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                      ENTREVISTA DE ROGÉRIO SILVA
                            PEREIRA A HENRIQUE PIMENTA ACERCA DO LIVRO O
                              MATADOR (E OUTROS CONTOS) 
                       
                     
                         
                        ROGÉRIO SILVA PEREIRA é mineiro, radicado em
                        Dourados-MS. Na condição de artista literário,
                        expressa-se como contista, romancista, poeta e
                        dramaturgo. É professor associado da Universidade da
                        Grande Dourados (UFGD), onde ministra aulas de
                        Literatura Brasileira.
 
                          
                        Esta entrevista concentra-se no livro de estreia de
                        Rogério: “O matador e outros contos”, publicado em
                        2022.
 
                          
                        1. HENRIQUE PIMENTA – Rogério, o título “O matador e
                        outros contos” já apresenta indícios do que o leitor vai
                        encontrar ao abrir o livro. A maior parte das histórias
                        é constituída por narrativas policiais, ou pelo menos
                        flerta com o policialesco. Quando a morte não é fato, a
                        morte é sugerida. Outro elemento digno de nota, nos seus
                        contos há um destaque especial para o uso das armas
                        brancas faca e punhal. Poderia comentar acerca dessas
                        opções no seu livro: narrativa policial, armas brancas e
                        mortes? Rubem Fonseca é, por acaso, seu autor de
                        cabeceira?
 
                        1. ROGÉRIO SILVA PEREIRA – Henrique, meu amigo,
                        primeiramente, obrigado pela oportunidade de refletir
                        sobre esse meu livro. Obrigado pela leitura e obrigado
                        pelas excelentes perguntas que dão a medida da
                        importância que você, escritor virtuoso e leitor atento,
                        dá para o livro. Oxalá, outros possam lê-lo com sua
                        atenção e generosidade. Começo pelo fim, nessa pergunta.
                        Fonseca está longe de ser meu escritor favorito. Pela
                        ordem: Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, J. L. Borges e
                        E. A. Poe. O “Grande Sertão: Veredas” é o melhor romance
                        de todos. “Meu tio o Iawaretê”, “A terceira margem do
                        rio” (Guimarães), “A forma da espada”, “As ruínas
                        circulares” (Borges) e “O gato preto” (Poe) são os
                        contos que me estimularam a escrever contos. Para ficar
                        nessa temática dita fonsequiana: muito antes de Rubem
                        Fonseca, estão Paulo Lins, de “Cidade de Deus” e o
                        próprio filme homônimo de Fernando Meirelles e Kátia
                        Lund. São decisivos. Para constar, diga-se o seguinte:
                        sabe-se que o livro de Lins teve curadoria de Fonseca –
                        então, há algo, por tabela, de R. Fonseca aqui. E só
                        agora, a partir da sua pergunta, penso no seguinte: a
                        temática policial está nos meus contos porque ela é o
                        “outro lado da moeda”. Creio que os contos de “O matador
                        e outros contos” não são “policialescos”. O enfoque
                        principal está nos bandidos, pensados como marginais.
                        Tenho certa atração pelos miseráveis marginais que são
                        uma linhagem consolidada em literatura brasileira. O uso
                        do cachimbo põe a boca torta. São anos lendo textos em
                        que marginais são abordados. Sertanejos, retirantes,
                        favelados, marginais urbanos; seus correlatos:
                        cangaceiros, traficantes, etc. Seus algozes: os
                        policiais. É daí talvez que venha, para mim, esse apego
                        ao bandido (Meirelles), muito antes do policial (José
                        Padilha, de “Tropa de Elite”). Riobaldo é o personagem
                        modelar pra mim – um cangaceiro/bandido, não esqueçamos.
                        Diadorim é outro/outra. A minha Martha, de “O manual”,
                        primeiro conto de “O matador e outros contos”, é prima
                        de Diadorim, a donzela guerreira, inspirada, como se
                        sabe, na Joana D’Arc, personagem histórica, heroína
                        francesa. Riobaldo é filho e neto de D. Quixote. Filho
                        de Cervantes, portanto. Eis a máxima da vida deste
                        escritor espanhol: primeiro viver, depois narrar.
                        Riobaldo é correlato: ele é o cangaceiro que conta, já
                        na velhice, sua vida que se deu na bandidagem.
                        Guimarães, então, é o grande mestre. Sua força como
                        narrador está em fundir essa vivência (falsa) de
                        Riobaldo com o balanço de vida confessional (também
                        falso) que o próprio Riobaldo faz de si. Magistral.
                        Existe uma imagem clássica de Miguel de Cervantes, fácil
                        de encontrar na internet, o escritor, idoso, sentado à
                        mesa com a pena suspensa, parece que dá uma pausa na
                        escrita. Na parede, o escudo e a espada. Ao fundo, uma
                        estante com os grandes clássicos da tradição literária.
                        É o modelo. Num resumo: as facas são antes de tudo de
                        Borges. Para mim, facas são versões enfraquecidas e
                        acanalhadas, suburbanas e marginais, das espadas (estas,
                        épicas). A espada, por sua vez é metáfora das canetas e
                        penas. Quem souber ler, sabe que, numa batalha dos
                        velhos tempos, o que se tem são escritas com lanças e
                        espadas feitas na carne humana. Cada golpe de espada é
                        uma assinatura, uma rubrica. Como está na imagem citada
                        de Cervantes, a pena é derivação da espada na parede.
 
