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Jackson Pollock

 

Baianidade nagô

 

(Eduardo Calazans)

 

Noite de gala, um concerto inesquecível, uma noite para entrar nos anais da cultura e das artes da cidade do Salvador, Bahia. O Salão Nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia repleto de políticos, intelectuais, artistas, enfim, a nata da sociedade baiana.

 

Os homens com seus indefectíveis smokings cheirando a naftalina e as mulheres mais enfeitadas do que jegue na Lavagem do Bonfim. Todos ansiosos com a apresentação do paulista ilustre, o grande pianista e maestro Ataliba Wan Der Heiner de Almeida e Almeida, que após uma longa turnê pela Europa estava de volta à Bahia. Dono de uma técnica irretocável, capaz de executar, em frações de semifusas, todas as escalas da obra de Bach, modulando em fração de segundos, com uma leveza e vigor somente comparados aos grandes gênios da música.

 

Ataliba fora criado para a música, mais especificamente para a música erudita.

 

Na mais tenra idade, os pais colocaram-no numa escola de música, primeiro no curso de Iniciação à Educação Musical. Aos oito anos iniciou os estudos de piano. Aos doze, já participava de Concursos Internacionais. Formou-se em piano, depois, fez Pós-graduação, Mestrado e Doutorado nas melhores Universidades do Mundo. Tornou-se uma sumidade em concertos para piano e orquestra. Sempre convidado para participar como solista nas grandes orquestras, em várias partes do mundo, tinham-no como referência. Especializara-se na obra de Johann Sebastian Bach (o pai, claro!), executava as toccatas, sonatas e fugas com uma leveza, elegância, desenvoltura e vivacidade que, às vezes, parecia estar tomado por alguma força sobre-humana.

 

E foi, exatamente, aqui na Bahia, num desses transes, em um minueto de Bach que o, então, maestro Ataliba passou a batucar ao piano, improvisando, até aí nada demais, uma vez que o mesmo, sendo um instrumento harmônico e melódico por excelência, poderia também prestar-se aos caprichos percussivos de um gênio, nada demais! Primeiro nos sustenidos, misturando agudos e graves numa série de semicolcheias, indo de semifusas às fusas em compasso 16/32 cada vez mais acelerado e dissonante, seguido de toques enérgicos com as pontas dos dedos, depois com as palmas das mãos, os punhos, os cotovelos, por todas as escalas, por toda a caixa do instrumento, e logo em seguida, para frisson de madames, madeimoiselles e messieurs, estava usando todas as partes do corpo, para finalizar dançando Afoxé sobre o mesmo. Deixando a platéia do Salão Nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia, pasma, atônita, para depois, refeita, aplaudir entusiasticamente: Bravo! Bravo! Bravíssimo! Bravo!...

 

Somente a família não vira com bons olhos aqueles espasmos de criatividade e vanguardismos. Passaram a olhá-lo com desconfiança. Estaria fofo do juízo? Que perrengue era aquele? Que maneirismos? Quanta estereotipia! Teria enlouquecido o Ataliba? O filho querido? A glória da família? O orgulho de São Paulo e da Nação? Não, não, talvez fosse apenas um surto de criatividade e inovação, ou, quem sabe, o estresse de tantos compromissos importantes. Tantas turnês, tantas viagens, cada dia em um lugar diferente, com fusos horários diferentes, era isso.

 

Ele precisava de um descanso, uma pausa de mínima que fosse!

 

Passada a euforia e o deslumbramento de uma noite que ele achara memorável, iriam conversar com Ataliba. Agora teria que “dar um tempo”, uma pausa de semibreve que fosse! Relaxar! Teria que desmarcar alguns compromissos agendados. Precisavam convencê-lo a tirar umas férias, ainda mais agora, já em Sampa, quando insistia em batucar no piano como se esse fosse um bongô.   Haveriam de fazer alguma coisa, porém nada que o contrariasse. Nada de contrariar alguém quando está nesse estado. Falariam com ele. Compreenderia. Um menino educado na mais fina civilidade, sempre convivendo com o mais apurado, refinado e aristocrático meio social dos Jardins, claro, que compreenderia, nem tudo estava perdido. Fora uma excentricidade, uma frivolidade passageira. Logo, logo estaria em “Ritornello”. Depois de uma longa pausa “ad libitum”, reuniram toda a família.

