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Max Ernst

 

PROVÁVEL AVENTURA DE TRÊS LITERATOS

 

(Lord Dunsany)

 

Quando vieram os nômades para El Lola, já não tinham mais canções, e a idéia de roubar a caixa áurea se impôs com toda a magnitude. Por um lado, muitos haviam procurado pela caixa áurea, receptáculo (como bem sabem os Etíopes) de poemas de valor fabuloso, e o destino desses é conhecido por toda a Arábia; por outro lado, era melancólico sentar-se à noite em volta da fogueira, sem novas canções.

 

Foi a tribo de Heth que discutiu esses assuntos num anoitecer das planícies que estão ao pé do pico de Mluna. Sua terra natal estava na rota dos andarilhos que percorrem o mundo; e os mais velhos se aborreciam porque não havia novas canções; ao passo que, intocado pelas preocupações humanas, intocado até mesmo pela noite que dissimulava as planícies, o pico de Mluna, calmo sob o lusco-fusco, se elevava sobre a Terra Dúbia. E era lá, na planície, do lado conhecido de Mluna, logo que a estrela da tarde veio surgindo como um ratinho e as chamas da fogueira agitaram suas plumas sem o acompanhamento de nenhuma canção, que aquele plano temerário foi concebido às pressas pelos nômades – plano que o mundo chamou de Em Busca da Caixa Áurea.

 

Precaução mais sábia os nômades mais velhos não poderiam ter tomado do que escolher para chefe aquele exato Slith, aquele mesmo ladrão que (ainda agora, enquanto escrevo) em quanta sala de aula as governantas ensinam roubou uma marcha ao Rei de Westalia. No entanto o peso da caixa era grande, e outros teriam de acompanhá-lo; e Sippy e Slorg não eram mais ágeis ladrões do que se podem encontrar hoje em dia entre vendedores de antigüidades.

 

Assim, no dia seguinte esses três galgaram os cimos de Mluna e se ajeitaram para dormir conforme puderam entre as suas neves – o que era melhor do que arriscar-se a passar a noite nas florestas da Terra Dúbia. E a manhã surgiu radiante, e os pássaros estavam cheios de cantos, mas a floresta que se estendia abaixo e a vastidão que havia para além dela e os rochedos nus e ominosos sugeriam uma ameaça indizível.

 

Embora Slith tivesse uma experiência de vinte anos de roubos, pouco falou. Apenas, se o pé de algum dos outros fazia uma pedra rolar ou, mais tarde na floresta, se algum deles pisava num graveto, ele murmurava, secamente, para eles as mesmas palavras: “Isso não é negócio”. Ele sabia que não podia fazer deles ladrões melhores durante uma viagem de dois dias, e quaisquer que fossem a suas dúvidas não mais interferiu.

 

Dos cumes de Mluna entraram nas nuvens, e das nuvens passaram à floresta, para cujos bichos nativos – como bem sabiam os três ladrões – toda carne era alimento, fosse carne de peixe ou de homem. Ali, os ladrões tiraram, com certa idolatria, de seus bolsos cada qual um deus separado e rezaram por proteção na mata funesta, e contavam assim com uma chance tríplice de escapar, já que se qualquer coisa comesse um deles era certo que comeria os outros, e confiavam em que o corolário seria verdadeiro e que todos escapariam se um deles o fizesse. Se um desses deuses foi propício e estava desperto, ou se todos os três, ou se foi o acaso que os conduziu através da floresta sem serem abocanhados pelos bichos horrendos, ninguém sabe. Mas certamente nenhum dos emissários do deus que eles mais temiam nem a ira do deus específico daquele lugar ominoso trouxe a fatalidade para os três aventureiros naquela hora. E assim foi que chegaram ao Agreste Trovejante, no coração da Terra Dúbia, com suas colinas tempestuosas, que os terremotos ninaram por um tempo. Algo tão imenso que aos homens pareceria injusto que se movesse com tamanha suavidade estacou esplendidamente perto deles, e tão logo o notaram e correram uma só palavra ecoou em suas três imaginações: “Se... se... se...” E quando esse perigo passou, puseram-se outra vez a caminho, cautelosamente, e de repente viram o pequeno e inofensivo mipt, meio fada e meio gnomo, a emitir chiados agudos e contentes na orla do Mundo. E então passaram ao largo, despercebidos, pois sabiam que a bisbilhotice do mipt se tornara fabulosa e que, mesmo inofensivo, não era de guardar segredo. Porém tiveram repugnância do modo como ele rói ossos brancos, e ele não admitiria que tivessem repugnância, pois não é comum que aventureiros se preocupem com quem come os seus ossos. Seja como for, passaram ao largo do mipt e deram quase imediatamente com a árvore retorcida, meta de chegada da sua aventura, e sabiam que ao lado deles estava a fenda do Mundo e a ponte entre Mal e Pior, e que logo abaixo estava a casa rochosa do Possuidor da Caixa.