                          
                          
                        2. HP – Devido à qualidade estética com que seus contos
                        foram construídos, é muito difícil escolher o melhor.
                        Mas eu me atrevo a dizer que um de meus contos
                        prediletos do seu livro é “Piedade”, porque, além de ser
                        formalmente irretocável, apresenta múltiplas camadas
                        semânticas, abordando um tema muitíssimo delicado,
                        envolvendo sexualidade e maternidade, em doses tanto
                        sombrias quanto solares. Eu creio que um autor deva ter
                        muita coragem para escrever um texto tão denso quanto
                        esse, desde o projeto, passando pela redação inicial, os
                        ajustes e revisões, até chegar ao ponto final. Como foi
                        a experiência de escrita de “Piedade”?
 
                        2. RSP – “Piedade” tem aproximadamente 18 anos. Tem como
                        título inicial “Pietá”. Depois, achei que era muito
                        engravatado e óbvio e deixei como está hoje. O que foi
                        boa escolha. Uma moça real, negra, muito raquítica,
                        andrógina, num sinal de trânsito de uma grande cidade me
                        inspirou. Ela pedia esmola com um menino mulatinho,
                        quase branco, que, desconfiava, não fosse filho dela. Da
                        minha dúvida sobre a maternidade daquela moça surgiu o
                        conto. Fiz a conexão: uma mãe com seu filho, mas não
                        numa tragédia. Não numa cena cristã mítica e, ao mesmo
                        tempo, idealizada, europeia e canônica. Não assim. A
                        matriz era Michelangelo – como você acabou mostrando. A
                        ideia inicial era fazer uma paródia disso. Numa feliz
                        coincidência, a correspondência mais atual é a imagem de
                        abertura das Olimpíadas deste ano, 2024. Uma imagem de
                        Leonardo, pintada em Milão, tornada universal, pois que,
                        além de tudo, calcada na Bíblia, “subvertida” pra
                        afirmar a dita diversidade. Causou polêmica e bilhões de
                        cliques. Fiz algo parecido, mas sem a deliberação final
                        de ser paródia. Não queria atacar a cultura europeia.
                        Antes, queria integrar aquela personagem na maternidade
                        ocidental, na humanidade em geral e na vida brasileira.
                        Os fundamentos são todos estéticos: o primeiro está na
                        teoria milenar da tragédia. Produzir medo e piedade
                        (pena). O conto tem ambos e tem também catarse. Ao fim,
                        nos identificamos com essa personagem – ela é humana
                        para nós. A pergunta inicial: é possível que nos
                        identifiquemos com uma negra, trans, miserável,
                        marginal? O conto se esforça para produzir essa
                        identificação. Se esforça para confirmar que sim, é
                        possível. Outro fundamento: achar o sublime no prosaico
                        (que vemos em M. Bandeira e muito em R. Braga). No mais
                        baixo e provinciano (um carpinteiro, nascido na
                        Galileia, que talvez ame uma prostituta, etc.); neste
                        baixo/provinciano encarna-se o mais alto, Deus Criador.
                        Por outro lado, e em certa medida, essa mulher trans
                        negra sou eu (!). É o meu medo de não ser amado pelas
                        pessoas ao ponto de não quererem que eu viva. E a
                        redenção dessa mulher é a minha própria, em vista da
                        qual estou sempre distante. Penso sempre que a empatia
                        será sempre uma pena de si mesmo; uma piedade de si
                        mesmo. Ter pena de alguém é, antes de tudo, se
                        identificar com esse alguém. Só assim há empatia e
                        identificação na tragédia. Bem entendido, o conto flerta
                        com a tragédia – sendo o final feliz o bom antídoto que
                        nos livra da desgraça de fato. Este conto realiza, além
                        disso, um outro fundamento que é o descontrole inerente
                        à vida. Máxima: se quiser representar a vida em
                        histórias (que escreve, encena ou filma), deixe o acaso
                        agir. Os homens tentam controlar a vida; querem que tudo
                        se dê conforme seus planos. Se há planos, desmanchar
                        tudo, fazer tudo dar errado. É bom fundamento. Como é
                        que, enfim, as coisas dão certas para Luana? A porta do
                        banheiro estava aberta? Como o menino escapou dali? O
                        menino podia ter simplesmente ficado ali quietinho –
                        certo – imóvel no banheiro? Mas decidiu correr e abraçar
                        Luana. Decidiu gritar, como todo filho, “Mamãe”, e
                        abraçar Luana. Essa sucessão de acontecimentos é
                        imponderável e inesperada. Se não fossem esses
                        acidentes, Luana estaria morta pelo tiro de Hélio. E,
                        além disso, o conto também pergunta: qual a autoridade
                        que a criança tem? Nesse conto, ela tem toda autoridade
                        – e no livro há outros momentos em que crianças,
                        meninos, têm autoridades. O que vemos no nosso presente
                        de pais e tios, no geral, são crianças com uma
                        autoridade chocante. Verdadeiros reizinhos mimados.
                        Nesse conto, a criança é uma autoridade que cala todos,
                        que modifica as vontades e deliberações – uma autoridade
                        positiva. Mas, em outros, nem tanto – ver, p. ex.,
                        “Latejando”. Há mais, mas talvez eu já esteja
                        mistificando. Inserindo coisas que pensei depois do
                        conto já pronto. Coisas que estou pensando só agora, em
                        função das suas ótimas questões.
 
