contos.
O realismo é uma ordem. Em dois sentidos da palavra. (1) É uma obrigação, é uma norma, é um imperativo categórico: precisamos representar pessoas ao máximo. Pessoas: e não virtualidades. Há muito não dá para representar esquemas, como no melodrama: protagonistas passivas, madrastas vilãs, homens nobres (e sem sal) salvadores, fadas bondosas, motivações ligadas às emoções e aos afetos, etc. É preciso ir além do “happy end”. Capitu se casou com Bento e foram felizes para sempre? Não! É aí que o realismo começa – tem início justamente depois do final feliz típico dos romances românticos. O ensinamento vem de vários mestres, mas, sobretudo, de Machado, com o Bento Santiago. 
E, além disso, (2) o realismo é uma ordem, um ordenamento, um código: primeiro é preciso a ilusão – depois, a desilusão. Primeiro é preciso as motivações amorosas – depois, as “reais” motivações, isto é, a força da grana, do interesse. Se não tiver muita ilusão, não pode haver desilusão – penso que essa é o ordenamento que nos foi dado. Sigo (talvez ingenuamente) essa regra. Nos meus textos tento iludir o leitor ao modo realista de Machado. Dar a ele uma sensação de que estamos diante de um tipo – para, depois, ir além desse tipo.  Aprendi, p. ex., que o Chicó, do Ariano Suassuna, é o mentiroso ingênuo. Não é uma “pessoa”, mas um tipo. Penso comigo: o Chicó vai além de ser um tipo? Acho que não. O personagem não é, não pode ser um tipo. Recordo agora o Hélio, policial, chefão de milícia, que entra na casa de Luana, em “Piedade”. Ele parece um tipo. Mas, sendo um tipo, como é que ele muda de ideia no final e não mata Luana – num contexto de morte certa? Sem essa transição não há pessoas – há só tipos. É preciso ser realista, fugir à idealização romântica.
 
 
11. HP – Conforme sabemos, você é professor na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Pergunta objetiva e direta: O professor universitário, dado a textos acadêmicos, interfere na arte literária do contista?
11. RSP – Acho que sim. Muito. Porém, antes de tudo, o que quero é contar boas histórias com começo, meio e fim – sem juízo final. O texto bom pra mim, seria o auto medieval (p. ex., “O auto da compadecida”, como herdeiro) sem a alegoria do julgamento final. Pessoas (mas não tipos) em cena. Nada da adúltera, do sovina, do padre ambicioso, do malandro, do mentiroso ingênuo, entre outros. Pessoas – ou melhor: tipos que se revelam personagens. Tipos que vão se tornando complexos, deixando de serem figuras pétreas que representam certos caráteres humanos fixos e se complexificando. Nelson Rodrigues dizia que ele é o contrário de Brecht – pois detestava tudo que fosse interrupção, aquele drama que se reconhece explicitamente drama, teatro épico. Vamos aceitar a oposição (desproporcional, talvez) para fins de reflexão: gosto muito de Brecht – mas prefiro Nelson Rodrigues. As surpresas no final de “O beijo no asfalto” e de “Toda nudez será castigada”, são geniais. Gostaria que os leitores mergulhassem nos meus contos como nas peças de Nelson Rodrigues.
 
 
12. HP – O povo quer saber se junto ao exímio contista, que você é, existe também um poeta, um dramaturgo, um romancista. Você já escreveu em outros gêneros textuais? Se sim, quando vai publicar o material? Se não, por que não?
12. RSP – Diga ao povo, prezado Henrique, que não. Há peças escritas (duas), um romance encaminhado – mas travado, um livro de poemas pronto (veja só!), e alguns contos que podem ser publicados, quem sabe. São textos que ficam aí sendo derrotados em concursos literários – já um pouco cansados dessa peleja inglória. Mas há a chance de o livro de poemas sair em breve.
 
 
13. HP – A escritora argentina María Teresa Andruetto, em seu conjunto de ensaios denominado “Por uma literatura sem adjetivos”, reitera que a literatura de boa qualidade estética não deve se submeter a demandas do mercado editorial, que, por sua vez, “escolariza” a literatura feita sob demanda para fins didáticos e pedagógicos, ou seja, para faturar muita grana em vendas a, principalmente, programas públicos de leitura escolar. Desenvolve mais essa ideia, afirmando, ainda, que o bom escritor tem “problemas com as palavras”, “converteu as palavras em seu problema” e que ele deve “fazer com que a palavra expressa saia do âmbito privado e se constitua em literatura”: esse objetivo é impossível de ser mensurado didática e pedagogicamente, porque “excede em todos os sentidos a instituição escola”. Pensando nos contos de “O matador”, você concorda com as argumentações de Andruetto?
13. RSP – Na contemporaneidade, a escola é o lugar por si em que a literatura circula – ao menos no Brasil. É verdade que a livraria, os sarais, os festivais, os concursos e os bancos de aeroportos são lugares em que a literatura está presente. Mas pense-se: onde é que a literatura circula verdadeiramente de modo maciço? Acho que é na escola. Sem escola, aliás, não haveria hoje sequer isso que chamamos literatura brasileira sendo lida. Machado e Graciliano chegaram à maioria de nós via escola – em outros tempos, talvez não. A literatura brasileira está escolarizada. Na verdade, a maioria de nós, escritores vivos, gostaria de estar nas listas do vestibular. Ou seja, escolarizados. E é o meu caso. E, creia, não para ganhar dinheiro – mas, para ser lido. Por esses dias, fui a Corumbá lançar “O matador e outros contos”. No evento, promovido pela querida corumbaense Marcelle Saboya, na casa do Dr. Gabi (que é da Prefeitura da cidade), havia alguns professores que foram os principais interlocutores daquele momento. Excelente, devo dizer. Pedi a eles, humilde e insistentemente, que levassem meu livrinho para suas salas de aulas. Isso é escolarização da literatura. Queria ir para a escola? Sim: para ser lido, não para que comprem meus livros, para que o livro participe de editais do governo. Por outro lado, penso que se a literatura tem essa força pública, desprivatizadora, que a sua pergunta sugere, então ela deve estar na escola, sim. Interessante pensar com a psicanalista Veja Iaconelli que diz que, mesmo a escola privada, aquela que reúne hoje os jovens filhos da elite, que os prepara para o vestibular – mesmo essa escola é “pública”. Com efeito, a escola é pública: é uma concessão pública, é regulada por leis propostas pelo Estado, é instituição fundante e essencial da vida republicana. A literatura na escola pode não cumprir todo seu papel potencial de que Andruetto fala. P. ex., explicitar os “problemas com as palavras” inerentes à “verdadeira” literatura. Mas, arrisco dizer, sem escola não há literatura. A escola talvez não seja problema… um problema talvez esteja no fato de que, hoje, a literatura, a tradição literária, está sendo acusada sistematicamente de, sem saber, falocêntrica, eurocêntrica, brancocêntrica, elitizada, etc. É uma questão... mas para outro momento. 
 
 
14. HP – Para finalizar o nosso bate-papo, Rogério, conte-nos um segredo: Você já tem algum novo livro sendo finalizado, ou os seus leitores ainda vão ter que amargar, mais uma vez, 30 anos de espera?
14. RSP – Como disse, Henrique, é possível que lance no início do ano que vem um livro de poemas. E estou pensando em publicar as duas peças de teatro que mencionei. 

 
Dourados, 1º de outubro de 2024
 


 

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