 

Seu plano era simples: enfiar-se pelo corredor sobre o paredão de cima, passar correndo, sem fazer barulho (descalços, naturalmente), sob o aviso aos viajantes que está gravado na rocha, o qual os intérpretes entendem como significando “É melhor não”; não tocar os pomos que lá estão de propósito, na ladeira embaixo, à direita, e assim chegar até o guardião do pedestal que dormira por mil anos e poderia estar dormindo ainda; e entrar através da janela aberta. Um dos homens deveria esperar do lado de fora, perto da fenda do Mundo, até que os outros saíssem com a caixa áurea; e, se chamassem por socorro, tentaria de imediato desprender o grampo que segura a fenda. Quando tivessem agarrado a caixa, viajariam durante toda a noite e o dia seguinte, até que as massas de nuvens que envolviam as encostas de Mluna estivessem entre eles e o Possuidor da Caixa.

 

A porta no paredão rochoso estava aberta. Eles desceram, sem um murmúrio, pelos degraus frios, Slith a guiá-los por todo o trajeto. Um olhar cobiçoso, não mais do que isso, foi o que cada qual dirigiu aos belos pomos. O guardião ainda dormia sobre o seu pedestal. Slorg subiu por uma escada, que Slith sabia onde ficava, até o grampo de ferro na fenda do Mundo, e esperou aí, com uma lâmina na mão, ouvindo atentamente, enquanto seus amigos invadiam a casa; e não houve som algum. E finalmente Slith e Slippy encontraram a caixa áurea: tudo parecia acontecer como tinham planejado, apenas restava conferir se era a caixa certa e levá-la para fora daquele lugar amedrontador. Sob o abrigo do pedestal, tão perto do guardião que podiam sentir seu calor – que paradoxalmente teve o efeito de gelar o sangue do mais corajoso deles –, quebraram a trava de esmeralda e abriram a caixa áurea. E puseram-se a ler, à luz de engenhosas fagulhas que Slith sabia como produzir, e até essa pouca luz eles esconderam com os seus corpos. Que enorme alegria, mesmo nesse momento perigoso, postados entre o guardião e o abismo, ao verem que a caixa continha quinze incomparáveis odes em metros alcaicos, cinco sonetos que eram de longe os mais bonitos do mundo, nove baladas à maneira de Provença que não tinham rivais entre os tesouros do homem, um poema dedicado a uma mariposa em trinta e oito estrofes perfeitas, uma peça em versos brancos de mais de cem linhas num nível ainda não atingido por homem nenhum, bem como quinze liras nas quais negociante algum se atreveria a pôr preço. Eles os teriam lido outra vez, pois eram coisas que trariam lágrimas de alegria a qualquer um e recordações de coisas feitas na infância, e que convocavam doces vozes de sepulcros distantes; mas Slith apontou, imperiosamente, para o caminho pelo qual tinham vindo e apagou a luz. E Slorg e Sippy suspiraram, e enfim pegaram a caixa.

 

O guardião dormia ainda o sono que sobreviveu por mil anos.

 

Quando se afastaram, viram aquela cadeira propícia perto da orla do Mundo na qual, desde a última vez, o Possuidor da Caixa teria se sentado para ler, egoísta e sozinho, as mais belas canções e os mais belos versos com que poeta algum jamais sonhou.

 

Chegaram em silêncio ao pé da escada, e aconteceu que, enquanto se aproximavam em segurança, na hora mais secreta da noite, alguma mão acendeu uma luz indiscreta na câmara superior – acendeu-a e não fez barulho.

 

Por um instante poderia ter sido uma luz ordinária, tão fatal quanto qualquer uma seria num momento como aquele, mas, quando começou a segui-los como um olho e a se tornar mais e mais vermelha enquanto os vigiava, então até o otimismo se desesperou.

 

E Sippy, desorientado, tentou a fuga, e Slorg, igualmente desorientado, tentou se esconder; mas Slith, sabendo bem por que aquela luz tinha sido acesa naquela câmara secreta e quem a tinha acendido, saltou para além da borda do Mundo e está caindo até hoje através da treva silenciosa do abismo.

 

(Traduzido por Renato Suttana)

 

 

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