                          
                          
                        3. HP – Em vários contos, você trabalha de forma
                        espetacular com as seguintes opções discursivas, o
                        diálogo e o monólogo, com incursões, por vezes, no fluxo
                        de consciência. Com isso, estou afirmando que o contista
                        Rogério Silva Pereira é um hábil manipulador de falas e
                        de pensamentos de seus personagens e de seus narradores.
                        Para ficarmos com apenas dois exemplos, no conto
                        monologal “Pessoas”, assim como no conto dialogal “Tiro
                        de misericórdia”, as tramas são desveladas aos poucos,
                        de acordo com as falas e/ou os pensamentos dos
                        personagens. Tudo é construído (ou desconstruído?) por
                        meio de estratégias discursivas milimetricamente
                        calculadas. Agora, explique, se for capaz, como aprendeu
                        a manipular tão bem as estratégias discursivas da
                        narrativa breve? Você tem consciência de seu poder no
                        uso de diálogos e monólogos?
 
                        3. RSP – Henrique, primeiro, preciso agradecer os
                        elogios. Não sei se uso “estratégias milimetricamente
                        calculadas”. Então, não sou capaz de explicar. O que
                        posso dizer é que o trabalho é sempre de copiar
                        pacientemente o que já foi escrito por outros, imitando,
                        porém, modificando. Como a personagem Martha de “O
                        manual”. O narrador de “Pessoas” é uma mescla de “Meu
                        tio o Iauaretê” (Guimarães Rosa) e de “Passeio noturno,
                        parte I” (Rubem Fonseca). A ideia é colocar juntos um
                        algoz e uma vítima para “dialogarem”. Porém, a vítima
                        está calada e o “serial” fala. No final, a ideia é que o
                        leitor se identifique com aquele ouvinte calado – que é
                        uma vítima. Entramos no conto como meros leitores; ao
                        final, somos a própria vítima. É uma armadilha. A pista
                        está numa fala do “serial” feita, quase no final:
                        “Calma. Não adianta tentar se soltar. Os nós estão bem
                        atados. O máximo que pode acontecer é o arame cortar
                        mais fundo os seus pulsos” (p. 39). Um pouco presunçoso,
                        mas divertido. “Os nós estão bem atados”, isto é: a
                        trama do conto está bem amarrada, não adianta fugir. Se
                        isso é verdade, já era! Como se diz por aí: “você caiu
                        que nem um patinho”. Aos poucos vamos lendo e, de
                        repente, saímos da condição passiva de leitor – somos a
                        vítima que vai ser sangrada, sacrificada com uma
                        faca(!). Em “Passeio noturno, parte I” temos o
                        pensamento de um “serial killer”. Entramos na cabeça
                        dele via monólogo interior – que (querendo ou não,
                        modernista, “joyceano”, genial ou não) é artificial.
                        Para contraste, vamos a Guimarães Rosa. Este não tem
                        nada de joyceano, com alguns dizem. No seu romance mais
                        importante, “Grande Sertão: veredas”, a forma narrativa
                        não é o monólogo interior ou mesmo o fluxo de
                        consciência. Aquilo que temos em ao menos três obras
                        dele (o citado “Grande sertão: veredas”, o “Meu tio o
                        Iauaretê e “A terceira margem do rio”) é outra coisa,
                        totalmente diversa e original. É artificial? Um pouco.
                        Uma vez que ali há histórias em que temos três homens
                        narrando, em voz alta, mas uma voz que chega até nós via
                        escrita. Ou seja: narrativa falada, mas representação
                        escrita. É, sim, artificial. Na contramão, há um
                        narratário, que participa, em certa medida, da história,
                        que está dentro da história. E registre-se: esses textos
                        de G. Rosa são, antes de tudo, confissão. Alguém cala
                        enquanto alguém fala. Nesse sentido, “Pessoas” também é
                        uma confissão. Rosa, propositalmente, constrói uma
                        narrativa em que silencia as manifestações verbais de
                        seus narratários. O que dizem não importa para o
                        desenvolvimento da história – então, suas falas são
                        silenciadas. Em “Pessoas”, tento replicar esse recurso
                        de Rosa que foi pouco usado até agora. Uso numa história
                        urbana que fala do consumo, da psicopatia, da solidão. –
                        ao modo de Fonseca, diga-se. E G. Rosa usa-o em
                        histórias rurais. Que bom que você leu o “Tiro de
                        misericórdia”. Dou uma dica: é uma profecia e é uma
                        partida de futebol. Uma pena que não coloquei uma data.
                        Mas é de 1998, depois da derrota (0 X 3) do Brasil para
                        a França, em St. Denis, cidade/estádio francês. Os nomes
                        todos dos personagens estavam naquela partida (Ro-Naldo,
                        Denilson, Sampaio, Mario Jorge – Lobo Zagallo).
                        Profecia: resolvi colocar o matador ali como “Alemão” –
                        mudados os nomes, eis a derrota para os alemães no
                        Mineirão (1 X 7), em 2014. Tentei desenvolver uma frase
                        que aparece em “Cidade de Deus”. “Falha a fala, fala a
                        bala”, logo nas primeiras páginas. Uma pena que não
                        coloquei a epígrafe. Os travessões com “zim, zim” são os
                        sons dos tiros zunindo – as balas falando. Também as
                        reticências querem ser tiros – munição traçante.
                        Obrigado pela pergunta!
 
