A NOIVA DO CAVALO-HOMEM
(Lord Dunsany)
Na manhã do seu ducentésimo
qüinquagésimo ano, Shepperalk, o centauro, foi à arca dourada, onde
estava guardado o tesouro dos centauros, e, retirando de lá o
precioso amuleto que seu pai, Jyshak, em sua juventude, martelara no
ouro da montanha e incrustara de opalas barganhadas com os gnomos,
ajeitou-o sobre a cintura, para, sem dizer palavra, deixar a caverna
de sua mãe. E levou consigo também aquele clarim dos centauros,
aquele famoso corno de prata, que em sua época tinha intimado à
rendição dezessete cidades do Homem, e que durante trinta anos
zurrara para muralhas estreladas no cerco a Tholdelblarna, a
cidadela dos deuses, época na qual os centauros empreenderam sua
fabulosa guerra e não podiam ser vencidos por força de nenhum
exército, mas se retiraram lentamente numa nuvem de poeira ante o
milagre final dos deuses, o qual Estes sacaram, em Sua necessidade
desesperada, do Seu último arsenal. Apanhou-o e afastou-se, e sua
mãe apenas suspirou e o deixou ir.
Ela sabia que hoje ele não beberia das
águas da corrente que provinha dos terraços de Varpa Niger, as
terras interiores das montanhas, que hoje ele não pararia para
admirar o pôr-do-sol e depois retornar trotando à caverna, para
dormir sobre juncos colhidos às margens de rios que o Homem ignora.
Ela sabia que com ele aconteceria como tinha acontecido com o seu
pai há muito tempo, e também com Goom, o pai de Jyshak, e também com
os deuses num passado ainda mais remoto. Assim, apenas suspirou e o
deixou ir.
Mas ele, saindo da caverna que era o seu
lar, passou pela primeira vez além do pequeno riacho e, contornando
a curva dos penhascos, viu refulgir diante de si a planície mundana.
E o vento do outono que alourava o mundo, soprando das encostas da
montanha, bateu frio contra suas ancas nuas. Ele ergueu a cabeça e
aspirou.
“Sou um cavalo-homem agora!”, gritou bem
alto. E, saltando de rochedo em rochedo, galopou entre vales e
funduras, entre leitos de rios e vestígios de avalanches, até chegar
às léguas indomáveis da planície, deixando atrás de si, para sempre,
as montanhas atraminaurianas.
Seu destino era Zretazoola, a cidade de
Sombelene. Que lendas acerca da beleza sobre-humana de Sombelene ou
sobre as maravilhas de seu mistério teriam fluído através da
planície mundana até o fabuloso berço da raça dos centauros, as
montanhas atraminaurianas, eu não sei dizer. No entanto, no sangue
do homem há uma vaga, uma antiga corrente marinha, que é de algum
modo aparentada ao crepúsculo, a qual traz até ele rumores de beleza
provenientes de todas as lonjuras, tais como vestígios flutuantes de
ilhas ainda não descobertas nos chegam pelo mar. E essa vaga
torrencial que visita o sangue do homem vem dos quadrantes fabulosos
de sua linhagem, do legendário, do antigo. Leva-o para as florestas,
para as colinas. Ele ouve a canção ancestral. Assim pode ter sido
que o sangue legendário de Shepperalk se agitou nessas montanhas
fabulosas, nos extremos do mundo, ao ouvir rumores que somente o
airoso crepúsculo conheceria e que apenas ao morcego confidenciaria,
pois Shepperalk era mais lendário ainda do que o homem. O certo é
que ele se encaminhou, desde o princípio, para a cidade de
Zretazoola, onde morava Sombelene em seu templo, embora a planície
mundana, seus rios e montanhas se interpusessem entre o lar de
Shepperalk e a cidade que buscava.
Quando os pés do centauro tocaram pela
vez primeira a grama daquela macia terra de aluviões, ele soprou
alegremente o corno de prata, saltitando e corcoveando, e galopou
feliz através das léguas. As distâncias vinham até ele como uma
donzela com sua lâmpada, uma nova e bela maravilha; o vento ria ao
passar por ele. Ele baixava a cabeça para sentir o aroma de uma
flor, e levantava-a para ficar mais perto de estrelas jamais vistas.
Deleitou-se, atravessando reinos; alcançou rios em sua carreira.
Como vos direi – a vós que viveis nas cidades –, como vos direi o
que ele sentiu ao galopar? Sentiu-se forte como as torres de
Bel-Narana, leve como esses palácios de gaze que a aranha encantada
constrói entre o céu e o mar ao longo das costas de Zith, ligeiro
como algum pássaro que se apressa de manhã para cantar entre os
pináculos de uma cidade antes de vir o dia. Era o companheiro
devotado do vento. De alegre, era uma canção. Os raios de seus
ancestrais lendários, os deuses primitivos, começavam a se misturar
ao seu sangue; seus cascos trovejavam. Veio às cidades dos homens, e
todos os homens tremeram, pois se lembraram das guerras antigas e
míticas, e agora aborreciam novas batalhas e temiam pela raça do
homem. Nem por Clio essas guerras são lembradas, a história não as
conhece, mas e daí? Nem todos nós já nos assentamos aos pés de
historiadores, mas todos aprendem fábulas e mitos sobre os joelhos
de suas mães. E não houve ninguém que não temeu guerras estranhas
quando viu Shepperalk voltear e correr ao longo das vias públicas.
Assim ele passava de cidade em cidade.