 

Solfejaram, articularam em primeira, segunda e terceira voz, dó de peito e nada.  Ataliba não disse nem mi nem fá.

 

O pai argumentou, relembrou-lhe a origem, a tradição, a ascendência germânica, até mesmo, aventou-lhe o Bairro do Morumbi, onde houvera nascido. Todo o esforço empregado até então para que o mesmo se tornasse um grande pianista, um dos maiores solistas do mundo.

 

Tudo rondó, tudo em vão, batiam na mesma tecla, monocórdio.

 

A mãe, com mais ternura do que uma sonata de Chopin, lembrava-lhe dos momentos da infância, quando ainda dava os primeiros acordes. No afã de alegrá-lo, regia com uma batuta imaginária, desenhando suavemente no ar um compasso quatro por quatro, enquanto recordava-lhe tantas noites insones com a barulheira e a repetição infernal, as quais era obrigada a ouvir com toda a doçura e compreensão materna: os primeiros “tá-tá-tá-tás” das leituras rítmicas; os sopros agudos na flauta doce; a repetição “ad náusea” das escalas ao piano, os solfejos das vogais e consoantes das aulas de Técnica Vocal, a marcação dos compassos, o monótono som do metrônomo, noites a fio, da aflição nos exames; da ansiedade e da angústia nas competições e, agora, ele num gesto aleatório queria tocar tudo pelos ares. Não estava certo, não podiam admitir. Stacatto! Stacatto! Num gesto brusco e refinado, finalizou nervosa a mise-en-scène operística melodramática, a ópera-bufa.

 

O irmão mais novo deu um toque, tipo assim, aquela coisa de vanguarda, da genialidade baiana, tipo assim Koirotteur, que eles poderiam se quisessem, tipo assim Smetak, fariam uma banda de serrotes e tubos PVCS maneira, tava ligado? Repetia as gírias como um refrão sem métrica.

 

Ataliba depois de ouvir tudo calado, como quem ouve redondilhas, resolveu soltar a voz:

 

– Eu quero morar na Bahia, bater lata, tocar berimbau e atabaque. Quero aprender a batida do Samba-Reggae! Quero cantar iô-iô-iô, iá-iá-iá. Quero a Baianidade Nagô...

 

– Mas como? Valei-me, minha Santa Cecília, chorou a mãe em lá menor, numa oitava acima e em retontom.

 

– “O quê é que há.../ o quê é que há?/ O quê é que há?/ O quê é que há?” / Perguntava o pai, cantando, qual a ópera “O Barbeiro de Sevilha”, com voz de Baixo profundo.

 

– Ó! Horrorizou-se desafinado o irmão, largando por instantes o oboé.

 

Ataliba calmamente, com longas pausas, começou a explicar: estava em outra fase da carreira, não precisavam se preocupar; moraria na Bahia, no Pelô, por uns tempos, e lá iria pesquisar novas sonoridades, “sans peur et sans reproche”, “sem medo e sem censura”; ficassem tranqüilos, pois, finalmente iria realizar o sonho de criar instrumentos, inventar sonoridades, dar vazão ao instintivo, ao visceral, algo tribal, quem sabe fazer uma Escola de Música com material reciclado? Hein? Latinhas de cerveja? Garrafas pétis? Hein? Enfim, sentir a vibração sonora da Bahia, o corpo como instrumento, em frenesi, trio-eletrizado, tocar percussão e estudar com o Olodum. Conhecer Carlinhos Brown, sem batuta e sem partitura, somente com caixotes e com cabaças, com o poder da intuição e com a proteção dos Orixás. Disse, arrematando cada frase, peremptoriamente, com fricotes e deboches afro-baianos.