                          
                          
                        4. HP – Estava dia desses conversando com o nosso amigo
                        Luciano Serafim, também escritor, e falávamos acerca do
                        tempo que você gastou compondo a sua estreia literária.
                        Salvo engano, foram consumidos cerca de 30 anos
                        trabalhando o que viria a ser “O matador e outros
                        contos”. Até o Luciano comentou: “Como ele segurou a
                        ansiedade, demorando tanto a publicar, numa época em que
                        as pessoas têm pressa em publicar e ser lidas, muitas
                        vezes em detrimento do amadurecimento do texto? Isso é
                        um verdadeiro ato de heroísmo...”. Pois bem, Rogério,
                        esses 30 anos foram de heroísmo, ou de receio, ou de
                        perfeccionismo, ou de tudo isso, ou de “nada a ver”?
 
                        4. RSP - Não ia publicar esses contos. Tenho muito amor
                        por eles, mas não tinha certeza sobre a qualidade em si.
                        Eram, antes de tudo divertimentos, etc. Mas precisava de
                        uma promoção na universidade e, como a nossa carreira
                        exige publicações, decidi publicá-los. Não desagradei da
                        edição. Os contos estavam empoeirados – como se diz, “na
                        gaveta”. Não há perfeccionismo, mas reconheço que fui
                        ajustando-os ao longo dos anos. Houve, sim, receio.
                        Sempre fui, por ser professor de literatura, crítico
                        literário. Leitor profissional de literatura. Como já
                        disse o Luciano Serafim, a “transição” sempre é difícil
                        – e foi o que retardou tudo. Foi difícil sair do
                        armário. Porém, se uma coisa define o conto
                        (tradicional) na sua essência é o seguinte: O conto, ao
                        contrário do romance, é obra do tempo. O romance, como a
                        crônica, é “panfleto”. Produto de “hoje para hoje”. Se
                        deixar para amanhã, corre-se o risco de ficar velho. Se
                        bobear, se não for publicado de uma vez – já era. O
                        romance quer intervir no seu tempo, no agora. Por sua
                        vez, o “verdadeiro” conto, o conto tradicional, passa de
                        mão em mão, não tem dono (é anônimo), é contado aqui e
                        ali, como os contos das “Mil e uma noites”, por séculos,
                        de avós para netos, sempre úteis, sempre servindo ao
                        aconselhamento. O conto é como o seixo no rio do tempo:
                        vai girando, atritando-se, aperfeiçoando-se,
                        arredondando-se. Se o conto moderno (escrito do século
                        19 para cá) tem algo que o faz aparentado com este conto
                        tradicional que descrevo acima é isso – o tempo que
                        “vemos” condensado nele. Assim, se o meu conto ambiciona
                        algo do conto tradicional é a sua modéstia de ficar aí
                        rolando como seixo, sem dono, até ser útil pra alguma
                        coisa. Como diz o Chico Buarque: “não se afobe não que
                        nada é pra já”.
 
                          
                          
                        5. HP – Existe uma pergunta para escritores que é
                        “batata”, a pergunta acerca de suas influências. Eu não
                        posso fugir a essa “batatalogia”, portanto. Ao ler os
                        seus contos, percebi nas linhas e entrelinhas alguma
                        coisa de, além do já citado Rubem Fonseca, Guimarães
                        Rosa, Graciliano Ramos e Luiz Vilela. A minha percepção
                        confere? Fale um pouco de suas influências na área do
                        conto, por favor.
 
                        5 – RSP – Essa eu já respondi logo no início, na sua
                        primeira pergunta. Adendo: nada de Luiz Vilela que li
                        muito pouco (infelizmente).
 
                          
                          
                        6. HP – Você escreveu contos tanto na cidade em que está
                        radicado hoje, Dourados (MS), como em Brasília (DF),
                        Belo Horizonte e Coronel Fabriciano (MG), conforme está
                        anotado no livro. Isso ocorreu, provavelmente, devido a
                        seus deslocamentos por motivação profissional. Gostaria
                        de saber se a geografia específica de cada região – em
                        que você viveu e escreveu – foi determinante para compor
                        algum aspecto importante de seus contos.
 