À noite ele se deitava apaziguado sobre
os juncos de algum pântano ou floresta. Antes da aurora,
levantava-se triunfante e, no escuro, bebia abundantemente de algum
rio; e afastando-se trotaria até algum lugar elevado para ver o
nascer do sol e saudar o levante com os ecos de sua jubilosa trompa.
E, deuses!, o sol levante acorreria aos ecos, e as planícies
iluminadas pelo brilho novo do dia, e as léguas se esparramando em
volta como águas que jorram do alto, e esse alegre companheiro, o
vento bulhento e risonho, e os homens e os medos dos homens e suas
pequenas cidades; e, após isso, grandes rios e vastidões e novas
colinas enormes, e então novas terras para além delas, e mais
cidades dos homens, e sempre o velho companheiro, o glorioso vento.
De reino em reino ele passou, e no entanto seu fôlego não se
alterava. “É uma coisa áurea galopar sobre boa turfa quando se é
jovem”, dizia o jovem cavalo-homem, o centauro. “Ah, ah”, dizia o
vento das colinas, e os ventos da planície respondiam.
Sinos bimbalhavam sobre torres
frenéticas, sábios consultavam alfarrábios, astrólogos perquiriam o
portento nas estrelas, os velhos faziam profecias sutis. “Ele não é
veloz?”, diziam os jovens. “E como é feliz!”, diziam as crianças.
Sucedendo-se, as noites o punham para
dormir, e os dias iluminavam seu galope, até que chegou às terras
dos homens atalonianos que vivem nos limites da planície mundana, e
delas passou às terras da lenda outra vez, tais quais aquelas onde
se criara no outro lado do mundo, e que bordejam a margem do mundo e
se mesclam ao crepúsculo. E ali um pensamento impositivo se
manifestou em seu coração infatigável, pois sabia estar perto de
Zretazoola, a cidade de Sombelene.
O dia tinha avançado quando se aproximou
da cidade, e nuvens coloridas de entardecer corriam baixas sobre a
planície à sua frente. Ele galopava em direção à sua névoa dourada,
e quando ela ocultava de seus olhos a imagem das coisas, os sonhos
despertavam em seu coração, e ele ponderava romanticamente sobre
todos esses rumores que costumavam chegar até ele vindos de
Sombelene, conduzidos pela camaradagem das coisas fabulosas. Ela
morava (dizia, em segredo, o entardecer ao morcego) num pequeno
templo à margem solitária de um lago. Um bosque de ciprestes
ocultava-a da cidade, de Zretazoola dos caminhos íngremes. E em
frente ao seu templo jazia o seu túmulo, seu triste sepulcro
lacustre de porta sempre aberta, para que sua beleza estonteante e
os séculos de sua juventude não alimentassem entre os homens a
heresia de que a adorada Sombelene fosse imortal: pois apenas a sua
beleza e a sua linhagem eram divinas.
Seu pai tinha sido meio centauro e meio
divino, sua mãe era a filha de um leão do deserto e daquela esfinge
que guarda as pirâmides; e ela era mais mística do que Mulher.
Sua beleza era um sonho, era uma canção,
o único sonho de toda uma vida sonhado entre orvalhos encantados, a
única canção cantada para alguma cidade por um pássaro imortal que
alguma tempestade do Paraíso tivesse arrebatado para longe de suas
plagas natais. Aurora após aurora nascendo sobre montanhas de
romance, ou crepúsculo após crepúsculo nunca poderiam igualar a sua
beleza. Todos os vaga-lumes não saberiam o segredo entre eles, nem
todas as estrelas da noite. Os poetas nunca a cantaram, nem o
anoitecer imagina o que ela significa; a manhã a invejava, e era
interdita aos amantes.
Ela não fora desposada, não fora jamais
cortejada.
Os leões não vinham cortejá-la porque
temiam sua força, e os deuses não ousavam amá-la porque sabiam que
ela devia morrer.
Isso foi o que o entardecer sussurrou ao
morcego, isso foi o sonho no coração de Shepperalk, enquanto trotava
cego através da bruma. E, de repente, apareceu sob os seus cascos,
na escuridão da planície, a depressão das terras lendárias, e
Zretazoola aninhada na depressão, a banhar-se ao sol do entardecer.
Rápida e habilmente ele desceu pelo
despenhadeiro e, entrando em Zretazoola através do portão externo
que olha diretamente para as estrelas, passou num galope pelas ruas
estreitas. Muitos acorreram às sacadas enquanto ele galopava, muitos
enfiaram a cabeça para fora das janelas, e esses são mencionados na
velha canção. Shepperalk não se deteve para saudações ou para
responder às advertências das torres marciais. Ele atravessou o
portão que levava através da terra como o raio de seus ancestrais e,
tal como Leviatã saltando sobre uma águia, levantou-se das águas
entre o templo e o túmulo.
Com os olhos semicerrados, subiu
galopando os degraus do templo e, vendo muito obscuramente através
das pálpebras, agarrou Sombelene pelos cabelos, ainda não ofuscado
pela sua beleza, e assim a arrastou para fora. Então, saltando com
ela sobre o abismo sem fundo onde as águas do lago caem para o
esquecimento através de um buraco no mundo, levou-a para não se sabe
onde, a fim de ser seu escravo para todos os séculos que são
concedidos à sua raça.
Três grandes sopros ele deu, enquanto
ia, naquela trompa de prata que é o imemorial tesouro dos centauros.
Esses foram os seus sinos nupciais.
(Traduzido
por Renato Suttana)
Ouça
a leitura deste conto na voz de Lauriston Trindade
|