 

E assim foi. Mesmo a contragosto dos pais, a mãe agora se perguntava o que iria dizer para as amigas na Daslu. E se elas o vissem rebolando como Xandy? Herdeiro seu dançando pagode? É o Tchan? Na boquinha da garrafa? A Bahia era uma maravilha, mas, para turismo, num belo resort, estrangeiro, claro! Morar lá? Um descendente de Família Quatrocentona? Com ascendência germânica? Não estou inteendeendôô... O pai, a princípio, pensou até em colocar o filho numa Clínica Psiquiátrica, mas recuou quando os amigos argumentaram que rico não tinha disso não, rico era excêntrico, que deixasse o menino seguir com aquelas maluquices, quer dizer, novidades, performances, “happening” e vanguardismos. Sabiam de outros que viajaram nessa, a própria Rainha do Axé já colocara um pianista para tocar em cima do Trio.

 

Modulou-se de mala e cuia para a Rocinha, último reduto remanescente do antigo e verdadeiro Pelourinho, o coração do Pelô. Ataliba, uma vez aclimatado e apimentado, sentindo-se um baiano daqueles que come acarajé e abará de garfinho e faquinha plástica no xopin, ou que confunde Dorival com Jorge, acreditando, piamente, ser Bell do Chiclete com Banana o inventor do Trio Elétrico, bem como Caetano o padroeiro da Bahia. Achando-se um baiano autêntico, um baiano retado, subia e descia as ladeiras da cidade sem a intensidade e fôlego de uma Quinta Sinfonia, mas com a malemolência e o gingado das baianas coloridas da Bahiatursa. No começo, estranhou alguns contratempos, as batidas tinham umas quebradas, jamais vistas ou tentadas na escola, mas nada que o afligisse, bastava manter o remelexo, alguma presepada e soltar as cajás como diziam por aquelas paragens, sentisse a pulsação, ornasse o requebrado, sentisse o peso do tambor, deixasse entrar todo o som, fluir todo ruído, arrepiar todos os pêlos, abrir todos os poros, sentir a terra tremer e deixar entrar toda força e energia do povo baiano, tudo isso sem perder o remelexo. Agora sim, já enturmado, sempre de calça e camisa de artista baiano, alpercata de rabicho, patuás e colares-de-contas, sempre com algum instrumento exótico debaixo do braço (cabaça com mangueira, lata-de-biscoito com casca de tartaruga etc.), passou a freqüentar o terreiro de um pai-de-santo argentino, do qual tornou-se Ogã. Deixou o cabelo crescer e passou parafina para que ficasse rastafari – um branquelinho rasta –, com um ano de estada no Pelô havia se transformado num autêntico Astro Baiano: chegava atrasado nos ensaios, passou a achar-se um gênio, tomava dinheiro emprestado e não pagava, começou a achar que Deus era baiano e abaixo dele só mesmo ACM, começou a rimar Bahia com magia, com folia, com alegria, com poesia. Painho com Mãinha, Mãinha com Bundinha, Ladeira com Lezeira, Canseira, com Bobeira. Totalmente integrado à cultura e à levada baiana, do alto do Trio Elétrico, bate sempre no peito e grita bem forte: “Eu também sou negão!” Vez por outra, lamenta a família não ter compreendido a grandiosidade do seu ato, não ter percebido que a Bahia é um grande teatro e o Carnaval a sua grande ópera (ainda mais agora que é todo de camarotes) e Viva quem tem axé, Axé Babá!... Ataliba do alto do Trio Elétrico, remelexendo ao som de dois acordes, é o retrato fiel da Bahia de Todos os Santos, de Todos os Encantos, de Todos os Quebrantos, de Todos os Orixás, de Todos os Efes (hein, Gregório?) e de Todos os Agás (gaivas, baba-de-quiabo!), axé babá! Iô-Iô-Iô, Iá-Iá-Iá... AXÉ BABÁ!...

 

 

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