                        6. RSP – A geografia em si, não. Certo regionalismo que
                        ali ocorre é do gênero. Elementos que estão mais na
                        literatura do que na vida real. Mas a vivência urbana de
                        Belo Horizonte, cidade em passei mais tempo da minha
                        vida, formadora, por assim dizer – está muito presente
                        nesses contos. Fui a Corumbá recentemente. O contato com
                        a vegetação do Pantanal, e mesmo com a geologia (que
                        lindos que são os Maciços Urucum!), os jacarés
                        onipresentes do Pantanal. – tudo isso me fez ver o
                        quanto sou ignorante, o quanto o meu canavial é “fake”,
                        o quanto a minha selva é “fake” – meros clichês.
                        Lamentavelmente, não sei o nome de um mero ipê. Não sei
                        diferenciar um jacaré de um crocodilo – se, por acaso,
                        encontrar ambos. Agora: vai ler o “Grande sertão:
                        veredas”. A geografia, a flora, a fauna, o coração do
                        homem do sertão, está tudo documentado ali. Mesmo a
                        invenção explícita (lembrar, p. ex., do Liso Sussuarão,
                        que não existe de fato) dá a impressão do “in loco”, da
                        vivência tornada experiência, saber, etc. G. Rosa é um
                        documentador. O texto dele é vivo de coisas concretas.
                        Ainda que, como se sabe, o conteúdo de seu texto se
                        composto a partir de elementos retirados de catálogos e
                        de enciclopédia, fruto da erudição poderosa do escritor
                        – é texto cheio de vida concreta. Mas ali há, por outro
                        lado, a vivência do lexicólogo, etnólogo, entomólogo,
                        botânico, psicólogo, que foi o G. Rosa. Tudo,
                        entretanto, como eu disse, sendo cheio de concretude.
                        Graciliano Ramos fala muito, refletindo-se em seus
                        personagens. Ele diz mais ou menos o seguinte: “a
                        palavra escrita me deixou cego para o mundo” (ainda que
                        “S. Bernardo” seja um prodígio de ditados interioranos
                        coletados ao modo de Mário de Andrade – veja lá). Sinto
                        exatamente isso. Muita palavra e pouca vida. Algo
                        parecido, com o que diz Bento Santiago: “Conhecia as
                        regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha
                        orgias de latim e era virgem de mulheres”.
 
                          
                          
                        7. HP – Outra curiosidade acerca de seu processo de
                        escrita é o seguinte: Você confia a alguém a leitura de
                        seus originais, alguém que leia e que opine? Ou você é
                        do tipo autossuficiente e que detesta que deem "pitacos"
                        na sua obra?
 
                        7. RSP – Sim. Ao longo da vida, minhas esposas foram
                        minhas leitoras – a atual e a ex. Agradeço muito a elas
                        pelas leituras – que, contudo, não são muitas. Não
                        detesto pitacos, ao contrário. Mas eles foram poucos ao
                        longo da vida. Sempre acho que incomodo alguém se peço
                        para lerem meus textos. Outro crédito: sempre fui muito
                        lido pela minha orientadora, profa. Ivete Walty, da
                        PUC-Minas, muito generosa e gentil. Mas sempre leitora
                        dos textos acadêmicos – nunca os textos
                        ficcionais. 
 
                          
                          
                        8. HP – Algo que me intrigou bastante em seu livro,
                        Rogério, foi que um conjunto significativo de suas
                        narrativas se sustenta à base de uma busca. Há busca por
                        drogas, por criminosos, por ousadia para matar, por uma
                        foto incriminadora, por um passado, por um fantasma, por
                        um beijo, por uma joia rara, por um amor, pela resolução
                        de um trauma, pelo reatamento de uma amizade...  A
                        busca é a presença que falta? A sua ficção pode ser
                        reduzida a intervalos entre buscas e prováveis
                        encontros, ou prováveis desencontros?
 
                        8. RSP – Não pensei nisso – a busca. Obrigado por
                        apontar esse aspecto. Mas, note-se, a carência é um dos
                        fundamentos que desencadeia as narrativas (os contos
                        tradicionais), a se pensar com os teóricos (W. Propp, p.
                        ex.). Falta alguma coisa ao herói – dá-lhe a procura! A
                        falta é fundamental pra mim. É na falta que há a
                        substituição. Um exemplo: em muitos contos de “O
                        matador”, a vontade é de “substituir” o pai. Não no
                        sentido de colocar outro no lugar dele. Mas no sentido
                        de “se colocar” no lugar dele. É a inveja do pai, do
                        poder do pai, mas também a sua falta, certo desamparo
                        que advém de sua ausência – que motiva alguns contos. E,
                        aqui, uma lembrança: o Édipo freudiano. Não
                        necessariamente o mito e a tragédia gregos. Mas essa
                        tensão entrevista na tríade do Édipo (ciúmes entre
                        filho/filha, mãe e pai) que Freud propõe como espécie de
                        modelo para explicar a vida humana (que, já sabemos, é
                        ambicioso e falso). Estendo – de modo muito livre e
                        solto, me apropriando –, esse “modelo” para alguns
                        contos. Não se pode deixar de pensar que a chamada
                        tradição literária se articula em algo que pode ser
                        análogo a isso. Ou seja: “pais”, voluntariamente legando
                        aos “filhos” seus “manuais” e estes aprendendo nestes
                        mesmos manuais meios de aniquilar, de superar, de
                        influenciar (isso mesmo!) esses pais. Daí uma metáfora,
                        algo óbvia: facas são espadas acanalhadas, abastardadas;
                        facas são canetas, são penas; facas são pênis… nessa
                        tradição que exclui as mulheres (mas elas existem,
                        claro, dentro desta mesma tradição), algo homoafetivo,
                        homoerótico se insinua. Por isso, as facas que se cruzam
                        e se tocam. Nessa luta de canetas/facas/pênis, há afetos
                        (ódios e amores) familiares. Nesse sentido, as armas de
                        fogo serão nos textos, meros desvios...
 
                          
                          
                        9. HP – Quase todos os narradores, em seus contos, são,
                        retoricamente, não confiáveis. Não confiáveis porque
                        tergiversam demais, ou porque vivem em estado alterado
                        de consciência, ou porque remontam a passados a partir
                        de memórias cambiantes; enfim, por esses e outros
                        motivos. É o que acontece já em “Manual”, o primeiro
                        conto do livro, em que a história é narrada em primeira
                        pessoa pela personagem Martha, por meio de uma carta. Ou
                        seja, trata-se de um conto epistolar, expresso em forma
                        de monólogo. Martha, em sua carta, tenta entender
                        situações do presente remontando a situações, algumas
                        trágicas, vivenciadas no passado, junto a seus
                        familiares. Sabendo-se que Martha é adepta de uma boa
                        talagada de uca e é considerada, por vezes, louca, somos
                        levados a desconfiar o tempo todo do que está sendo
                        escrito/narrado. Uma das belezas de “Manual” está
                        exatamente no manejo dessas artimanhas narrativas; em
                        especial, de uma narradora não confiável. Mas, eu me
                        pergunto, com uma espécie de medo, se o leitor, em
                        nossos dias, tão adepto de mensagens curtas (em tamanho
                        e em sentido), está capacitado a entrar nesse jogo
                        literário, que lhe exige muita atenção e alguns
                        pressupostos essenciais de leitura de livro e de
                        mundo... Será que o leitor viciado apenas nas chamadas
                        “mídias sociais”, acostumado a mensagens curtas,
                        simplórias e tolas, tem a capacidade de “interagir” com
                        seus narradores não confiáveis? Fique à vontade para
                        criticar a minha exposição; inclusive, o meu (suposto)
                        preconceito contra os “leitores midiáticos”.
 
                        9. RSP – O seu olhar sobre a querida Martha é ótimo.
                        Sim, o texto é uma carta para a irmã, Heliana, a quem
                        Martha vai explicitando seu amor de décadas. Amor que,
                        provavelmente, Heliana já sabe. Amor que nunca se
                        realizou – são muitos obstáculos, afinal. Muitos tabus.
                        No momento em que esta carta é escrita, estão ambas
                        maduras – 40, 50 anos? São opostas. Heliana, solar,
                        bela, sensual, submetendo a todos com seus encantos.
                        Martha, talvez miúda, feia, noturna. Uma que é plena
                        mulher logo cedo; outra que hesita entre sexualidades e
                        gêneros – não consegue ser mulher, não consegue ser um
                        homem! Uma “do lar”, a que ficou; a outra, do sertão,
                        das cavalgadas, da jagunçagem. Dentre os obstáculos eis
                        o pai, verdadeiro tabu – morto, contudo, “vivo”. Um pai
                        que resta na cabeça de Martha como algo a ser
                        substituído – e ela até que se sente à altura de
                        substituí-lo, de se colocar no lugar dele. E ele ainda
                        não virou lembrança, não é símbolo inerte, ainda – é um
                        zumbi que ronda. Está presente. Porém é uma ronda que só
                        Martha vê. Talvez desequilibrada, talvez alucinando –
                        mas quem vai saber?  – ela quer matar esse pai
                        definitivamente. Acabar com ele, substituí-lo. Ao longo
                        dos anos, veio treinando para matá-lo. Aos poucos,
                        avalia se pode fazê-lo. Há dúvidas profundas. Não pode –
                        não deve – compartilhar isso com a irmã. É uma pergunta
                        que nós próprios fazemos para nós mesmos: como ficar
                        insistindo, com nossas mulheres e parentes, numa
                        obsessão sem que estes nos mandem para o psicólogo, nos
                        internem ou nos rejeitem pra sempre? A carta, por sua
                        vez, é a síntese dessas inquietações. Martha está indo
                        para a batalha da vida dela – matar o pai. Se vencer,
                        volta e obtém o troféu: Heliana. Caso contrário, deixa
                        suas palavras, seu relato. Heliana vai saber o que,
                        afinal, houve. Moral da história: se estamos lendo esta
                        carta, é por que o fantasma do pai venceu e Martha não
                        voltou. E um ponto importante: a carta é marca
                        linguística da ambiguidade que atravessa Martha.
                        Exemplo: só perto do fim ela consegue se articular como
                        a mulher que é. Só ali, seu leitor sabe que quem fala é
                        uma mulher. Porém, tendo tentado imitar o pai em boa
                        parte de sua vida, não terá ido longe demais em querer
                        ser homem – como retornar? Muita coisa me fez escrever
                        esse texto. Lembro de “Sonata de outono”, do Ingmar
                        Bergman (pra citar uma “influência” – se é que é
                        mesmo…). Filme com Liv Ulman e Ingrid Bergman. Filha e
                        mãe. A mãe é grande pianista, renomada, reconhecida,
                        rica por isso – controladora, soberana, autoritária. A
                        filha, por sua vez, é uma pianista fracassada que não
                        soube ser grande como a mãe – melhor do que a mãe. O
                        filme é o “duelo” (visto pelo marido daquela filha, de
                        longe) entre estas duas mulheres. Tento repetir isso
                        neste conto das facas. E veja-se a tragédia: fracasso da
                        filha (penso) é uma homenagem, é uma declaração de amor
                        à superioridade daquela mãe – a quem ela, afinal, ama e
                        admira. É muito difícil escrever e publicar contos
                        depois de G. Rosa ou J. L. Borges. Meu livrinho é uma
                        brincadeira em torno disso. A se levar essa dificuldade
                        ao pé da letra, eu me permitiria até escrever esses
                        contos, como fiz – publicá-los, de jeito nenhum! Tenho
                        sofrido com esse atrevimento que é o “Matador e outros
                        contos” publicado.
 
                          
                          
                        10. HP – Na infância, eu gostava muito da brincar com os
                        amigos na rua de “polícia e ladrão”. A brincadeira
                        consistia basicamente em dividir os participantes em
                        dois grupos, um de policiais e outro de ladrões. Os
                        policiais capturavam os ladrões e os ladrões ainda
                        estavam soltos tentavam libertar os capturados. Nessa
                        brincadeira, estavam definidos em “cláusula pétrea” os
                        papéis do bem e do mal. Hoje, eu tenho quase 60 anos de
                        idade e percebo que na “brincadeira” de seus contos é
                        impossível de se definir papéis, se policiais são do
                        bem, se ladrões são do mal. Você cria personagens que
                        são ambíguas, que se movimentam ardilosamente na
                        bivalência ética. Parece que suas personagens, no final
                        das contas, se recusam a atender a regras. Por acaso,
                        Rogério, você está projetando em sua ficção personagens
                        de carne e osso?
 
                        10. RSP – Obrigado pela pergunta. Na verdade, não pensei
                        nisso antes. Mas aproveito a pergunta para refletir,
                        tendo em vista meus contos.
 
                        O realismo é uma ordem. Em dois sentidos da palavra. (1)
                        É uma obrigação, é uma norma, é um imperativo
                        categórico: precisamos representar pessoas ao máximo.
                        Pessoas: e não virtualidades. Há muito não dá para
                        representar esquemas, como no melodrama: protagonistas
                        passivas, madrastas vilãs, homens nobres (e sem sal)
                        salvadores, fadas bondosas, motivações ligadas às
                        emoções e aos afetos, etc. É preciso ir além do “happy
                        end”. Capitu se casou com Bento e foram felizes para
                        sempre? Não! É aí que o realismo começa – tem início
                        justamente depois do final feliz típico dos romances
                        românticos. O ensinamento vem de vários mestres, mas,
                        sobretudo, de Machado, com o Bento Santiago. 
 
                        E, além disso, (2) o realismo é uma ordem, um
                        ordenamento, um código: primeiro é preciso a ilusão –
                        depois, a desilusão. Primeiro é preciso as motivações
                        amorosas – depois, as “reais” motivações, isto é, a
                        força da grana, do interesse. Se não tiver muita ilusão,
                        não pode haver desilusão – penso que essa é o
                        ordenamento que nos foi dado. Sigo (talvez ingenuamente)
                        essa regra. Nos meus textos tento iludir o leitor ao
                        modo realista de Machado. Dar a ele uma sensação de que
                        estamos diante de um tipo – para, depois, ir além desse
                        tipo.  Aprendi, p. ex., que o Chicó, do Ariano
                        Suassuna, é o mentiroso ingênuo. Não é uma “pessoa”, mas
                        um tipo. Penso comigo: o Chicó vai além de ser um tipo?
                        Acho que não. O personagem não é, não pode ser um tipo.
                        Recordo agora o Hélio, policial, chefão de milícia, que
                        entra na casa de Luana, em “Piedade”. Ele parece um
                        tipo. Mas, sendo um tipo, como é que ele muda de ideia
                        no final e não mata Luana – num contexto de morte certa?
                        Sem essa transição não há pessoas – há só tipos. É
                        preciso ser realista, fugir à idealização romântica.
 
                          
                          
                        11. HP – Conforme sabemos, você é professor na
                        Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Pergunta
                        objetiva e direta: O professor universitário, dado a
                        textos acadêmicos, interfere na arte literária do
                        contista?
 
                        11. RSP – Acho que sim. Muito. Porém, antes de tudo, o
                        que quero é contar boas histórias com começo, meio e fim
                        – sem juízo final. O texto bom pra mim, seria o auto
                        medieval (p. ex., “O auto da compadecida”, como
                        herdeiro) sem a alegoria do julgamento final. Pessoas
                        (mas não tipos) em cena. Nada da adúltera, do sovina, do
                        padre ambicioso, do malandro, do mentiroso ingênuo,
                        entre outros. Pessoas – ou melhor: tipos que se revelam
                        personagens. Tipos que vão se tornando complexos,
                        deixando de serem figuras pétreas que representam certos
                        caráteres humanos fixos e se complexificando. Nelson
                        Rodrigues dizia que ele é o contrário de Brecht – pois
                        detestava tudo que fosse interrupção, aquele drama que
                        se reconhece explicitamente drama, teatro épico. Vamos
                        aceitar a oposição (desproporcional, talvez) para fins
                        de reflexão: gosto muito de Brecht – mas prefiro Nelson
                        Rodrigues. As surpresas no final de “O beijo no asfalto”
                        e de “Toda nudez será castigada”, são geniais. Gostaria
                        que os leitores mergulhassem nos meus contos como nas
                        peças de Nelson Rodrigues.
 
                          
                          
                        12. HP – O povo quer saber se junto ao exímio contista,
                        que você é, existe também um poeta, um dramaturgo, um
                        romancista. Você já escreveu em outros gêneros textuais?
                        Se sim, quando vai publicar o material? Se não, por que
                        não?
 
                        12. RSP – Diga ao povo, prezado Henrique, que não. Há
                        peças escritas (duas), um romance encaminhado – mas
                        travado, um livro de poemas pronto (veja só!), e alguns
                        contos que podem ser publicados, quem sabe. São textos
                        que ficam aí sendo derrotados em concursos literários –
                        já um pouco cansados dessa peleja inglória. Mas há a
                        chance de o livro de poemas sair em breve.
 
                          
                          
                        13. HP – A escritora argentina María Teresa Andruetto,
                        em seu conjunto de ensaios denominado “Por uma
                        literatura sem adjetivos”, reitera que a literatura de
                        boa qualidade estética não deve se submeter a demandas
                        do mercado editorial, que, por sua vez, “escolariza” a
                        literatura feita sob demanda para fins didáticos e
                        pedagógicos, ou seja, para faturar muita grana em vendas
                        a, principalmente, programas públicos de leitura
                        escolar. Desenvolve mais essa ideia, afirmando, ainda,
                        que o bom escritor tem “problemas com as palavras”,
                        “converteu as palavras em seu problema” e que ele deve
                        “fazer com que a palavra expressa saia do âmbito privado
                        e se constitua em literatura”: esse objetivo é
                        impossível de ser mensurado didática e pedagogicamente,
                        porque “excede em todos os sentidos a instituição
                        escola”. Pensando nos contos de “O matador”, você
                        concorda com as argumentações de Andruetto?
 
                        13. RSP – Na contemporaneidade, a escola é o lugar por
                        si em que a literatura circula – ao menos no Brasil. É
                        verdade que a livraria, os sarais, os festivais, os
                        concursos e os bancos de aeroportos são lugares em que a
                        literatura está presente. Mas pense-se: onde é que a
                        literatura circula verdadeiramente de modo maciço? Acho
                        que é na escola. Sem escola, aliás, não haveria hoje
                        sequer isso que chamamos literatura brasileira sendo
                        lida. Machado e Graciliano chegaram à maioria de nós via
                        escola – em outros tempos, talvez não. A literatura
                        brasileira está escolarizada. Na verdade, a maioria de
                        nós, escritores vivos, gostaria de estar nas listas do
                        vestibular. Ou seja, escolarizados. E é o meu caso. E,
                        creia, não para ganhar dinheiro – mas, para ser lido.
                        Por esses dias, fui a Corumbá lançar “O matador e outros
                        contos”. No evento, promovido pela querida corumbaense
                        Marcelle Saboya, na casa do Dr. Gabi (que é da
                        Prefeitura da cidade), havia alguns professores que
                        foram os principais interlocutores daquele momento.
                        Excelente, devo dizer. Pedi a eles, humilde e
                        insistentemente, que levassem meu livrinho para suas
                        salas de aulas. Isso é escolarização da literatura.
                        Queria ir para a escola? Sim: para ser lido, não para
                        que comprem meus livros, para que o livro participe de
                        editais do governo. Por outro lado, penso que se a
                        literatura tem essa força pública, desprivatizadora, que
                        a sua pergunta sugere, então ela deve estar na escola,
                        sim. Interessante pensar com a psicanalista Veja
                        Iaconelli que diz que, mesmo a escola privada, aquela
                        que reúne hoje os jovens filhos da elite, que os prepara
                        para o vestibular – mesmo essa escola é “pública”. Com
                        efeito, a escola é pública: é uma concessão pública, é
                        regulada por leis propostas pelo Estado, é instituição
                        fundante e essencial da vida republicana. A literatura
                        na escola pode não cumprir todo seu papel potencial de
                        que Andruetto fala. P. ex., explicitar os “problemas com
                        as palavras” inerentes à “verdadeira” literatura. Mas,
                        arrisco dizer, sem escola não há literatura. A escola
                        talvez não seja problema… um problema talvez esteja no
                        fato de que, hoje, a literatura, a tradição literária,
                        está sendo acusada sistematicamente de, sem saber,
                        falocêntrica, eurocêntrica, brancocêntrica, elitizada,
                        etc. É uma questão... mas para outro momento. 
 
                          
                          
                        14. HP – Para finalizar o nosso bate-papo, Rogério,
                        conte-nos um segredo: Você já tem algum novo livro sendo
                        finalizado, ou os seus leitores ainda vão ter que
                        amargar, mais uma vez, 30 anos de espera?
 
                        14. RSP – Como disse, Henrique, é possível que lance no
                        início do ano que vem um livro de poemas. E estou
                        pensando em publicar as duas peças de teatro que
                        mencionei.  
                      
                        Dourados, 1º de outubro de 2024 
                          
                     
                      
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